Outro dia, num sarau em casa de
amigos, conversava com meu recém apresentado amigo Ostramundo Nóia, psiquiatra
de elevada estirpe entre seus pares e de boa reputação entre seus clientes.
(Custa-me entender como pode um cliente de qualquer psiquiatra ser capaz de
avaliar a qualidade de seu desempenho, mas, em todo caso, vá lá que seja...)
Era uma reunião para recepcionar um casal de poloneses que se perderam por
essas bandas, amigos do casal Nóia. A conversa era em inglês, já que nenhum dos
convivas falava a língua dos ilustres convidados, nem eles arranhavam uma
vírgula do português.
Lá
pelas tantas as uísques-calibradas mentes se entretinham em amenidades e,
exceto medicina, de tudo se falava. Eu julgava ser tudo muito bom já que havia,
então, se não uma maioria absoluta de médicos, pelo menos um número
considerável: três ao todo – o casal Nóia e eu. É sabido da tendência dos
médicos, quando em reuniões sociais, de puxar a sardinha para seu lado e
encetar assuntos referentes ao seu trabalho. Na oportunidade essa tendência se
dissipou quando, às apresentações, a anfitriã anunciou ao casal psiquiatra que
também eu era discípulo de Asclepius. Ao responder sobre qual a minha
especialidade, toda e qualquer comunicação entre nós em torno do assunto
“medicina” se dissolveu como um picolé Pardal à canícula da praia ensolarada. É
conhecida a reserva dos médicos da mente aos maus olores do corpo e também aos
que cuidam a que ele se dissipe. Assim, conversou-se sobre o resto. Até que...
...meu
caro Ostramundo comentou de um projeto em andamento: estavam a escrever um
livro cujo tema central seria um estudo da tendência dos que sofrem do
transtorno bipolar ao suicídio. E arrematou: -“Meu editor me convocou a uma
reunião porque eu escrevera a palavra ‘suicídio’ bem mais vezes que a expressão
‘transtorno bipolar’!” E me explicou essa nova ciência que é a análise do discurso. Sem ainda ter lido
nada sobre o que me parecia ser tão interessante assunto, indaguei ao nobre
amigo se a análise editorial em seu texto não lhe teria exposto um Freudian slip (ato falho), ao que ele
foi categórico: -“Em absoluto!” Alguns uísques depois nos despedimos.
Não
sei se têm percebido o quanto tenho lido jornais. Assumo: disse inúmeras vezes
que não lia jornais. De fato, não lia jornais, mas de uns tempos pra cá eles
têm se tornado minha notória e deslavada obsessão. Minto. Não são eles em si a obsessão,
mas seu conteúdo. A conversa travada com meu amigo Dr. Nóia fez tudo se tornar
claro feito água – cresce em mim cada vez mais o ardente desejo por uma leitura
do discurso impresso nesses veículos de comunicação. Ainda que vários autores
lhes redijam as páginas, há de lá estar a mensagem maior que emana dos vários
discursos e reportagens que lá se lêem.
Segundo
a Wikipédia, uma das leituras possíveis desta análise é a de que “todo discurso
é uma construção social, não individual, e que só pode ser analisado
considerando seu contexto histórico-social, suas condições de
produção; significa ainda que o discurso reflete uma visão de mundo
determinada, necessariamente vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em que
vive(m)”. Seria então possível uma
análise do discurso de uma peça produzida por múltiplos autores como é o
jornal? Seguramente tal peça literária de nosso dia-a-dia emite os sinais que
capta de nosso tempo e lugar, como a reverberar nossas mais eloqüentes dores,
nossos mais incontidos estupores, nossos medos mais enraizados e renitentes,
nossos maiores clamores e mesmo a mudez de nossas indignações.
