sexta-feira, 7 de novembro de 2014

OS "SÓCIOS"

          Amorim tem um sócio. Não pensem que falo de seu comércio, aquele em que labuta com sua mulher, que ele queria demitir por conta de certa futura e frustrada aventura extraconjugal. Aliás, neste seu comércio não há sociedade: – é autônomo. A mulher é como a mulher do general: – manda mais que o próprio dono, embora não traga seu nome à razão social. A frustração que abateu o meu amigo acabou por abrir-lhe na alma uma espécie de lacuna, de vazio a ser preenchido. Tanto que, mais tarde, depois do episódio que resultou na castração de seu plano, tal vazio foi ocupado da forma mais inesperada e mais inusitada possível.
          Afinal, que raios de sociedade é esta outra onde meu amigo se meteu? Devo ir aos poucos de forma a não chocar meus queridos leitores, sobretudo porque o conservadorismo é ainda prevalente em nosso meio. Tem-se muita dificuldade com o despudor. Dizia o Nelson Rodrigues que o mais forte afrodisíaco é o pudor. Nem a nudez ou a quase nudez, nem a vestimenta sensual, nem uma ou outra droga ou alimento pode ser mais estimulante ao apetite do amor do que o pudor. Daí a nossa dificuldade com o despudor. É compreensível. Mesmo ao Amorim, que esteve solteiro por uns breves e fugazes dias, e que se empanturrou com uma pornografia importada em certa noite de primavera tropical, as cobertas de todas as partes sensuais do corpo são o maior estímulo à caça do sexo oposto. Acredite quem quiser. 
          Deixemos de léria e voltemos ao sócio. Devo acrescentar que o objeto de sociedade que os une deixou de existir há anos. É que este tipo de sociedade não se dissolve jamais, nunca, em tempo algum. Ainda que se evapore a razão de ser da sociedade, os sócios hão de ser eternamente sócios. Quando mortos, serão sócios póstumos. Tal sociedade transcende a vida. O casamento, por exemplo, se desfaz automaticamente com a morte de um dos sócios. Não é assim com a sociedade da qual falo. Não se a lavra em cartório, nem se requerem testemunhas para seu estabelecimento. Sendo o mais franco possível, devo dizer que nesta sociedade não são bem-vindas as testemunhas, como logo se verá. Percebe-se, então, que em tal sociedade não importam os sócios, mas os termos e elos de ligação entre eles.
          Amorim e seu sócio são amicíssimos. E, para acalmar os afoitos e esbaforidos que já antevejo a me olhar de olhos atravessados a querer que eu revele o nome do santo, afirmo peremptoriamente: – não o farei. Sua identidade deve seguir em segredo de Estado, dadas as implicações que podem advir. Afinal, suas mulheres são amigas e labutam no mesmo ramo de seus maridos. A mínima suspeita da existência, ainda que no passado, de tal sociedade, seria motivo suficiente para divórcios conturbados e desgastantes. Por outro lado, é bem verdade que, já tendo deixado de existir o objeto da sociedade, como já afirmei, e dado que os episódios que ora descrevo tenham ocorrido há muitos anos, é também possível que tal revelação tivesse pouco ou nenhum impacto no transcurso da vida de alguém. Em todo caso, e pelo sim e pelo não, a prudência e o sigilo nunca fizeram mal a ninguém, razão pela qual insisto na justa discrição. 
          A prova cabal e gritante da indissolubilidade desse tipo de sociedade é a notória maior aproximação e bem querer mútuo de seus envolvidos. Sim, sabendo-se sócios passam a nutrir um pelo outro uma espécie de respeito maior, que beira a veneração; andam a cochichar pelos cantos, a trocar segredinhos ao pé do ouvido, a fazerem-se confidências indizíveis... Os de fora custam a entender o motivo que os une e se escandalizam ao constatar que, mesmo passados anos a fio, ainda seguem a falar baixinho entre si e com tal e qual languidez que afronta e causa inveja. Olham-se tão ternamente que os mais maldosos se erguem em suspeitas infundadas. Com efeito, estão absortos em sua cumplicidade indissolúvel. Quando se põem a conversar, dir-se-ia que se esquecem do mundo em volta, e se alguém lhes aborda é notória a pressa em se desfazer do incauto e intruso. 
          Ora, tudo começou há anos quando ambos eram plantonistas da mesma equipe, um cirurgião, o outro mais ainda. Os tempos eram românticos e, embora usassem alianças, não se sentiam ligados por laços tão fortes quanto pretendessem os outros. Até que travaram conhecimento com aquela que seria o verdadeiro elo entre ambos: – Amanda, uma linda e estonteante acadêmica do último ano de medicina. Serei o mais sucinto possível. Ambos se viram enamorados da pequena. E passaram, cada um sem se dar conta do outro, a flertar-lhe o quanto lhes era possível em meio aos plantões turbulentos e estafantes. Devo dizer que ela era a catarse de ambos em meio àquele cenário de sangue, urina, fezes e outros odores degradantes. A gente feia do entorno exacerbava-a como a uma Vênus fora de seu altar. E sonhavam, cada um na intimidade, com o dia em que a teriam nos braços. Cada um percebia o galanteio do outro, mas não se consideravam rivais nem concorrentes. Antes desprezavam um ao outro por duvidarem que ela cedesse às investidas, e ao mesmo tempo crescia em cada um a admiração e respeito mútuos, por serem cúmplices declarados naquela paixão espontânea por espécime tão raro do gênero feminino. Esse aparente paradoxo não lhes passava despercebido, e vieram a prevalecer os sentimentos mais nobres. Com o tempo, cada um percebia a crescente intimidade do outro com a beldade, mas a atribuíam à sua refinada e austera educação. Era filha de um militar de altíssima patente que, sabia-se, primava pelo rigor na educação das filhas. Por isso ela se mostrava tão expansiva e segura de si à frente daqueles dois gigantes filhos de Esculápio. 
          A cada turno de plantão nenhuma novidade surgia, de modo que a ideia reinante era a de que ninguém lograra êxito em seu intento principal. A verdade, porém, é que ambos estavam saindo com a Vênus sem o conhecimento do outro. Assumamos sem rodeios: – ela de tola e austera nada tinha. Estava mais para Sylvia Saint do que para Letícia Sabatella. Em suma: – estava a enamorar-se de ambos, que se sentiam tão envaidecidos por serem objetos “únicos” da escolha daquela beldade raríssima. Quando tomaram conhecimento do fato, não se pense que houve alvoroço ou constrangimentos. Firmaram, com efeito e em silêncio, uma espécie de pacto. Diferentemente dos clássicos triângulos amorosos cujo destino está fadado à tragédia, fechou-se o cerco do triunvirato e ambos, Amorim e o outro, se queriam ainda mais entre si numa amizade sincera: – eram sócios usando chapéu de touro e nariz de palhaço. Sócios dos e nos prazeres de uma beldade ímpar. Como não se puderam excluir mutuamente, ganharam forças em sua sociedade enamorada. E ficaram ainda mais amigos no correr dos anos, mesmo e até depois da partida de seu objeto de desejo.
          Faltou-lhes descobrir, entretanto, se houve mais alguém, dentro ou fora do hospital, que também tenha se servido, sincronicamente, das carnes da pequena. Se houve, pedem-me os sócios, que avise-me com discrição. Eles me cederam procuração a fim de formar um ou dois times de futebol society a se enfrentarem numa confraternização de Natal nos campos da Rogaciano Leite. Tudo muito sigiloso e com direito a duas cervejas ao final do embate. E sem nenhum ressentimento por parte de ninguém.   

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