Casamento Suspenso
Foi agressiva com ele. Queria saber por que demorara mais de uma hora do consultório até sua casa.
-“Calma, minha filha!” - interveio o pai que estava no sofá e assistira a cena de ciúmes da filha com o noivo. O velho continuou: -“O doutor deve estar cansado. Passou o dia trabalhando.”
Ele se explicou com o óbvio, não menos verdade: - o consultório terminara às sete. Eram oito agora. Pequenos afazeres, pagar a secretária, o trânsito. Nada que não se pudesse entender. Ela fora realmente grosseira sem a menor necessidade.
O casamento seria dali a duas semanas. Os convites já haviam sido enviados, o buffet contratado e pago, o vestido de noiva pronto. Alguns presentes já entregues. Mobília comprada à espera no apartamento.
A cerimônia religiosa seria conjugada ao casamento civil. Mas não na igreja, que a menina era pejada. Os padres se negavam. Iria um pastor protestante.
Saiu da casa da noiva imerso em pensamentos indizíveis. A bem da verdade, não dormiu aquela noite. Revirou na cama atormentado. Os pensamentos foram partilhados com o pai, de manhã bem cedo:
-“Vou cancelar o casamento.”
O pai, homem velho e experiente, retrucou de supetão:
-“Não achas meio tarde para tomar essa decisão?”
Ele insistiu:
-“Não tem jeito.”
No dia seguinte, à noite, chamou o futuro sogro. Foi taxativo:
-“Seu Fulano, não vai haver casamento.”
O futuro sogro usou da paciência:
-“É, meu filho... eu falei com a menina ontem, dei uns conselhos... acho que podemos adiar um pouco.”
Ele cuidou que não ficasse no ar nenhum mal-entendido:
-“O senhor não entendeu: - não vou mais casar com sua filha. Nem agora, nem nunca.”
O sogro endireitou-se no sofá e, olhando nos olhos do genro, fulminou:
-“Em minha família não tem mulher descasada, moço. Ainda mais estando pejada. Em nossa terra não aceitamos isso, não. Antes disso arranjamos a que se torne viúva, se é que o doutor me entende... ”
“Paciência” - pensou ele ao sair, e sem mais nada dizer. Chegando à casa dos pais fez o comunicado definitivo. O pai sugeriu um descanso no interior, na terrinha. Ele, então, sumiu do mapa por uma semana, dez dias. Não atendia ao telefone, não recebia recados. E deu o assunto por encerrado.
Jurado de Morte
A menina não acreditou e surtou quando a mãe lhe deu a notícia da dissolução do futuro enlace. Literalmente rolou no chão em prantos e desespero, sob trajes íntimos. Dir-se-ia que nem Jó se maldisse tanto quando Deus permitiu ao demo lhe tomar toda a casa e filhos. Um espetáculo risível, não fosse lamentável ou ridículo; ou até por isso fosse cômico. Puxava os cabelos, e da cabeça saiam tufos e mais tufos. Não se urinou não se sabe ainda por quê. A doméstica da casa se afeiçoara ao noivo e lhe telefonou para lhe participar o episódio fatídico. Há mais de vinte anos estava com a família. E aproveitou para fazer uma confissão de significado tremendo:
-“Não case... Ela é doida, doutor!”
No consultório, dias depois, recebeu um telefonema:
-“O doutor não perde por esperar: vai aparecer com a boca cheia de mosca!”
Recebia todos os dias recadinhos de conteúdo semelhante. Pelo sim, pelo não, resolveu se precaver e adicionou um trabuco ao conteúdo da mala. Um amigo sugeriu:
-“Põe um bina no telefone, rapaz!”
Ele, médico de cultura técnica, saltou surpreso: -“Bina? Que troço é esse? É de vestir ou de comer?” E o amigo foi explicar o que era um aparelho identificador de chamadas.
Instalada a engenhoca, que à época era novidade, ficou à espera do próximo recado. Não tardou muito: - o sujeito jurou-lhe morte sofrida e lenta. Ele bateu o telefone e, com o número visível no aparelho revolucionário, tocou a chamada de volta. Disse a quem atendeu, num desses blefes medonhos, que sabia quem era, onde morava, o que fazia na vida; e arrematou:
-“Quem vai aparecer com a boca cheia de mosca é você, cabra safado!” O sujeito desconversou dizendo não saber do que se tratava, e ameaçou ligar para a polícia e se queixar.
–“Liga, que eu vou mostrar a eles a gravação de teus recadinhos"! O desconhecido bateu o telefone, e nunca mais o doutor recebeu jura de morte nenhuma.
Vingança na Filha
Nunca permitiu que ele visse a filha. Afastou-a, desde o nascimento, do convívio paterno. Achava-se justificada pela vergonha que ele a fizera passar. Sofreria tudo o que ela sofrera. Mais: - a filha cresceria e seria educada à sombra do pai canalha, do pai ausente, do pai que a não criaria nem daria seu amor. Ainda que a procurasse em mais velha, seria rechaçado como um desconhecido, tal o ódio e o desprezo que plantaria em seu coração. Pintaria o pai em cores negras, monstruoso, hediondo, desumano. Dele só receberia o sustento.
Anos mais tarde, tão logo a filha aprendeu a usar o telefone, ele tentou ligar para a criança que crescia longe de seu amor. Ouviu, então, uma voz infantil pronunciar frase que só adultos amargos e repletos de ranço pronunciam:
-“Não quero falar com você... Você me abandonou na barriga da mamãe.”
As lágrimas desciam pesadas sobre a face do pai inacessível. O que fazer? Nada podia fazer. Não parecia haver um adulto próximo àquela mãe inconseqüente que a fizesse ver o mal que à própria filha fazia.
Os anos endurecem o coração dos que sofrem, mas que ainda querem continuar a viver. Assim, ele se curou e se perdoou da culpa que não tinha. Hoje, aos 16 anos, a filha nunca conheceu seu pai, jamais gozou de seu amor; não sentiu a sua falta, não o chamou de pai. Obcecada em magoar o homem que a abandonou no altar, o que a mãe fez com sua filha?
"Tudo passa sobre a Terra". Mesmo as tragédias que promovemos.
Fernando Cavalcanti, 12.09.2007
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