–"PERIGOSAMENTE FELIZ"..., foi a resposta que me deu o Amorim quando lhe perguntei como estava. As reticências ao fim da frase são uma pobre tentativa de entoná-la, de ajudar o leitor a perceber a música que há nela, já que a dizia no vigor da resignação e do conformismo. Dias antes, numa mensagem ao seu telefone portátil, fiz-lhe a mesma pergunta. Respondeu, usando a mesma entoação reticente: -"Estou apaixonado"...
O que aconteceu foi o seguinte. A mulher fora passar as festas de fim de ano com a família, no interior. Demorou-se por lá quase vinte dias. Tão logo saiu do ônibus, na volta, disse-lhe: –"Não agüento mais essa vidinha"!... A ele pareceu que a mulher apenas estava a ruminar questiúnculas familiares, e seguiu a acomodar as malas no carro. Permaneceu mudo.
Em casa, depois de um banho demorado, ela virou-se e esclareceu: –"Na próxima sexta vou-me embora". Era sábado. Ele, ainda que excessivamente autoconfiante, quis saber: –"Como assim, 'vou-me embora'"? Ela explicou: –"Isso mesmo que ouviste. Vou voltar pro interior, morar com meus pais. Contigo não dá mais"...
Na madrugada ainda não conciliara o sono e, em suas lembranças, teve início o processo de montagem de um quebra-cabeça, qual seja, juntar as peças do significado do que ela já há algum tempo estava a dizer.
Chegava do trabalho pelas 7 da noite e queixava-se: –"Trabalho mais quando chego em casa do que no emprego"! Referia-se a ter de fazer o serviço de casa, lavar, passar, cozinhar... Outro dia, ao chegar e jogando a bolsa no chão, retrucou: – não iria cozinhar nem pro Papa! Ele que se virasse, que comesse qualquer coisa.
Como a situação financeira de meu amigo era a pior possível, quase não saiam nos fins de semana. Ela, 35 anos mais jovem, não perdoava; dizia: –"Não agüento mais ficar em casa"! Amorim tentava reavivar-lhe a memória: – a pensão dos filhos deixara seu salário bem minguado. Não tinha dinheiro para farras e restaurantes.
De outra feita, ao chegar do serviço, a jovem decretou: -"Não vou mais trabalhar". Ele, em sua genética pusilanimidade, dizia, quase balbuciando: –"Não podes parar de trabalhar, fulana. O que ganho é muito pouco pra nós dois"... Ela não se dava ao trabalho de responder. "Foda-se", pensava; e ia dormir.
O solução do quebra-cabeça era simples: – ela não mais estava disposta a viver com ele. Todos os indícios eram recentes, a poucos meses do fim do ano. Havia mais. Suas viagens ao interior haviam se amiudado. Como ele não pudesse bancar seus fins de semana, consentia deixá-la ir ver os pais no interior, à guisa de compensação. Depois de poucas viagens, começaram a chegar, em seu telefone portátil, mensagens comprometedoras. Amorim, ao surpreender uma delas, pô-la contra a parede. Quis saber da baixaria. Ela saiu-se com uma explicação esfarrapada que ele, como todo bom chifrudo, fez questão de engolir, não sem antes prantear ao telefone de um amigo como uma criança em cólicas. Agora, o anúncio da separação.
E acontecia uma coisa curiosa. Apesar de marcada a data e hora do rompimento, ela o procurava para o amor. Amorim, exasperado, tentava entender:
–"Estás louca? varrida? Como queres me amar se estás para me deixar"??
Fulana se saia com uma explicação no mínimo autêntica, e não menos original:
–"Deixa de ser besta! A gente devia era aproveitar o tempo que nos resta"!
Na sexta marcada ela partiu. Na despedida asseverou: –"Não dá mais... É para sempre"... Amorim ainda fez a gentileza de levá-la à rodoviária. Para ele, em sua eterna passividade e cobardia, a jovem estaria apenas indo à casa dos pais para mais uma visita. Sua incredulidade só não era maior que sua falta de coragem. Na segunda-feira a ficha caiu.
