Outro
dia vi, na rede social, uma amiga publicar uma fotografia sua,
vestida em trajes de banho, na praia, com os seguintes dizeres: –
eu moro onde você tira férias. Fiquei cá a imaginar se sua
intenção seria fazer inveja às pessoas que aqui não moram, nesta
Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, como se aqui, justamente
aqui, fosse o paraíso; como se aqui fosse um lugar aprazível,
dotado de uma infraestrutura inigualável e invejável; como se aqui
o sistema de transporte público atendesse plenamente ao cidadão
nativo e ao turista; como se aqui as regras urbanas fossem
rigorosamente seguidas pelo fortalezense e, principalmente, pela
autoridade municipal; como se aqui tivéssemos um sistema público de
saúde amplo e eficaz; como se aqui a segurança pública fosse
inerente à nossa educação e ao nosso elevado nível cultural e, em
conseqüência, ao nosso elevado respeito pelo patrimônio alheio e
pela vida humana; enfim, como se viver aqui fizesse babar de inveja o
parisiense, o londrino, o lisboeta, o madrileno, o newyorker, o
amsterdamês...
No
momento em que vi aquela publicação, entretanto, percebi tudo.
Percebi a estonteante, desconcertante e, diria mesmo, inexplicável
verdade: – estamos cegos. Sim, como no romance do Saramago,
atingiu-nos a todos, com raras exceções, a cegueira. Nada vemos,
nada enxergamos. Se 60 mil cadáveres ao ano como resultado da
violência urbana não são vistos, então nada mais o será. Se o
assalto às mais importantes instituições dos Estados, dos
Municípios e da República não é visto, então nada mais o será.
Se a inexistência da eficácia e eficiência das leis não é
visível, então nada será possível ver. Se a nova cultura, a nova
maneira de fazer as coisas por aqui não está sendo vista, então
nossa cegueira é a mais grave de todas. A do romance era uma em que
o acometido via algo, via uma espécie de brancura opalescente que o
impedia de enxergar a luz ou qualquer outra coisa. Nossa cegueira é,
ao que tudo indica, uma em que se vê, mas não se enxerga. Ou, ainda
e mais provável, a nossa é uma “cegueira do delírio”, um tipo
de daltonismo geral, para toda e qualquer imagem. Vê-se uma imagem
oposta à da realidade. Seria justamente essa a que acomete minha
amiga. É possível que, para ela, os 60 mil cadáveres sejam
carcaças de animais selvagens, ou que o loteamento das instituições
seja um delírio persecutório de quem o acusa. E por aí vai.
Fiz
todo esse intróito porque a angústia é tanta que quase não cabe
aqui no peito. Sim, o infarto há de ser um tipo de angústia que
comprime o precórdio e a garganta como se a morte rápido se
achegasse e à vítima não fosse dado tempo de se refazer. Dizem os
que enfartaram que a dor é o detalhe físico, enquanto a angústia
exprime o afeto e o sopro de vida que nos deu o Senhor a retornar
para Ele. E de onde me vem tamanha angústia?, hão de querer saber
os açodados leitores. E direi : – foi o filme, sim, uma película
de 50 segundos que um amigo me enviou há pouco, gravada pelos
assassinos. É mais ou menos assim.
Chegam
três jovens homens ao encontro de dois outros jovens que estão
sentados à soleira da porta. Um destes usa muletas, posto que se as
vê recostadas à parede. Alguém, a voz de uma jovem, está por
detrás dos três a filmar com a câmera do telefone portátil.
Inicia-se uma conversa pouco audível entre eles e, súbito, um deles
saca de uma arma de fogo e começa a atirar no que está sentado,
tórax nu, à soleira da porta. Após deflagrar doze tiros, os outros
dois pegam da arma e, em seqüência, completam a fuzilaria, num
total de 20 disparos. Enquanto a arma, provavelmente uma pistola,
troca de mão a mulher que filma orienta: – Vai! Dá na cara!
Descarrega”! Próximo ao final da execução ela pede: – “Ai,
eu não vou dar o meu não, é”?! A vítima está caída sobre uma
poça de sangue. Foi alvejada inúmeras vezes já morta. Seus
algozes, todos jovens, despejam sobre ela não somente a munição,
mas também seu desprezo, seu ódio e sua indiferença. A imagem
pára. Eles, horas depois, fazem questão de publicar seu feito na
rede mundial de computadores.
Brené
Brown em seu “A Coragem de Ser Imperfeito” diz, citando o autor
da definição cujo nome agora me escapa, que a melhor definição de
cultura que ela já viu é: “cultura é a maneira como fazemos as
coisas por aqui”. A professora de sociologia dizia que temos que
respeitar a cultura alheia. O muçulmano que migra para o país de
primeiro mundo quer continuar realizando a clitorectomia em suas
crianças do sexo feminino ao passo que o canibal costuma matar gente
para se alimentar de seus cadáveres; na cultura deles isso é
absolutamente normal. É a “maneira como eles fazem as coisas por
lá”; é a cultura deles. Respeitemos a cultura desse povo. E não
só isso. Importemos para a nossa parte da cultura deles.
Pensando
melhor, é possível que o país esteja passando por um processo de
“aculturação”, como diriam os inteligentíssimos sociólogos.
Não há cegueira nenhuma. É possível que a cegueira à qual me
referi ao início seja minha, só minha. A amiga, é possível, está
a aceitar com naturalidade o tal processo enquanto eu estou aqui a me
angustiar por bobagem. Faz parte da nova cultura, provavelmente,
aceitar 60 mil cadáveres anuais com a naturalidade de quem chupa
picolé Pardal. Amanhã mesmo vou ao psiquiatra. Ou, melhor, ao
oftalmologista.
Por decisão pessoal escrevo o texto em desacordo com o acordo ortográfico
Por decisão pessoal escrevo o texto em desacordo com o acordo ortográfico
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