"Magoa-me, sim, estar privado de um amigo. Segundo penso, jameis haverá outro igual e isso posso testemunhar. Nem por isso careço de remédio. Eu mesmo me consolo com o melhor dos confortos, a saber, fugindo do erro comum que costuma exacerbar a perda dos amigos. Eu penso assim: nada de mal aconteceu a Cipião. Se algo de ruim ocorreu, foi em relação a mim. Ora, angustiar-se, em excesso, com os próprios incômodos não é próprio de amigo e, sim, de egoísta”. (CÍCERO – A Amizade)
Sem meias palavras e sem rodeios, anuncio: – desfiz uma boa quantidade de “amizades” na rede social. Alguém há de, dedo em riste, acusar-me. Impor-me-á a pecha de intolerante; ou de intransigente; ou, até, de radical. Assim, a fim de não gastar muito de meu tempo, anuncio em alto e bom som: – acusem-me do que quiserem e bem entenderem. Outro dia anunciei, após o recente atentado em Paris: – sim, sou Charlie Hebdo! Olhem que as vítimas eram atéias e comunistas, tudo o que mais detesto. Mas... que se há de fazer se o direito de pensar e de dizer deve ser preservado? Ouço e leio uma penca de idiotices e nem por isso prego o assassinato de seus autores. O máximo que posso realizar, se detesto o que esse povo diz, é evitar ler e ouvir o que ele diz.
Então, fácil é entender o que fiz na rede social. Com o propósito de não ler e ver as estupidezes que essas pessoas me proporcionam lá, na tal rede social, eliminei-as de meu convívio virtual. Simples assim. Bem se vê que a rede social é como a televisão de casa: – sintonizamos onde bem entendemos. Na rede social há uma armadilha da qual, penso, todos ou quase todos já foram vítimas. Tal armadilha é precisamente inflamar-se com as idiotices que lá vemos e ceder ao impulso de argumentar com seus autores. Tardiamente percebe-se que tal embate é dotado de várias e óbvias características, quais sejam: inutilidade, esterilidade e impotência.
A inutilidade advém do fato de que na rede social só tem gente inteligentíssima. Dada a minha limitada capacidade intelectual, óbvia é minha desvantagem em qualquer potencial embate. Assim, o sujeito que pretender me convencer de algo precisará de argumentos perfeitamente inteligíveis a fim de vencer minhas sérias limitações. A situação oposta é virtualmente impensável: – como eu, um troglodita de carteirinha e sindicato, pretenderei submeter alguém, qualquer pessoa, ao que penso? Disse o Sêneca que “se quiseres submeter alguém a ti, submete-o primeiro à razão”. Mas, ora!, o que é a razão? Respondo em seguida: – a razão é o conhecimento de tudo, é o domínio de todo conhecimento, de toda matéria, de todos os campos da ciência. Assumindo que nem mesmo ela, a ciência, tudo sabe, imagine-se o ser que pretenda tal façanha. Fica, assim, irreversivelmente provada e comprovada minha completa incapacidade de realizar a hercúlea tarefa. Inútil é, portanto, os acalorados e por vezes agressivos embates na rede social. É gente que tudo sabe acossando gente que nada sabe e – pior! – gente que nada sabe acossando gente que sabe tudo.
Se ninguém submete ninguém a ninguém, além da inutilidade fica evidente a esterilidade do debate – ele nada produz de proveitoso. Sim, porque somente o debate lastreado, a princípio, na ignorância mútua pode resultar proveitoso. O diabo é que a assunção da ignorância não é tarefa fácil; requer doses cavalares de humildade e comiseração por si mesmo e pelos outros. Ademais, seu exercício só é possível com o exercício diário da vigilância sobre si mesmo. O ser está, ao dia-a-dia, tão envolvido nos cuidados e mesquinhezes da vida que não percebe a miríade de vezes em que a humildade lhe foge às léguas.
Ainda que em tais embates virtuais sobrassem humildade e autohumilhação pela consciência da própria ignorância, restaria a nítida e densa sensação de impotência. Como não é isso o que acontece, nenhuma sensação de incapacidade resulta. Há o sentimento de impotência e a impotência real, a concreta e genuína inaptidão para mudar o que quer que seja. A primeira é sentimento individual, sensação que acomete o ser; a segunda é a da esfera do pragmatismo puro e simples. É a não percepção da impotência pragmática que leva à arrogância e à insolência, características inteiramente opostas à humildade e à sobriedade. Contrariando a oração, rejeita-se a serenidade necessária para aceitar o que se não pode mudar.
Dirá alguém que estou sendo incoerente. Ora, se rejeito opiniões, ajo como quem tem conhecimento e, portanto, como quem não é tão ignorante quanto diz, como alguém que tem conhecimento. Direi que nada sei, de fato; direi que rejeito opiniões, sim, mas aceito os fatos e princípios básicos e isso, longe de ser ou demonstrar conhecimento, é, em princípio, uma tentativa de exercitar um mínimo de sabedoria.
Assim, as “amizades” desfeitas na rede social vêm atender a um apelo de minha alma: – detesto os que rejeitam os fatos em detrimento de suas paixões pessoais e de seus delírios e alucinações; repudio os que rejeitam os princípios e virtudes mais elementares, cheios da empáfia e do deboche para com estes, como se a nova ordem que admiram e suas novas crenças e conceitos representassem a revolução para um mundo e um país mais humano, quando o que se vê, nos fatos mais escabrosos, é o ódio e o apoio a ele. Que odeiem. Bem longe de meus olhos.
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