Ligou-me ontem à noite uma amiga para uma consultoria. Queria que eu a ajudasse a encontrar um neurologista que atendesse sua amiga em seu consultório particular. Hoje pela manhã fiz o que ela pediu. Indiquei um excelente neurologista a uma consulta no valor de duzentos reais. Ela deu um pulo: -“Nossa! Que coisa cara!” Eu, que sou terminantemente contra pechinchar a um prestador de serviço, retruquei calma e polidamente: -“Pelo contrário. Está muito barato!” E saí a enumerar os benefícios que a senhora sua amiga teria por fazer esta consulta. Coloquei-me à disposição caso ela necessitasse fazer exames complementares: eu os conseguiria no serviço público. Assim, ela não gastaria mais do que os duzentos reais.
Hoje vi no noticiário o lançamento, por parte de empresas que vendem planos de saúde, de um novo produto: o plano de saúde ambulatorial. É basicamente o seguinte: o sujeito tem direito a consultas e exames simples (sangue, urina, raios X simples, etc.), e mais nada. Vejam bem: mais nada. Se precisar de uma tomografia, não vai ter tomografia. Vai ter de se dirigir ao serviço público. Presumo que o valor da consulta pago aos profissionais que atendem esses pacientes seja o mesmo que é pago quando os profissionais atendem pacientes que têm planos que dão cobertura mais ampla. Para os profissionais médicos não muda nada. Vão ganhar seus quarenta, quarenta e cinco reais brutos e estamos conversados. Esses planos estão sendo vendidos a trinta e cinco, quarenta reais. Quem os comprar vai pagar uma mensalidade nesse valor.
Para a consulta com um médico há o limite de uma consulta/mês por profissional, como nos demais planos. Limitam-se as consultas com outros profissionais da saúde a seis consultas ou sessões por ano.
Sabe-se que o maior volume dos gastos em saúde é originado por exames complementares, sejam exames caros ou não. Sabe-se que esses gastos têm uma relação direta com a qualidade da consulta médica: quanto mais mal-feita a consulta, maiores os gastos com exames complementares. Entenda-se mal-feita a consulta em que não se estabelece uma relação de confiança e afetiva entre o médico e o paciente. Sem ela, temos dois inimigos potenciais frente a frente, prontos para o litígio caso haja o menor e mais insignificante deslize ou mal-entendido.
Os médicos justificam a consulta mal feita por ganharem pouco. Precisam fazer volume de consultas: mais e mais consultas por mês. Atendem em série. Para atender às demandas de seu status correm o dia todo. Operam à noite e à madrugada, quando deveriam estar repousando ou se relacionando com a família e amigos. Vendem todo seu tempo à profissão num ciclo perverso. Fazem-no por dinheiro. Perderam de vista a missão.
Por um curtíssimo período de tempo a profissão médica no Brasil gozou de elevado respeito e reconhecimento, materializados em larga pecúnia pelos pacientes e suas famílias, aos notáveis clínicos e cirurgiões de outrora. Os diagnósticos eram clínicos. Quando se é bem pago, tem-se em vista a missão e esquece-se o dinheiro. Do contrário, esquece-se a missão. Perde-se o contato com a voz interior. Isso não deve ter durado mais de cinqüenta ou sessenta anos, quero crer.
Aos poucos, com o sucateamento das instituições públicas de saúde, o aviltamento do salário do médico e dos profissionais de saúde servidores públicos e os crescentes custos com a saúde, aliados a políticas incompetentes para a prevenção de doenças e educação de qualidade, chegou-se onde estamos hoje. A violência crescente, a princípio uma epidemia, tornou-se endêmica e passou a constituir um ônus a mais para a saúde pública. Não é possível vislumbrar uma solução para esse estado de coisas em pelo menos uma ou duas gerações. Minha geração estará morta e esse estado de coisas ainda estará a viger, pela simples constatação da ausência completa da implantação das medidas sérias e necessárias que trarão a solução de todos esses descalabros. De fato – triste constatar – caminhamos em direção a eles, quando deveríamos tê-los evitado.
Nossa petulância e tola vaidade nos levam a vibrar com resultados pontuais, como o programa que controla a SIDA e os transplantes. Transplantamos muito porque permitimos que nossos corações, fígados, rins e córneas se deteriorem com as doenças que deveríamos prevenir ou controlar. Transplantamos muito porque nossos jovens estão sendo trucidados em nossas ruas pela violência crescente, enquanto pagamos as multas que em nada mudam o cenário. Enquanto não se chega ao empedernido coração do homem pela educação e vislumbre da arte que o amolece, pode-se elevar o valor das multas que nos cobram: nada vai mudar. Nossas tolas autoridades seguem a colher os louros políticos de seus parcos feitos com a anuência de nosso pobre de espírito povo. Por quanto tempo durará esse esdrúxulo pacto?
Fica claro, em ralação ao plano de saúde ambulatorial, que alguém teve a brilhante ideia de inventar uma solução para os elevados preços dos outros produtos. Certamente muitos o comprarão. Quando lhes apertar a necessidade de outros serviços, como internação e serviços de terapia intensiva, é provável que procurem algum direito que não têm. E nossos noticiários venderão muitos jornais com o imbróglio.
Então, pergunto aos entendidos em planos e gestores de saúde: por que, em nome de Deus, não permitem a venda do plano de saúde que, a meu ver, pode resolver a mal feita consulta e os gastos maiores dos planos de saúde? Esse plano dá direito a tudo o que o paciente necessitar, exceto a consulta médica. Por que ninguém tem essa brilhante ideia? O que a faz parecer tão fora de propósito? Se não for um impedimento legal, o que falta? E se a lei o proíbe, por que não proíbe que se faça o oposto, esse tal de plano ambulatorial?
Meus caros amigos, sou um sujeito burro, um energúmeno, um mentecapto, um troglodita. Preciso, necessito, imploro que alguém aí saia em meu socorro e me convença – porque sou teimoso, e não engulo as explicações superficiais – de que tal plano é inviável ou exclua algum cidadão brasileiro que tem a saúde garantida pela Constituição.
Com a reclamação de minha amiga quanto ao preço da consulta, caí em mim. Por que a paciente iria ao neurologista? Ela precisava mesmo era de um excelente clínico geral. Quem está doente precisa mesmo é de um clínico geral. O clínico geral é “o médico”. Mandei-a procurar o meu querido e competentíssimo amigo e compadre Chico Heli, médico de alma branca e cuja missão ainda lhe espicaça o espírito. Cobrou setenta reais a consulta. Eis aí a beleza do plano “consulta zero”: cada um põe o preço sobre a mesa. O cliente escolhe o que lhe for mais conveniente. E quem cobra presta o melhor serviço. Suspeito que a amiga de minha amiga não vai precisar fazer exame algum ao sair do consultório do meu Chico Heli. Ele adora ajudar os outros. Essa é sua missão. Como vocês acham que ela se sentirá ao sair de lá?
Fernando Cavalcanti, 11.09.2009
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