Já
disse várias vezes de minha ojeriza aos jornais locais. Hoje, por
exemplo, uma amiga me enviou por mensagem no telefone portátil o
link de uma reportagem de certo periódico. A matéria dava conta de
uma empresa norte-americana produtora de vinhos cujo nome agora me
escapa e que acaba de engarrafar o vinho Fortaleza. Ora, o
vinho foi inspirado, segundo a matéria, em nossa cidade.
(Lembrei
agorinha o nome da vinícola: Villa Bellezza; assim mesmo, com essa
abundância de eles e zês.)
Eu
disse que o processo de criação do vinho foi inspirado em nossa
cidade? Se disse, acho que me equivoquei... Não, não me equivoquei.
De fato, o proprietário da vinícola, que “sempre foi interessado
em diferentes culturas e países, sempre gostou muito do nome
Fortaleza e sempre perguntava sobre seu significado”, após
ouvir da enóloga cearense Elea Aguiar – ela é funcionária da
vinícola – sobre a origem e a história de Fortaleza, “adorou a
ideia de nomear um vinho que inspirasse um pouco a cidade”.
O
proprietário da ilustre empresa, Derick Dahlen, resolveu criar o
Fortaleza, “um vinho tinto fino seco e que possui aromas
complexos de frutas pretas, sabor de amoras e ameixas”, porque
gostava do nome de nossa cidade. Ora, confesso que, ao ler a
descrição do sabor do Fortaleza, encheu-se-me a boca. Tive
abundante sialorreia, tamanha a vontade de degustá-lo. De fato,
também essa Fortaleza-cidade já teve sabores, aromas e perfumes
complexos, atrativos de seus mil encantos. Entretanto, lamentável e
forçoso dizer, como a nobre fruta que cai da árvore que a produziu
abandonada às intempéries e aos germes peçonhentos da
decomposição, a Fortaleza-cidade também degenerou, também azedou,
também apodreceu... Deixada ao desamparo e carregando dentro de si
inconsequências históricas e fissuras sociais perenizadas, cresceu
como a metástase das malignidades implacáveis que corroem o
organismo aos poucos para depois abandonar-lhe a carcaça deitada à
margem, como cadáver indigente... A Fortaleza-cidade do dia-a-dia de
seus filhos seria a disgeusia do degustador do Fortaleza,
o vinho norte-americano que encheu de orgulho bairrista a
enóloga cearense que ganha em dólar, o sonho de centenas de
milhares de seus filhos esclarecidos que custam inexplicavelmente
a entender
o porquê de tamanha degradação.
Não
bastasse essa simples e pouco pretensiosa reportagem, deparo-me,
desta vez na rede social, com outras, sim, outras três matérias
jornalísticas que me fisgaram tão logo lhes li o título. A
primeira delas me encheu de depressivo horror. A prefeitura de
Fortaleza vai realizar, na festa de réveillon
deste ano no próximo dia 31 de dezembro, a maior queima de fogos do
país. Seguramente irá contratar artistas a peso de ouro para animar
(?) a festa. Em suma, o país mergulhado numa crise econômica sem
precedentes, os serviços básicos, como a saúde pública,
assistindo à morte e ao sofrimento de milhares de fortalezenses por
corte no repasse de recursos para o setor, o desemprego grassando, a
miséria aumentando... e a prefeitura de Fortaleza gastando na “maior
queima de fogos” do país. Está-se
tentando inflamar um outro orgulho bairrista inútil e perverso...
A
segunda reportagem li-a cheio de suspeitas e desconfianças. Ela dá
conta da ocupação de 100% dos leitos de hotelaria da cidade por
ocasião da festa onde ocorrerá a tal queima de fogos de
artifício. O que excitava minhas suspeitas era a seguinte questão –
há alguma relação entre a queima de fogos promovida pela
irresponsável prefeitura de Fortaleza e os 100% de ocupação da
rede hoteleira da cidade? Para mim, não apenas há uma
relação mais que direta, mas uma relação promíscua e criminosa.
Os leitores a julguem.
A
terceira reportagem informa que os funcionários da Saúde do Estado
estão “devendo” mais de 136 mil horas de trabalho a seu patrão.
E por quê? Porque, com a vigência do chamado “ponto eletrônico”,
constatou-se que há sérias “fragilidades” na avaliação das
“horas trabalhadas” do pessoal da Saúde.
Não
há a menor sombra de dúvida que é legítimo, por parte do Estado
empregador, cobrar de seus funcionários a que cumpram a carga
horária estipulada à realização do concurso público. Causa
espécie, entretanto, dois aspectos. Primeiro, o Estado, até então
omisso quanto à cobrança deste item, não estava preocupado com o
cumprimento desta carga horária. Dizendo assim parece que ninguém
trabalhava, uma suposição que está tão longe da verdade quanto a
Terra está longe de Betelgeuse.
Os
funcionários dos hospitais geridos pelo Estado do Ceará trabalham e
sempre trabalharam cumprido a sua carga horária. As supostas 136 mil
horas em falta são apenas o atestado de incompetência do Estado em
avaliar, em sua míope visão burocrática, o que o funcionalismo tem
feito ao longo dos anos. Quero dizer apenas que o funcionário do
Estado tem trabalhado com afinco e no cumprimento de suas obrigações
de carga horária todos esses anos, apesar da “ausência” de seu
patrão. A explicação para a recente “preocupação” do gestor
para este item, e aqui está o segundo aspecto a nos causar espécie,
deve-se apenas a uma conjunção incômoda, para o poder público, de
algumas variáveis: primeiro, a falência completa da Saúde Pública
devido a incompetência e irresponsabilidade do Estado e, segundo, à
consequente necessidade do ente estatal de, reconhecidas a sua
incompetência e irresponsabilidade, tomar alguma “atitude” que
faça parecer que algo está sendo feito quando, de fato, nada do que
realmente precisa ser feito está sendo. A prova disso é a queima
irresponsável e inconsequente de fogos de artifício num cenário de
caos nas finanças públicas. Estivéssemos num país sério e estes
senhores estariam sendo presos sem demora. Estão vindo a público
demonstrar um pretenso zelo quando de fato são os carrascos daquilo
que pretendem salvar.
Há
sérias distorções no cumprimento desta carga horária? Certamente
que, sim, há; distorções pontuais que o Estado bem conhece e que,
sem delongas, existem, mais uma vez, por sua ausência na
fiscalização e zelo. Mas daí a vir a público afirmar com alarde
que mais de 136 mil horas de trabalho a ele são devidas já é
demais. O Estado, que no Brasil tudo pode, está se aproveitando de
sua própria ingerência, incompetência e irresponsabilidade para
desviar de si o dedo que lhe aponta a culpa. A caótica e criminosa
situação da Saúde Pública não se deve a essas “horas devidas”
mas, sim, ao colapso da gestão estatal, notadamente no financiamento
fruto da corrupção, da corrupção e da corrupção dos agentes
estatais. Os noticiários diários deixam claro – a corrupção
brasileira atingiu patamares intoleráveis. O que estamos assistindo,
mais uma vez, é o corrupto em ação, tentando culpar a terceiros
pelos seus graves crimes.
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