Tendo partido a mulher de volta à sua cidade no interior, nos cafundós do Judas como ele mesmo a ela se referiu, viu-se Amorim mais solitário que a tênia intestinal. Sozinho no cafofo onde morava, uma espécie de loft de décima categoria fincado em bairro periférico e em cujas paredes a mulher escrevera seu nome, não poupando nem mesmo o reservatório de água do vaso sanitário, o amigo sentiu o peso de sua rejeição. Nunca fora um sujeito de autoestima normal. Sendo mais afeito a pensar de si mesmo os piores pensamentos possíveis e a ver a si mesmo no espelho como um indivíduo feio e nada atraente ao sexo oposto, quis morrer. Não que já lhe passasse pela cabeça naquele momento qualquer pensamento sobre se matar, mas a sensação de fracasso somada à de rejeição lhe faziam sentir à boca um gosto ácido e nauseante, como se aquilo fosse o gosto de sua própria vida. Se sua vida pudesse ser pensada como uma iguaria culinária, teria aquele sabor nauseabundo e repugnante. Frustração, derrota, rejeição, dor, tudo se somava para lhe deprimir ao extremo. Não bastasse tudo isso, também não tinha um tostão no bolso.
Com a separação da primeira mulher, mãe de seus três filhos, perdera o controle da pequena empresa que fundara. Por ser funcionário público, a lei o impedia de montar negócios e de ser proprietário de empresas. Por isso a empresa fora registrada em nome da mulher. Como ele tivesse sido um canalha abjeto – a esposa o flagrara na cama da secretária do lar, sua atual mulher, de manhã cedinho –, a dona da empresa lhe cortou o acesso aos cartões de crédito corporativos e aos lucros do negócio. Restara-lhe apenas e tão-somente o minguado salário de funcionário público, já tolhido na fonte pela ordem judicial que ordenava o pagamento da pensão dos meninos. O dinheiro que ganhava só dava para pagar aluguel naquele padrão de imóvel e em bairros considerados pouco nobres. A casa onde morara com a ex-mulher e os filhos, que pertencia ao espólio de seu pai, morto há mais de dez anos, e na qual fizera melhorias para maior conforto da família – mais um quarto, uma piscina e um deque onde recebia amigos para churrascos e festas –, ficara com eles. Até que a justiça a liberasse para venda ou qualquer outra transação, sabe-se lá quanto tempo ia. Saíra de casa com o carro e as roupas. Para trás ficaram a empresa, a casa, os filhos... A sensação de derrota era a mais completa possível. Impossível traduzir em palavras a avalanche de sentimentos que turbilhonavam no homem. Houve um momento em que estivera a conversar, a ser acudido por uma antiga amante que, após uma noite em sua companhia, escreveu-me uma mensagem onde não havia dúvidas: – ele seria, sim, capaz de fazer uma "besteira", tão baixa era sua expectativa sobre sua própria vida. Eu jamais a conheci pessoalmente, mas, ao que parecia, ele falara de mim para ela, relatando-lhe que eu estivera sempre presente durante todo o tempo de seu calvário. Eu seria um irmão para ele. Depois disso, o tempo foi-se encarregando de acomodar toda aquela tralha em algum compartimento de sua alma.
Um mês se passara desde que a mulher o largara. Ela avisara cedo, com uma semana de antecedência e tão logo retornou de viagem em visita aos pais no interior: -"Na próxima sexta vou-me embora"! Parecia conversa de gente desequilibrada. Dissera várias vezes: –"Não 'güento mais essa vidinha"...! Ele julgara que o cansaço a abatia e não deu importância. Seria apenas uma indisposição passageira, um muxoxo, coisa de mulher ranzinza; conversa pra boi dormir, como ele me relatou depois. Porém, findo o prazo estipulado e chegado o dia, a mulher partiu. Ele nada fez para impedir. E fez ainda mais: – foi levá-la à estação, demostrando um certo descaso com aquela partida até há uma semana inesperada. Vai ver não seria tão inesperada assim...
