domingo, 20 de julho de 2014

AMIGOS: - TRIBUTO AO HOMEM SOLITÁRIO

          Por muito tempo valorizei os amigos. Imputava-lhes a mais elevada estima e consideração. Considerava serem eles a mais completa relação que se poderia ter. E por aí a coisa ia: ouvia e guardava-lhes os segredos; com cumplicidade encobria-lhes os erros e descalabros; resguardava-me de indiscrições incômodas; mantinha silêncio em seus momentos de introspecção e meditação; respeitava seus momentos de ira e zanga; alegrava-me imensa e verdadeiramente com seus sucessos; e sentia opressões no peito com suas desventuras e vicissitudes. E jamais pedia provas de amizade requerendo favores impossíveis. Guardava-me muitíssimo perto do amigo, mas tinha extremo cuidado a não interferir nos rumos de sua vida.
          Não direi que hoje lhes dou menor crédito ou valor, mas algo mudou, eu sei. Sim, já me faço a pergunta: quem é o amigo? Chamá-lo amigo verdadeiro seria um pleonasmo. Ou é amigo ou não é. A não ser que se queira dissertar sobre as mazelas da amizade paraguaia – que me perdoem os nativos daquela terra – permanece imutável e eterna a questão: quem é o amigo? Ele é o que está atrás da porta? Ou está na cozinha? Ou na casa vizinha? No trabalho? No meio da multidão? No cemitério? De fato, é possível que nem ainda tenha nascido, ou que more num país distante.
          Antes de tudo isso, julgava ser muito querido entre os amigos e pelas pessoas em geral. Por ser um sujeito dado às chacotas, pensava agradar a todos. Veio, então, o dia em que fui posto à prova. Com o firme propósito de sempre cultivar boas relações, me parecia inadmissível contrariar alguém de meu convívio. E o que aconteceu? Conheci o mau caráter. Dirá alguém que devo ser muito estúpido por ainda não o conhecer àquela altura de minha vida, mas essa é a verdade fatal. Ali, diante de mim, estava o mau caráter. Ora, eu tinha amigos que eram maus caracteres e não o sabia. Imaginava, em minha pusilânime e imperdoável inocência, que algumas pessoas, quase todas, o detestavam por ele ser um sujeito meio verborréico, meio fanfarrão. Ainda que me chegassem aos ouvidos histórias de suas canalhices diárias, eu o justificava de uma maneira ou de outra. Afinal, para que servem os amigos?
          Passei, então, a perceber que o mau caráter é exatamente assim: insidioso. Ele faz a patifaria, mas não se deixa ser visto. Aprendi, então, que o mau caráter tem uma de duas características, visto que são mutuamente exclusivas: ou todos o adoram, ou todos o detestam – exceto por um ou outro oligofrênico como eu. Conclusão: se todos gostam de mim sou, de alguma forma, mais um canalha a pulular por este mundo.
E foi justamente nisso que consistiu minha provação. Comecei a me trocar e a me indignar com pessoas que tinham comportamento reprovável com os doentes. Para minha felicidade, minha indignação me redimiu. Tenho ganhado, assim, alguns não-amigos. Inimigos? Não chega a ser o caso, posto que neste nível a morte de uma das partes passa a ser uma possibilidade bem definida.
Do campo profissional a coisa se alastrou para outros setores de minha curta vida. A essas alturas, tenho bem menos telefones em minha agenda, e a julgar pelo rumo dos acontecimentos, temo que já não seja mais necessário ter uma. Não que minha memória seja infalível, ou que eu seja a fina flor da perfeição e de modelo de caráter. Nada disso. Errar todos erram, cometer desatinos todos cometem. Somente a intensidade da tristeza que se instala no coração de um homem quando percebe seu erro ou prejudica alguém mede o seu valor e seu caráter. O resto é conversa fiada.

Fernando Cavalcanti, Rio, 04.01.1999 

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