Vejam, a
título de exemplo, a manchete maior de nosso O Povo de hoje, em negrito como lá está: Ferroviário é rebaixado. A matéria se debruça a esmiuçar o fato
inédito de este tradicional clube do futebol local ter sido rebaixado à nossa
segunda divisão. Todos sabem que os nossos melhores da primeira são dos piores do
país; agora, imaginem-se os da segunda. Apesar da importância “rabo de fila”
que este tema tem em nossas prioridades, elegê-lo como manchete principal
emite-nos pelo menos um sinal: vamos dar uma relaxada que a coisa ‘tá braba! E,
a propósito, é por demais conhecida a ausência de emoção que acomete os
torcedores deste medíocre time de futebol que é o Ferroviário. Sua regularidade
no nível inferior é tão grande e já há tanto se prolonga que não vejo nenhuma
surpresa na imponente manchete. Seus torcedores já se acostumaram à sina. Seu fleugmatismo
chega a ser exasperante.
Comparada à
do O Povo, a manchete do Diário do Nordeste exalta tema
importante, mas não menos exasperante que a paciência dos torcedores corais – a
lentidão de nossa justiça. Diz ela: Ações
ficam até 5 anos nos Juizados Especiais. Atentem: nos Juizados Especiais!, onde a média deveria ser de 75 dias. Nada disso é inédito em nossa
sofrida e lamentável crônica. Parece que os poderosos de outrora perderam de
fato o poder a julgar pela vitória tardia do senhor Tasso Jereissati, nos
tribunais, numa ação por danos morais movida contra o atual senador José
Pimentel. É matéria dos jornais de hoje. A ação teve início em 2001, quando um
era governador de estado e o outro deputado federal. A sentença saiu quase 11
anos depois, e o senhor Jereissati receberá menos de 10% do valor que pleiteava
a título de indenização – ele pedia R$ 500 mil. Ele continua muito rico, mas
não exerce hoje função pública e tem zero de poder, ao passo que o outro não
possui riqueza, mas é senador da república. É o poder do dinheiro contra o
poder político, o poder do poder. Bem se vê que ambos têm, de fato, muito poder
– o senador paga fácil os R$ 30 mil, mas lhe fica a pecha de condenado, o que
mostra alguma força do senhor Jereissati. Seria possível outra leitura?
Respondam-me lá os experts em análise
de discursos.
E o que
dizer da queda do ex-governador Lúcio Alcântara no buraco da Avenida Beira-Mar,
zona “nobre” desta decadente cidade (Lúcio
cai da bicicleta e é internado)? A bicicleta do ilustre teve a roda aprisionada
dentro do buraco, o que nos indica que ele não deve ser um buraco muito
pequeno. O homem foi internado com suspeita de traumatismo crânio-encefálico.
Quantos fortalezenses caem nos buracos todos os dias? Sabe-se lá! Com tantos
buracos por aí, é provável e possível que um montão deles. Só que são os
ilustres desconhecidos que não se tornam manchete, exceção feita a se morressem
ao cair no buraco. O lado positivo da história é que o ex ou atual homem
público vítima da incompetência do serviço público tem a chance de sentir na
própria pele o que sente o cidadão comum vítima da mesma incompetência. A
reportagem não nos informa o que ele fará quanto à existência de tamanho buraco
à nobre avenida. Omite-se a reportagem ou omite-se o homem esclarecido?
Para
encerrar, convido a quem teve a paciência de me ler até agora para ler o artigo
Fortaleza quer soluções, do senador
Inácio Arruda (http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/04/16/noticiasjornalopiniao,2821589/fortaleza-quer-solucoes.shtml).
Quem ainda dispuser de algum tempo que o leia. Mas se não o fizer nada perderá.
O ilustríssimo político lá diz o que todos os concidadãos estão carecas de saber.
Algumas frases do homem, fisgadas do texto repleto de lingüiças: “A capital precisa
de um projeto avançado...”, “...é necessário um projeto político ousado...”, “requer
um projeto avançado...”, “este é o grande desafio estratégico:...”, “precisamos
de uma ação política destemida...”, e por aí vai. É ou não discurso de candidato
a prefeito? em plena coluna do jornal! Aí pergunto: e pode?
No mais, nossos
periódicos emanam violência, assaltos, roubos, desvios de dinheiro público, e tudo
o de pior que tem ficado cada vez pior. E pergunto novamente: qual a leitura de
todo esse discurso? Qual a leitura do discurso dos jornais ao qual nossa sociedade
tem dado origem?
Tá genial cara.
ResponderExcluirBritto