Durante um mês inteiro estiveram a trocar acusações e a fazerem-se promessas mútuas, ela no interior e ele na capital dilacerado pela dor, pela liseira e, agora, pelo ciúme. Sim, havia agora esse novíssimo ingrediente a apimentar aquele relacionamento para lá de conturbado. Nas conversas ao telefone e através de mensagens, ele implorava seu retorno, enquanto ela o acusava de ser um frouxo, um "veste calças", um homem sem atitude. Por que permitira que partisse? Por que não tentara impedir? E que negócio foi aquele de levá-la à estação? Tudo levava a crer que ele queria, sim, que ela fosse embora. Um homem que ama não permite que a mulher se vá assim, tão facilmente, tão sem resistência e tão sem luta. O que ela não sabia era do ciúme. Ele, certa vez, durante os quatro anos em que viveram juntos, descobriu que um certo varão de sua cidade com ela mantinha contato através do telefone portátil. Ela negou que o estivesse enganando. Seriam apenas amigos. Amorim não engoliu a explicação tanto que, estava eu em meu leito de repouso – seriam 2 ou 3 da madrugada –, quando me bate o telefone. Era ele. Chorava como uma criança açoitada. Diante dela, ligara para mim para relatar o que acabara de descobrir; que sua mulher o traía depois de tudo que fizera por ela; depois de tudo que perdera por ela... Conversamos até que ele se acalmasse, e fomos dormir. Depois desta fatídica noite e passado algum tempo, o assunto caiu no esquecimento. Mas agora tudo indicava que algo diferente estava para acontecer.
Tão logo ela partiu, meu amigo passou a comer o pão que o diabo amassou. Assistindo ao dia-a-dia de Amorim, os vizinhos se condoeram de seu sofrimento. O homem mais parecia um pano de chão, um trapo, um molambo desgarrado e desgraçado. Há quatro anos vivendo em bairro mais humilde, escapou-lhe a percepção de que, ali, as pessoas se notavam mais, se observavam mais umas às outras, se envolviam mais. Fosse por isso ou pelo fato de que o comportamento de sua atual companheira era natural e condizente com sua idade – era 32 anos mais jovem que ele –, todos sabiam o que acontecia quando ele não estava por perto. O dono da churrascaria que funcionava a poucos metros de seu cafofo, sua mulher, sua filha, o garçom, o funcionário do mercadinho defronte e quiçá outra penca de gente sabiam de tudo, mas nada diziam, nada comentavam, pelo menos em sua presença. Agora, vendo o homem em desgraça e em intenso sofrimento pela rapariga que se evadiu, alguém resolveu que isso não estava certo, que assim não podia ser. Ainda assim, esse alguém hesitou, não falou, não quis se envolver. Permaneceu quieto atendendo ao que diz o chavão: – em briga de marido e mulher ninguém mete a colher. O diabo é que meu amigo é desses sujeitos que não têm vergonha na cara. Com o firme propósito de obter uma explicação para a partida da mulher, como se não se lembrasse das desfeitas que lhe proporcionara, as quais ainda não relatei porque uma história como esta não é nada fácil de contar dadas suas inúmeras reviravoltas, foi à casa do vizinho mais próximo, o que parecia ter tido maior contato com a mulher, o que era revestido de maior grau de confiabilidade e o que não teria porque inventar estórias sobre a pequena. De fato, queria mesmo era ter com a vizinha, mãe zelosa de uma mocinha de seus 15 aninhos, na certeza ferrenha de que mulheres conhecem melhor mulheres por entenderem seus processos mentais e do coração e, assim, finalmente explicar o que se passava na cabeça da outra.
Antes não tivesse ido, concluiu tão logo de lá saiu. A vizinha relatara-lhe coisas assombrosas e vergonhosas, e para não encompridar muito a prosa que o leitor já se exaspera, digamos logo o conteúdo: – Amorim descobriu que nunca fora tão corno como agora. Se antes armara uma arapuca contratando um detetive particular para investigar a mãe de seus filhos sem nada encontrar, agora não precisou gastar um tostão para saber das inúmeras peraltices sexuais e amorosas de sua mulher com uma infinidade de varões das redondezas e até de bairros mais afastados. Bem próximo dali, na vizinhança, erguia-se imponente uma unidade militar do exército cujos conscritos costumavam vir bebericar, ao sair do serviço, justamente na churrascaria de seu marido, contou a vizinha que, à chegada de meu amigo, aludindo de imediato às razões que o levavam a procurá-la, foi logo dizendo que de nada sabia, que não queria se intrometer, que nada lhe indagasse porque de sua boca nada sairia. Tanto fez meu amigo, tanto implorou o infeliz, tendo chegado até às lágrimas mais legítimas de um homem abandonado pela mulher amada, que a pobre senhora não teve como não lhe relatar o que sabia. E o que sabia não era nada bom para ele que, no seu entender, era um cego de bengala e guia, desses que pedem esmola nos cruzamentos ao acender a luz vermelha do farol. De discreta a princípio, a mulher passou a contar tudo o que vira e ouvira, tudo aquilo que não se pode negar porque contra fatos não há argumentos, inclusive fazendo julgamentos sumários e, sem o menor pudor, condenando peremptoriamente o comportamento devasso da mulher de meu amigo. Ao final, antes que saísse em estado ainda mais deplorável, ouviu da vizinha conselhos maternais em tom professoral. Disse ela, com a voz aveludada e usando de seu leve porém nítido sotaque paulista:
–"Doutor, o senhor é homem de bem, logo se vê. Quando o senhor veio morar aí com essa cabrocha, vimos, de cara, que o senhor estava fazendo um mau negócio. Como se explica que um homem tão distinto e educado como o senhor vá se meter com uma dona dessa laia? Ninguém aqui entendia. Ficávamos eu e meu marido, aqui, a matutar e pensar em como o senhor agüentava tudo isso. E agora o senhor vem me dizer que de nada sabia"...