Tirara umas férias. Ao acordar e ouvir o burburinho da rua, ao ver o sol a pino, se deu conta de sua nova realidade: – levara um tremendo fora da companheira. Estava só, tão só como jamais estivera. Lembrou-se de seu casamento, há quatro anos desfeito justamente porque a esposa o flagrou no leito da amante, que também era a secretária do lar, nos limites sagrados do mesmo lar. Lembrou-se também dos filhos, ainda crianças pequenas. Sentia que uma distância enorme os separava: – a mãe, ao descobrir a pouca vergonha do marido, tudo fazia para dificultar o relacionamento entre eles.
Verdade seja dita: – Amorim era reincidente. Durante todos os anos em que esteve casado, flertou e fornicou com quase todas as secretárias do lar. Só as mais velhas escaparam. E, além dessas, providenciara um plantel de amantes extra-domiciliares.
(No mesmo erro não caiu a mulher do Berilo, cuja candidata ao cargo de secretária do lar exibia curvas traiçoeiras e simetrias faciais beirando a perfeição. Demitiu-a antes mesmo de contratá-la.)
De tanto trair a mulher, passou a desconfiar de sua fidelidade. Como algumas de suas amantes eram casadas, cristalizou-se em sua consciência a certeza de que sua própria mulher também o traía. Nós tratados da ciência psicológica há de figurar a descrição desta entidade comportamental que explicará porque temos certeza de sermos vítimas de nossas próprias safadezas.
Por isso, não contou pipocas: – contratou um detetive para averiguar o caso, ainda que não houvesse, até então, o menor indício de infidelidade da esposa. Autorizou o homem, inclusive, a instalar uma escuta no telefone de casa. Ela não perdia por esperar. Pensava que podia fazer e acontecer? "Vou fazer-lhe a cama", pensava. Um vizinho, tempos depois, jurava ter visto a mulher de cochichos com certo varão das redondezas. Era a evidência necessária.
Como os dias se passassem sem que o investigador desse notícias, chegava a esquecer-se de que a própria mulher estava na alça de mira. Correu pouco mais de um mês quando o bisbilhoteiro veio ter com ele. Disse-lhe: –"Patrão, fique tranquilo. Sua mulher é honestíssima"! E ainda o aconselhou: –"Não se deixe enganar pelas más línguas"... Entregou em suas mãos a fita cassete – era no tempo da fita cassete – onde estavam gravadas todas as conversas travadas no telefone de casa, as da mulher, as dele mesmo, e as de todas as pessoas que lá residiam, inclusive as conversas das secretárias.
Os gatos, criados em casas de quintais, coisa das mais raras aos dias de hoje, são, nesta condição, animais educadíssimos. Quando se sentem obrigados a fazer suas necessidades fisiológicas, vão ao quintal. Terminado o serviço, enterram-no sob um montinho de areia. Creio até que alguns espécimes cavam antes um pequenino buraco e ali despejam seus dejetos, cobrindo-os, ao final, com a quantidade de terra removida do lugar. Assim, fácil é comprovar o cuidado que esses felinos têm com a sujeira que produzem. Não desejam que outros as vejam. Escondem-nas elegantemente das vistas alheias.
O mesmo não se pode dizer de Amorim. Livre do bitafe de corno, e esquecendo-se por completo de que suas conversas e conchavos com as amantes de alhures estavam registradas na mesma fita usada para surpreender a mulher em sua suposta atividade corneadora, lançou a prova de seus crimes ao fundo de uma gaveta qualquer, quiçá a do criado-mudo rente ao ninho do casal.
Certo dia, dia de faxina, a mulher se depara com aquela fita há muito jogada feito lixo na gaveta do móvel, junto a outras quinquilharias.
"Que diabos será isso, ó meu Santo Antônio"?, indagou a inocente dona de casa, segurando a mídia e exausta de tanto faxinar. Cuidadosa a não dar sumiço em documentos importantes, pôs- se a escutar-lhe a matéria com a pura alma dos que buscam o deleite de uma ária ou de um forró quebra-cadeiras. O resultado dessa infeliz audição foi a tragédia cujo clímax foi o mais recente flagrante: – escutou repetidas vezes e em detalhes as conversas do marido com as catirinas.
O divórcio foi inevitável e fastiento. Por longos doze meses, Amorim ainda coabitou com a mulher, ao mesmo tempo que adotou a ex-secretária do lar, pivô imediato do desenlace final, como companheira e amante, sem dar a mínima ao currículo de engenheiro e ao fato de ela ser menor.
