terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

EU MORO ONDE VOCÊ INEXPLICAVELMENTE TIRA FÉRIAS

          Outro dia vi, na rede social, uma amiga publicar uma fotografia sua, vestida em trajes de banho, na praia, com os seguintes dizeres: – eu moro onde você tira férias. Fiquei cá a imaginar se sua intenção seria fazer inveja às pessoas que aqui não moram, nesta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, como se aqui, justamente aqui, fosse o paraíso; como se aqui fosse um lugar aprazível, dotado de uma infraestrutura inigualável e invejável; como se aqui o sistema de transporte público atendesse plenamente ao cidadão nativo e ao turista; como se aqui as regras urbanas fossem rigorosamente seguidas pelo fortalezense e, principalmente, pela autoridade municipal; como se aqui tivéssemos um sistema público de saúde amplo e eficaz; como se aqui a segurança pública fosse inerente à nossa educação e ao nosso elevado nível cultural e, em conseqüência, ao nosso elevado respeito pelo patrimônio alheio e pela vida humana; enfim, como se viver aqui fizesse babar de inveja o parisiense, o londrino, o lisboeta, o madrileno, o newyorker, o amsterdamês...
          No momento em que vi aquela publicação, entretanto, percebi tudo. Percebi a estonteante, desconcertante e, diria mesmo, inexplicável verdade: – estamos cegos. Sim, como no romance do Saramago, atingiu-nos a todos, com raras exceções, a cegueira. Nada vemos, nada enxergamos. Se 60 mil cadáveres ao ano como resultado da violência urbana não são vistos, então nada mais o será. Se o assalto às mais importantes instituições dos Estados, dos Municípios e da República não é visto, então nada mais o será. Se a inexistência da eficácia e eficiência das leis não é visível, então nada será possível ver. Se a nova cultura, a nova maneira de fazer as coisas por aqui não está sendo vista, então nossa cegueira é a mais grave de todas. A do romance era uma em que o acometido via algo, via uma espécie de brancura opalescente que o impedia de enxergar a luz ou qualquer outra coisa. Nossa cegueira é, ao que tudo indica, uma em que se vê, mas não se enxerga. Ou, ainda e mais provável, a nossa é uma “cegueira do delírio”, um tipo de daltonismo geral, para toda e qualquer imagem. Vê-se uma imagem oposta à da realidade. Seria justamente essa a que acomete minha amiga. É possível que, para ela, os 60 mil cadáveres sejam carcaças de animais selvagens, ou que o loteamento das instituições seja um delírio persecutório de quem o acusa. E por aí vai.
          Fiz todo esse intróito porque a angústia é tanta que quase não cabe aqui no peito. Sim, o infarto há de ser um tipo de angústia que comprime o precórdio e a garganta como se a morte rápido se achegasse e à vítima não fosse dado tempo de se refazer. Dizem os que enfartaram que a dor é o detalhe físico, enquanto a angústia exprime o afeto e o sopro de vida que nos deu o Senhor a retornar para Ele. E de onde me vem tamanha angústia?, hão de querer saber os açodados leitores. E direi : – foi o filme, sim, uma película de 50 segundos que um amigo me enviou há pouco, gravada pelos assassinos. É mais ou menos assim.
          Chegam três jovens homens ao encontro de dois outros jovens que estão sentados à soleira da porta. Um destes usa muletas, posto que se as vê recostadas à parede. Alguém, a voz de uma jovem, está por detrás dos três a filmar com a câmera do telefone portátil. Inicia-se uma conversa pouco audível entre eles e, súbito, um deles saca de uma arma de fogo e começa a atirar no que está sentado, tórax nu, à soleira da porta. Após deflagrar doze tiros, os outros dois pegam da arma e, em seqüência, completam a fuzilaria, num total de 20 disparos. Enquanto a arma, provavelmente uma pistola, troca de mão a mulher que filma orienta: – Vai! Dá na cara! Descarrega”! Próximo ao final da execução ela pede: – “Ai, eu não vou dar o meu não, é”?! A vítima está caída sobre uma poça de sangue. Foi alvejada inúmeras vezes já morta. Seus algozes, todos jovens, despejam sobre ela não somente a munição, mas também seu desprezo, seu ódio e sua indiferença. A imagem pára. Eles, horas depois, fazem questão de publicar seu feito na rede mundial de computadores.
          Brené Brown em seu “A Coragem de Ser Imperfeito” diz, citando o autor da definição cujo nome agora me escapa, que a melhor definição de cultura que ela já viu é: “cultura é a maneira como fazemos as coisas por aqui”. A professora de sociologia dizia que temos que respeitar a cultura alheia. O muçulmano que migra para o país de primeiro mundo quer continuar realizando a clitorectomia em suas crianças do sexo feminino ao passo que o canibal costuma matar gente para se alimentar de seus cadáveres; na cultura deles isso é absolutamente normal. É a “maneira como eles fazem as coisas por lá”; é a cultura deles. Respeitemos a cultura desse povo. E não só isso. Importemos para a nossa parte da cultura deles.
          Pensando melhor, é possível que o país esteja passando por um processo de “aculturação”, como diriam os inteligentíssimos sociólogos. Não há cegueira nenhuma. É possível que a cegueira à qual me referi ao início seja minha, só minha. A amiga, é possível, está a aceitar com naturalidade o tal processo enquanto eu estou aqui a me angustiar por bobagem. Faz parte da nova cultura, provavelmente, aceitar 60 mil cadáveres anuais com a naturalidade de quem chupa picolé Pardal. Amanhã mesmo vou ao psiquiatra. Ou, melhor, ao oftalmologista.

                    Por decisão pessoal escrevo o texto em desacordo com o acordo ortográfico

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