Tenho sido nos últimos tempos - ou por coincidência, ou por capricho do destino, ou por propósito dos que dizem me amar – alvo passivo de fenômeno preocupante. Tal fenômeno, longe de me excitar os brios científicos - que sou da estirpe que aprecia o estudo dos fenômenos naturais - está cada vez mais a me encher ora o saco, ora a paciência, quando não ambos.
Como bem deixa transparecer em seus escritos o meu querido amigo Fernando Cavalcanti, sou dos sujeitos reservados, frugal, e – devo dizer – entre um rega-bofe e uma boa leitura, fico com a leitura. Já se foram os anos em que me dava às patuscadas e aos prazeres da carne. Hoje, casado, faço das tripas coração para fugir das tentações mundanas. Não me converti a nada nem a religião qualquer. Prefiro viver intensamente a vida presente, já que a morte não tem turistas – de lá ninguém voltou para recomendá-la. Assim, hoje a intensidade de minha vida está entre os livros e o trabalho. Permito-me uns tragos à noite, vez ou outra, sem exageros, e em companhia da mulher. Mesmo os amigos tenho-os em pouca monta. Em suma, levo uma vida pacata, reservada, tranqüila. E é justamente aí que me apoquenta o demo, que este há de existir mesmo na ausência do Paraíso.
Vejam vocês o que ocorre: - tenho sido uma vítima constante dos convites. Além dos habituais atropelos do dia-a-dia, tenho tido que aturar o cerimonial dos malditos convites. É convite para casamento, convite para aniversário, convite para homenagear não sei quem, convite para bodas de prata de dois doidos insistentes, convite para bodas de ouro do vovô, e assim por diante. Eu – em minha abissal paciência – diria que até aí tudo bem, é tudo normal. A vida em sociedade tem dessas hipocrisias institucionais. Que se há de fazer? É preciso um mínimo de tolerância, reconheço.
O que me leva no momento ao desespero, e já me preocupo de querer fazer uma besteira, é o objeto do último convite do qual fui vítima: - o aniversário de 1 ano de um primo em segundo grau de minha mulher. Eu, do alto de meus cinqüenta e tantos anos, estou sendo pressionado diuturnamente a comparecer a esta festa inenarrável. Querem, exigem, decretam que abdique do direito de ficar comigo mesmo para estar na jubilosa festa. Dizia outro dia o Fernando Cavalcanti que vivemos a ditadura da criança. E é verdade: - a criança já percebe sua hegemonia assim, bem cedo, na primeira festa de aniversário. Daí para a dominação total é um pulo. No caso em questão, é bem possível que já esteja eu às portas da morte quando esse fedelho virar gente, sendo bem provável que mande à merda quem o exigir que me vá aos funerais. Sequer lembrará que estive em seu primeiro aniversário, e que lá estive a soprar bexigas e tomar refrigerante. Ver-me-á como um velho caduco e banguela.
Eu, por considerar o saldo do estoque de minha vida em notável queda, regozijo-me em minha própria companhia, com meus próprios afazeres. Depois dos quarenta, dizia o saudoso Casoba, qualquer quarto de hora faz falta. Então, escolho não ir aonde não quero ir. Resta-me estar disposto a pagar o preço: - ouvir da mulher a lengalenga, pacificamente, até que se vá a pilha.
Consultei meu mais experimentado guru nestes assuntos matrimoniais, o meu querido Cavalcanti, que foi sumário: - devo receber a visita inesperada de um amigo meia hora antes de sair para a festa. Segundo seu estratagema, devo já estar todo paramentado, somente esperando a maquiagem da mulher. Chegando o amigo, mando-a na frente para ir em seguida, já que não é educado ausentar-se na presença de visitas. Não há como falhar. Não levo culpa alguma. A culpa é do amigo mal-educado, que vai à casa alheia sem avisar.
O próprio Cavalcanti se apressou em escalar-se para a honrosa tarefa. Topei na hora, com uma condição:- que também ele se vá tão logo saia a mulher. Ele, sem papas na língua bem ao seu estilo, fuzilou: -“Seu anacoreta"!...E fui consultar o dicionário antes de mandá-lo à puta que o pariu.
Amorim, 19.08.2009
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