Agora, passados quatro anos da convivência improvável, quem abandonava o lar era a pivô do divórcio, enquanto o amigo se esvaía em lágrimas e, depois, em apelos rastejantes a que ela retornasse. A visão da cena seria cômica não fosse a soma de tragédias que ainda estavam por vir e que, ao dia seguinte à partida, já se desenhavam no horizonte. Quem puder ler, lerá...
O que aconteceu foi o seguinte. A mulher fora passar as festas de fim de ano com a família, no interior. Demorou-se por lá quase vinte dias. Tão logo saiu do ônibus, na volta, disse-lhe: –"Não agüento mais essa vidinha"!... A ele pareceu que a mulher apenas estava a ruminar questiúnculas familiares, e seguiu a acomodar as malas no carro. Permaneceu mudo.
Em casa, depois de um banho demorado, ela virou-se e esclareceu: –"Na próxima sexta vou-me embora". Era sábado. Ele, ainda que excessivamente autoconfiante, quis saber: –"Como assim, 'vou-me embora'"? Ela explicou: –"Isso mesmo que ouviste. Vou voltar pro interior, morar com meus pais. Contigo não dá mais"...
Na madrugada ainda não conciliara o sono e, em suas lembranças, teve início o processo de montagem de um quebra-cabeça, qual seja, juntar as peças do significado do que ela já há algum tempo estava a dizer.
Chegava do trabalho pelas 7 da noite e queixava-se: –"Trabalho mais quando chego em casa do que no emprego"! Referia-se a ter de fazer o serviço de casa, lavar, passar, cozinhar... Outro dia, ao chegar e jogando a bolsa no chão, retrucou: – não iria cozinhar nem pro Papa! Ele que se virasse, que comesse qualquer coisa.
Como a situação financeira de meu amigo era a pior possível, quase não saiam nos fins de semana. Ela, 35 anos mais jovem, não perdoava; dizia: –"Não agüento mais ficar em casa"! Amorim tentava reavivar-lhe a memória: – a pensão dos filhos deixara seu salário bem minguado. Não tinha dinheiro para farras e restaurantes.
De outra feita, ao chegar do serviço, a jovem decretou: -"Não vou mais trabalhar". Ele, em sua genética pusilanimidade, dizia, quase balbuciando: –"Não podes parar de trabalhar, fulana. O que ganho é muito pouco pra nós dois"... Ela não se dava ao trabalho de responder. "Foda-se", pensava; e ia dormir.
O solução do quebra-cabeça era simples: – ela não mais estava disposta a viver com ele. Todos os indícios eram recentes, a poucos meses do fim do ano. Havia mais. Suas viagens ao interior haviam se amiudado. Como ele não pudesse bancar seus fins de semana, consentia deixá-la ir ver os pais no interior, à guisa de compensação. Depois de poucas viagens, começaram a chegar, em seu telefone portátil, mensagens comprometedoras. Amorim, ao surpreender uma delas, pô-la contra a parede. Quis saber da baixaria. Ela saiu-se com uma explicação esfarrapada que ele, como todo bom chifrudo, fez questão de engolir, não sem antes prantear ao telefone de um amigo como uma criança em cólicas. Agora, o anúncio da separação.
E acontecia uma coisa curiosa. Apesar de marcada a data e hora do rompimento, ela o procurava para o amor. Amorim, exasperado, tentava entender:
–"Estás louca? varrida? Como queres me amar se estás para me deixar"??
Fulana se saia com uma explicação no mínimo autêntica, e não menos original:
–"Deixa de ser besta! A gente devia era aproveitar o tempo que nos resta"!
Na sexta marcada ela partiu. Na despedida asseverou: –"Não dá mais... É para sempre"... Amorim ainda fez a gentileza de levá-la à rodoviária. Para ele, em sua eterna passividade e cobardia, a jovem estaria apenas indo à casa dos pais para mais uma visita. Sua incredulidade só não era maior que sua falta de coragem. Na segunda-feira a ficha caiu.
Tirara umas férias. Ao acordar e ouvir o burburinho da rua, ao ver o sol a pino, se deu conta de sua nova realidade: – levara um tremendo fora da companheira. Estava só, tão só como jamais estivera. Lembrou-se de seu casamento, há quatro anos desfeito justamente porque a esposa o flagrou no leito da amante, que também era a secretária do lar, nos limites sagrados do mesmo lar. Lembrou-se também dos filhos, ainda crianças pequenas. Sentia que uma distância enorme os separava: – a mãe, ao descobrir a pouca vergonha do marido, tudo fazia para dificultar o relacionamento entre eles.