Fez uma pausa para beber um gole d'água, que a canícula estava de matar, e continuou:
-"Deixe tudo isso pra lá; não vá mais se incomodar com isso, não... O que tá feito, tá feito, ninguém pode mudar. Mas o senhor agora sabe de tudo, não deve mais ficar por aí remoendo dor e chorando feito um menino amarelo. Vá cuidar da sua vida, do seu trabalho... Logo, logo o senhor arruma uma mulher do seu nível. Vá por mim qu'eu sou mulher criada na casca do alho"...
Enquanto a mulher falava, Amorim pensava em como era interessante que um sotaque paulista se misturasse a um modo de falar tão nordestino. Ela e o marido haviam vivido quase vinte anos na capital paulista, fazendo das tripas coração para sobreviver, mas, finalmente, lograram voltar vitoriosos, com um dinheirinho no bolso para montar um pequeno negócio do qual pudessem tirar um sustento digno. Foi assim que ergueram sua humilde churrascaria em espaço anexo à casa onde moravam. Amorim não pôde deixar de imaginar que essa família – a mulher, o marido e a filha – via e ouvia, dos frequentadores do lugar e das redondezas, fofocas as mais diversas, que não poupariam nem mesmo as mais virtuosas senhoras, e nem mesmo os mais honestos cidadãos. Um restaurante simples para atender gente simples encravado em bairro residencial igualmente humilde é como salão de beleza. Tudo se sabe e sobre tudo se conversa, visto que muitos clientes são seus frequentadores habituais e sempre que lá vão deixam sua contribuição à crônica do bairro e engrossam o caldo onde se remói o veneno das línguas.
"Ah, dona fulana, daria tudo para a senhora não ter visto nem ouvido nada disso", pensava o pobre diabo inconsolável. "Antes não tivesse vindo... Pior. Antes a senhora houvesse se mantido firme em seu propósito de não abrir sua maldita boca! Agora que farei? Ah, isso não fica assim, não! Vou já confirmar essa história direitinho. Não acredito numa vírgula do que essa dona fulana me disse. Ela deve ter alguma razão para inventar essa estória tão cabeluda sobre minha 'bichinha'. Onde já se viu?" E correu ao cafofo a buscar o telefone.
Foi precisamente neste instante que começaram a se falar com maior freqüência, fosse por mensagens, fosse através de ligações. Não se pode dizer que ele usasse de inteligência na condução do caso. Antes lhe procurava e pedia, implorava, chorava ao telefone insistindo a que ela voltasse. A partir de agora, também o ciúme corroía suas entranhas sentimentais. Não perdeu tempo. Subiu e fez a ligação. Ela atendeu sem demora.
–"Soube agora, neste exato momento, que me traíste com um quartel inteirinho, sua vadia! Como pôde fazer isso comigo? Depois de tudo que fiz por você, depois de todas as coisas que lhe dei...! Você não presta mesmo, eu já devia saber"... O discurso agressivo sempre durava muito pouco. À medida que a moça se explicava nada explicando, ele se tornava mais melífluo e adotava uma fala mansa e conciliadora. Seu comportamento era invariavelmente esse durante as cobranças por explicações. Isso, obviamente, fazia a cabrocha inverter as posições e, sempre, de acusada ao início passava a acusadora ao final o que, por sua vez, levava-o a arrastar-se implorando por seu perdão por qualquer mal que lhe houvesse feito.
