Eu ia escrever sobre minha
inércia e desisti. Ato contínuo, voltei a pensar no assunto e reconsiderei a
possibilidade de ainda escrever sobre ela. Será que consigo?
Diz
a física que inércia é a tendência de um corpo permanecer como está. Se bem me
lembro, ela é o tema central da primeira lei de sir Isaac Newton. Diz lá o
seguinte: na ausência de uma força um corpo em repouso permanecerá em repouso,
e um corpo em movimento permanecerá em movimento indefinidamente e em
velocidade constante. Corrijam-me lá os entendidos se me equivoco. Se não, aí
está.
Antes
de ir adiante, não sei se já ouviram falar do parecer. O que é um “parecer”? A
definição mais sucinta que encontrei diz que “é uma opinião sobre uma
determinada situação que exija conhecimentos técnicos”. Presume-se daí que o
parecer médico é uma “opinião” de um médico sobre determinada situação clínica
de um paciente. Vi outro dia alguém querer saber a diferença entre um parecer
médico e uma consulta médica. Quem respondeu disse o seguinte: “numa consulta
médica o profissional avalia, diagnostica, examina e medica, se necessário, o
paciente”. E continuou: “o parecer médico é dado quando o paciente precisa da
avaliação de um profissional para um caso específico”.
Quando
se fala em “profissional para um caso específico” evoca-se a idéia de
“especialista”. Então, diríamos que o parecer médico é solicitado quando o
médico não especialista solicita a avaliação de um especialista em determinada
área. O médico não especialista pode ser um especialista em outra área que não
aquela para a qual pede o parecer, ou pode ser um médico generalista/clínico
geral. O generalista á aquele médico que concluiu o curso de medicina e não
cursou nenhuma especialização/pós-graduação, ao passo que o clínico geral é
aquele que tem Residência Médica em Clínica Médica ou Clínica Geral.
Outro
dia escrevi sobre “o clínico”. Dizia que ele é “o médico”, porquanto seus
conhecimentos abarcam todos os ramos da medicina numa profundidade de Fossas
Marianas. O clínico que é clínico dá o diagnóstico de qualquer especialidade e
referencia o paciente apenas e tão-somente para o tratamento com o
especialista. O clínico que é clínico funciona de padre, psicólogo, confidente,
conselheiro, pastor, ouvinte, e tudo o mais que um ser humano resignado e sábio
possa oferecer a seu igual. “O clínico” dá tanta atenção a seu paciente que
gasta muito de seu tempo com ele, sendo-lhe literalmente impossível acumular
pacientes na sala de espera.
É
bem conhecido o episódio envolvendo o grande médico desta terra, doutor George
Magalhães, que se autodiagnosticou como portador de apendicite aguda. Ligou,
então, para o cirurgião de sua confiança e disse-lhe: -“Fulano, me encontra no
hospital daqui a meia hora que eu estou com apendicite aguda e você vai me
operar!”
Não
tarda e levantar-se-ão de seus buracos - eu ia dizer trincheiras - os idiotas
da objetividade, como diria Nelson Rodrigues, a argumentar que hoje não é mais
possível ser médico assim, que o corre-corre do médico não lhe permite dedicar
tanto tempo a seu paciente, que o modelo de nosso sistema de saúde corrompeu o
exercício, que o médico é vítima do sistema, et cetera e tal. Bem se vê que não lhes seria mesmo possível usar as trincheiras - nelas estão soldados a lutar.
De
tanto falar não vou ao ponto. O que quero dizer é que se criou, e cada vez mais
se hipertrofia, a cultura do “parecer” no meio médico, mormente em grandes
hospitais públicos. Funciona assim. Como o médico não mais examina seu paciente,
põe outro a examiná-lo utilizando-se do pedido de “parecer”. Ora, ser especialista
em traumatologia não implica em abrir mão do exame da circulação do membro de
paciente vítima de trauma sobre aquele membro. A recíproca é absolutamente
verdadeira - o cirurgião vascular deve examinar ossos e articulações em
pacientes vítimas de trauma sobre membros, bem como solicitar os respectivos
exames radiológicos se julgar necessário. Caso encontre fratura e/ou problemas
articulares lançará mão do parecer do traumatologista, que encaminhará a vítima ao
tratamento adequado. O que se faz hoje? Chama-se
o traumatologista para examinar o paciente quanto à existência de problemas ósteo-articulares.
Pergunto: o especialista desaprende o que aprendeu sobre as áreas nas quais não
é especialista?
Cada
vez mais ganha terreno a anedota que define o que seja o especialista e o que
seja o generalista: o especialista é aquele que sabe quase tudo de quase nada;
o especialista é o que sabe nada de quase tudo. Observem que a anedota nem leva
em conta a existência de “o clínico”. Pressupõe sua completa extinção. Daqui a
65 milhões de anos serão lembrados como hoje se faz com os dinossauros.
E
minha inércia? Não há perigo de esquecê-la. O sujeito que se incomoda, que não
se conforma com o engano e o erro, que não se adapta aos maus modos ainda nunca
ficará inerte. É um neurótico de carteirinha. Amém.
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