Verdade seja dita: – Amorim era reincidente. Durante todos os anos em que esteve casado, flertou e fornicou com quase todas as secretárias do lar. Só as mais velhas escaparam. E, além dessas, providenciara um plantel de amantes extra-domiciliares.
(No mesmo erro não caiu a mulher do Berilo, cuja candidata ao cargo de secretária do lar exibia curvas traiçoeiras e simetrias faciais beirando a perfeição. Demitiu-a antes mesmo de contratá-la.)
De tanto trair a mulher, passou a desconfiar de sua fidelidade. Como algumas de suas amantes eram casadas, cristalizou-se em sua consciência a certeza de que sua própria mulher também o traía. Nós tratados da ciência psicológica há de figurar a descrição desta entidade comportamental que explicará porque temos certeza de sermos vítimas de nossas próprias safadezas.
Por isso, não contou pipocas: – contratou um detetive para averiguar o caso, ainda que não houvesse, até então, o menor indício de infidelidade da esposa. Autorizou o homem, inclusive, a instalar uma escuta no telefone de casa. Ela não perdia por esperar. Pensava que podia fazer e acontecer? "Vou fazer-lhe a cama", pensava. Um vizinho, tempos depois, jurava ter visto a mulher de cochichos com certo varão das redondezas. Era a evidência necessária.
Como os dias se passassem sem que o investigador desse notícias, chegava a esquecer-se de que a própria mulher estava na alça de mira. Correu pouco mais de um mês quando o bisbilhoteiro veio ter com ele. Disse-lhe: –"Patrão, fique tranquilo. Sua mulher é honestíssima"! E ainda o aconselhou: –"Não se deixe enganar pelas más línguas"... Entregou em suas mãos a fita cassete – era no tempo da fita cassete – onde estavam gravadas todas as conversas travadas no telefone de casa, as da mulher, as dele mesmo, e as de todas as pessoas que lá residiam, inclusive as conversas das secretárias.
Os gatos, criados em casas de quintais, coisa das mais raras aos dias de hoje, são, nesta condição, animais educadíssimos. Quando se sentem obrigados a fazer suas necessidades fisiológicas, vão ao quintal. Terminado o serviço, enterram-no sob um montinho de areia. Creio até que alguns espécimes cavam antes um pequenino buraco e ali despejam seus dejetos, cobrindo-os, ao final, com a quantidade de terra removida do lugar. Assim, fácil é comprovar o cuidado que esses felinos têm com a sujeira que produzem. Não desejam que outros as vejam. Escondem-nas elegantemente das vistas alheias.
O mesmo não se pode dizer de Amorim. Livre do bitafe de corno, e esquecendo-se por completo de que suas conversas e conchavos com as amantes de alhures estavam registradas na mesma fita usada para surpreender a mulher em sua suposta atividade corneadora, lançou a prova de seus crimes ao fundo de uma gaveta qualquer, quiçá a do criado-mudo rente ao ninho do casal.
Certo dia, dia de faxina, a mulher se depara com aquela fita há muito jogada feito lixo na gaveta do móvel, junto a outras quinquilharias.
"Que diabos será isso, ó meu Santo Antônio"?, indagou a inocente dona de casa, segurando a mídia e exausta de tanto faxinar. Cuidadosa a não dar sumiço em documentos importantes, pôs- se a escutar-lhe a matéria com a pura alma dos que buscam o deleite de uma ária ou de um forró quebra-cadeiras. O resultado dessa infeliz audição foi a tragédia cujo clímax foi o mais recente flagrante: – escutou repetidas vezes e em detalhes as conversas do marido com as catirinas.
O divórcio foi inevitável e fastiento. Por longos doze meses, Amorim ainda coabitou com a mulher, ao mesmo tempo que adotou a ex-secretária do lar, pivô imediato do desenlace final, como companheira e amante, sem dar a mínima ao currículo de engenheiro e ao fato de ela ser menor.
Agora, passados quatro anos da convivência improvável, quem abandonava o lar era a pivô do divórcio, enquanto o amigo se esvaía em lágrimas e, depois, em apelos rastejantes a que ela retornasse. A visão da cena seria cômica não fosse a soma de tragédias que ainda estavam por vir e que, ao dia seguinte à partida, já se desenhavam no horizonte. Quem puder ler, lerá...
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