Ela negou veementemente. A cada acusação, jurava por todos os santos que tudo o que haviam lhe dito era uma grande e monstruosa mentira. Ele insistia em que ela falasse. Em seu íntimo, sabia que era tudo verdade. Lembrava-se do dia em que vira as mensagens em seu telefone portátil. Um varão das bandas de sua cidade natal a estava cortejando. Naquele tempo ele consentia que ela fosse assiduamente visitar os pais no interior. Ela vivia a reclamar da vida monótona que levavam. Não saiam a se divertir porque o dinheiro era curto. Trabalhavam e vinham para casa. Nos fins de semana, ficavam em casa vendo televisão e se amando como os animais do Alceu. Mesmo isso já estava virando um tédio enorme. De tanto ir, presumiu ele, arranjou por lá um admirador. Sabe-se lá até onde teria ido o galanteador... No interior, a vida no fim de semana é arrastando pé nos forrós. O pretendente seguramente teria tido alguma liberdade de avançar. Caso contrário, não saberia o número de seu telefone.
Mesmo com as alegações a favor das evidências que supostamente se acumulavam, a cabrocha não admitia. Ele começava a pensar que ela se utilizava de um princípio masculino que reza que nunca se deve confessar o crime; antes, deve-se negar até a morte. Era o que ela fazia. Gastavam três, quatro horas a discutir ao telefone. Fosse pela exaustão, fosse pela vontade imensurável de querer acreditar que ela dizia a verdade, terminavam com ele implorando a sua volta e fazendo milhões de promessas de mudanças caso ela retornasse ao seu "ninho de amor", como ele dizia. Como da primeira vez, negou até a "morte". E mais. Numa manobra inteligente, e como conhecesse profundamente sua pusilanimidade, alimentava-lhe as esperanças e aproveitava para inverter a situação. De acusada passava a acusadora, como já dito. E tinha mais! Queria saber quem era a pessoa que estava a construir aquelas estórias a seu respeito. Seria capaz de voltar apenas para lhe tomar satisfações. Queria ver se essa pessoa seria capaz de lhe dizer tudo aquilo às fuças! Duvidava! Em sua completa covardia, Amorim via naquele discurso a prova incontestável da inocência da cabrocha.
O problema era o dia-a-dia. Como fosse acometido de depressões abissais que quase o levavam ao desespero, procurava-me para conversar, para desabafar, para chorar convulsivamente. Em minha presença repassava todas as conversas que tivera com ela e acabou por me revelar as acusações que a vizinha fizera. Era nítida sua propensão a não levar em conta nada daquilo, caso ela resolvesse voltar. Estava disposto a aceitar todas as galhas, se ela voltasse. Sofria pela decepção crescente, mas seu coração se derretia e a razão era relegada a um plano inoperante. A inteligência e a razão só lhe mostravam o que ela fizera; mas nada disso importava diante do que sentia.
Não satisfeito com o que lhe contara a vizinha, resolveu que queria ouvir de seu marido uma opinião sobre o caso. Certa noite, após um dia em que suas forças afetivas se exauriam na dúvida, no abandono, na rejeição e na dor, foi à pequena churrascaria. Zé, o proprietário, marido da vizinha que tentara abrir-lhe os olhos, foi incisivo. Disse-lhe, com todos os efes e erres, que ele era o corno mais manso que conhecera em toda sua vida. De fato, como já havia lhe dito a esposa, a cabrocha era um furacão, uma mulher insaciável, um rolo compressor. Sabia de vários de seus casos com soldados do quartel ali perto é de outros clientes que já haviam saído com ela.
Voltou ao cafofo em pior estado. Nem é preciso dizer que, lá chegando, bateu o telefone para a pequena e voltou a repetir que mais coisas soubera dela, que tudo se confirmara; que mais de uma pessoa sabia de suas estripulias, não adiantava mentir. Por que não confessava tudo de uma vez? Por que se comprazia em maltratar quem por ela tudo fizera? Ela, empedernida, negava. Não havia o que admitir, dizia. Preferia acreditar nela ou no povo que fazia fofoca? E completava: – "Você não vale a pena... Viu? Diz que me ama mas não acredita numa palavra do que digo... A coisa mais certa que fiz foi cair fora". Longe de alcançar a tranqüilidade que buscava, um turbilhão de dúvidas o atormentava cada vez mais. Queria acreditar que tudo não passava de um grande complô contra a garota, mas a realidade teimava em impedir.
Havia, além da realidade propriamente dita, a realidade virtual, a realidade da rede social. A rede social, como diria um amigo, é a calçada de antigamente. O sujeito, na rede social, está como antigamente ficavam as pessoas sentadas à porta de suas casas, em cadeiras de balanço a jogar conversa fora e a falar da vida alheia. A diferença é que, lá na rede social, o melhor esporte é a exposição de si mesmo, numa espécie de egolatria e autopromoção livres de qualquer avaliação confiável e repletas de elevadas e pertinentes suspeitas. Lá o sujeito pode ser o mais perfeito e o mais feliz dos seres e, não raro, se expõe mais do que o aconselhável. Confiando em tudo isso é que Amorim passou a escarafunchar a rede social da pequena.
