Foi
há muito tempo. Sim, há quase 30 anos. Era um velório em casa.
Sim, o defunto de antigamente era velado em casa.
Antes
se morava em casas. Os prédios residenciais existiam, mas eram de
uma raridade infinita. E os que tinham o disparate de existir não
subiam mais que três ou quatro andares. Os apartamentos desses
prédios eram enormes, quase do tamanho de uma casa. Era como se os
prédios fossem compostos de inúmeras casas, empilhadas em duas ou
mais colunas. (Hoje há prédios com casas empilhadas em coluna
única.)
Com
o crescimento estrondoso no número de prédios residenciais cresceu
também o preconceito da morte e a vergonha da morte. Nos prédios
residenciais há o elevador e a escada. Nem um nem outro foi
projetado para dar passagem a esquifes com defuntos a lhes rechear.
Que absurdo! Imaginem o disparate: o sujeito vai descer do décimo
andar para ir ao trabalho e, ao abrir-se a porta do elevador, dá de
cara com a família do andar de cima, descendo com seu ente querido
morto e empacotado naquele terno de madeira de lei brilhantemente
envernizada, dotado de janela de vidro e alças roliças dobráveis...
Bem se vê a virtual impossibilidade de essa cena virar realidade aos
dias de hoje.
Eis
que lá estava eu no velório e alguém puxou-me pelo braço. Queria
me apresentar alguém. Eu era um jovem médico, já na prática da
Residência em Cirurgia Geral. Meu parente, orgulhoso de mim, queria
apresentar-me o Desembargador. Eu, de minha parte, não me
impressionava com Juízes ou Desembargadores.
Meu
parente passou ao homem meu résumé,
exibindo nas fuças o orgulho por ter um médico na família. O
homem estava derreado na
cadeira de balanço, exibindo na cabeça suas cãs que mais se
assemelhavam a um chinó confeccionado em felpudo e macio algodão.
Usava um par de óculos
enormes e escuros. Retirou-os momentaneamente para coçar o sobrolho
enquanto ouvia o parente puxa-sacos. Nesse instante, pude ver-lhe os
olhos, verdes como um par de esmeraldas. Sua
tez era alva e corada, como só aos bem-nascidos ocorre, apesar de
seus presumíveis 80 anos.
Quando meu parente cessou a ode que me fazia, talvez tentando impressioná-lo, ele comentou seco:
Quando meu parente cessou a ode que me fazia, talvez tentando impressioná-lo, ele comentou seco:
-“O
advogado e a Justiça são mais necessários do que vocês médicos e
a medicina”...
Fez
uma breve pausa para pigarrear e continuou:
-”...porque
a liberdade é mais importante do que a própria vida. Sem liberdade,
de que vale a vida”?...
Permaneci
calado ante a essa constatação para mim inusitada. Outrossim, quem
seria eu do “alto” de meus vinte e poucos anos? Nada, eis a
verdade. Eu nada era. Eu nada sabia. Calado estava, calado permaneci,
limitando-me a cumprimentá-lo com uma
deferência.
Não
sei se lhes contei que o Amorim – sim, reapareceu o Amorim depois
de um longo e tenebroso inverno – está já há algum tempo às
voltas com a Justiça. Negócio de vara de família, divórcio,
partilha de bens, pensão alimentícia, e por aí vai. O pobre amigo
exaspera-se com a demora e até com o que considera omissão dessa
mesma Justiça. Exaspera-se com os prazos. Tudo na Justiça
brasileira, é do conhecimento de todos, é 5 a 10 vezes mais
demorado, por exemplo, do que a gestação da aliá, a fêmea do
elefante, que beira os 2 anos.
Não
fossem os já alargados prazos constantes nos diversos Códigos de
Processo Penal, Civil, etc. etc. etc., ainda há os chamados
“recessos” forenses os quais nada têm a ver com as férias do
pessoal da Justiça, entre eles esses senhores que se imaginam acima
do Bem e do Mal. Nesses “recessos” a Justiça funciona em regime
de plantão, absolutamente insuficiente para dar conta da demanda que
lhe bate à porta.
Pena
que Sua Excelência, o idoso Desembargador a quem me introduziram
naquele longínquo velório está, muito provavelmente, morto, a não
ser que seja um daqueles centenários imortais e “imorríveis”.
Se vivo fosse, perguntar-lhe-ia como é possível que algo tão mais
importante do que a vida humana
seja tão moroso, tão incompetente em prestar o serviço a que se
propõe ao povo, negando-lhe
a liberdade que tanto almejam e imperdoavelmente prolongando sua
agonia por lapso de tempo tão amplo? Sim, porque a liberdade a
que
me refiro agora não
é necessariamente a de ir e vir, mas a libertadora decisão da
Justiça para seus litígios intermináveis e torturantes. Quem
busca uma decisão judicial a quer já, sem demora, sem delongas.
Enquanto os médicos estão
ali no plantão ininterrupto 365 dias e noites ao ano, sem direito a
“recessos” irresponsáveis e criminosos, porquanto o bem valioso,
a vida, merece zelo e depende dessa assistência que nunca acaba, os
“ícones” da Justiça se retiram sem ligar a mínima que haja
alguém angustiado e até tolhido em seus direitos, impotentes
e desejosos de se verem livres da disputa. Imaginem
se os médicos das emergências resolvessem sair em “recesso”
duas vezes ao ano como fazem esses “picas-grossas” insensíveis.
Haveria sofrimento, dor, mutilação e morte e
não
sobrariam clientes a baterem
na porta da Justiça nem mesmo para se angustiar. Estariam todos
mortos ou impossibilitados de
lá irem e a importância
capital da Justiça não faria o menor sentido. Eu
diria ao honrado Desembargador de 30 anos atrás que, se a vida tem
menos importância que a liberdade, a Justiça brasileira tem tornado
a vida do brasileiro comum que dela precisa uma
miséria, uma miséria sem importância alguma.
Uma justiça retardada é uma justiça negada (Martin
Luther King Jr.)
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