Reza o ditado que quem procura, acha. E o amigo achou. Viu fotos e recadinhos, amizades com varões impensáveis e inimagináveis... O ciúme, que crescia a cada dia desde a conversa com a vizinha boquirrota, tomava proporções intoleráveis para ele e, consequentemente, para ela. Tanto lhe perturbou após ver-lhe a rede social que ela bloqueou seu acesso a essa "realidade" moderna. Ele, além de transtornado, acabou irado consigo mesmo por perceber que, se houvesse permanecido quieto e atento, poderia ter obtido muito mais informações sobre o que ocorria com ela e, assim, chegar às provas que tanto queria sobre seu comportamento leviano e um tanto quanto "desapegado". Mas o que viu parecia o bastante. Correu a lhe telefonar, desta vez querendo saber quem seriam todos aqueles homens de sua rede social. Seria, além de chifrudo real, um chifrudo virtual. Hoje, se sabe, a traição pode ser volátil e etérea, mas não menos traição. Deu no que deu: – uma fonte a menos a explorar em sua sanha para provar que ela era, de fato e sem dúvida, uma vagabunda.
A verdade é uma, e apenas uma: – o amigo apresentava um comportamento doentio diante de um problema que, a meu ver, podia ser considerado de fácil solução. A mim, que estava a seguir seu drama diário há quase seis meses, me parecia bem clara a necessidade da ajuda de um profissional. Nada do que eu lhe dizia parecia surtir algum efeito. Eu não estava apenas lidando com um amigo com problemas: – estava diante de um indivíduo com uma série de dificuldades na vida real com as quais não conseguia lidar por sérias rachaduras em sua personalidade e, talvez, em seu caráter. Era óbvio que seu estado depressivo ia além do considerado normal, sua autoestima era a pior possível, seu poder de recuperação era virtualmente inexistente. Porém, relutava em me ouvir quanto a isso. Considerava estar em perfeito estado. Não precisava de nenhuma outra ajuda, a não ser a minha.
Todo o cenário permaneceu inalterado por um mês ou pouco mais, ao fim do qual fui surpreendido por uma novidade no caso. Amorim ligou-me e, num misto de aparente tranqüilidade e exultação contida, confessou-me: –"Ela está voltando"...! Em que pese a consciência de que nada o demoveria da ideia de recebê-la de volta, fui enfático. Disse-lhe, grave: –"Teu pai, se vivo fosse, havia de dar-te umas boas bordoadas, meu chapa"... Chamei-lhe à consciência de que estava para fazer uma grande bobagem, que estava para cometer outro grande erro... Tudo em vão. Dali a poucos dias, ele a recebia em casa feliz da vida e como se nada houvesse acontecido. Durante dias fizeram o que faziam melhor: – amaram-se como os dois animais do Alceu. No que concerne a mim, tudo mudou. O amigo que para mim ligava diariamente sumiu; sua depressão evaporou; sua tristeza esmaeceu; dir-se-ia que passara a viver noutro mundo. Passada uma semana do vergonhoso sumiço, considerei a necessidade de saber o que se passava com o homem. Pensei todas as desgraças mais hediondas, desde o suicídio induzido ao assassinato seguido do suicídio. Por isso bati-lhe o telefone. Foi quando respondeu, quando lhe perguntei como estava:
-"Perigosamente feliz"...
E completou sem o menor pudor:
–"...estou apaixonado"...
Dez dias depois a amigo me relatava o resultado de uma escuta que pusera no cafofo. Não reunia condições financeiras para contratar um detetive, como fizera antes. Por isso se via obrigado a usar de um estratagema menos requintado, qual seja, a escuta do que a pequena dizia aos interlocutores ao telefone em sua ausência. Ela passava o dia em casa sozinha e não arranjara emprego – não mais queria trabalhar –, de modo que ele acertou em cheio ao instalar a tal escuta. Disse-me, sem conseguir esconder sua enorme tristeza por estar revivendo o inferno:
–"Fala com vários homens e ri-se da minha cara ao telefone em conversa com eles"...
Concluí com pesar : – o amigo descobrira o que ele próprio já sabia, o que já era do conhecimento de meio mundo. Uma pena. E compreendi porque dissera estar perigosamente feliz.
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