O
que faltou dizer, na
crônica anterior,
sobre o último
encontro dos amigos do tempo das fraldas foi que o Fábio Motta, do
alto de seus cinqüenta e poucos, voltou a surfar.
Pensando
melhor, acho que lá já foi dito, mas sem a ênfase que o tema
merece. Esse foi o ponto alto de nosso encontro. Sim, porque o amigo
era outra pessoa, era outro Fábio Motta; era aquele do violão
arrastado e das múltiplas e simultâneas namoradas. Antes, porém,
façamos uma breve retrospectiva da vida deste meu amado amigo; tão
breve que ele nem terá tempo de suspirar e se ressentir.
O
que ocorria era o seguinte. O amigo sumia. E sumia como quem já
morreu. Eu, que lia o poeta, li-o quando dizia: - morrer é apenas
não ser visto. Pois era exatamente isso o que ocorria com o amigo: -
sumia como quem já foi desta para a melhor. Vejam,
por exemplo, o que fez ele nos dois últimos anos na data de comemoração
de seu aniversário.
Na
data em que se comemora seu natalício, ao ano passado e também no
ano anterior, o homem se enclausurou sabe-se lá onde. Tão escondido
estava que o carteiro, o
ser tecnológico mais démodé
do universo,
não o encontrou em casa nem em seu local de trabalho. Seus 4 ou 5
telefones portáteis permaneceram desligados durante as 24 horas do
dia. (Fábio Motta tem mais aparelhos
telefônicos do que o número de operadoras existentes. Suspeito que
possua mais de uma linha em mais de uma operadora. Um dia, jurei a
mim mesmo, hei de descobrir a razão desta abundância comunicativa.)
Corria à boca miúda que o amigo andava sorumbático, macambúzio,
triste de
fazer dó...
O que nos
encafifava,
seus mais diletos amigos, era a causa de tamanha desventura. Alguém
mais pessimista aventou a possibilidade de o amigo estar a tramar
contra a própria vida, o que seria um disparate dado o seu passado
de alegrias e danações. Assim, era consenso geral de que aquele
seria um Fábio Motta inteiramente diferente do que sempre fora, um
homem prematuramente envelhecido no espírito, um ex-homem-menino
dado a conquistador e uma tênue, opaca e nebulosa sombra do que
havia sido um dia... Dir-se-ia que morrera um espírito alvissareiro
e nascera um outro, taciturno e ensimesmado, em seu lugar. Uma de suas
conquistas confessou-me ao ouvido, confirmando o que diziam os boatos: -”É de fazer dó”...! Eis
aí, em sumárias palavras, o estado de meu amigo antes de sua
guinada fenomenal.
Quando,
nas raríssimas vezes em que dávamos com ele n´alguma esquina, lhe
perguntávamos o que sucedia, ele dizia, cabisbaixo e melancólico:
-“É
o trabalho, é o trabalho”...
E
completava:
-“Trabalho
demais”...
O
Bacana, cabreiro, queria culpar a mulher. (O Bacana sempre culpa a
mulher.) Dizia, com o dedo em riste:
-Ӄ
a mulher, é a mulher”!...
Outros,
os menos afoitos, aceitavam sem duvidar as justificativas do amigo e
ponderavam:
-”Precisa
trabalhar menos, que diabos”!...
Quanto
a mim, devo confessar, creio piamente no que me dizem. Acredito, a
princípio, que todos dizem a verdade, e fazia coro com os que
admitiam a hipótese do workaholismo do amigo. E ia além;
dizia ao Bacana, às vezes em tom admoestativo, por vezes em tom
reprovativo, como se plenamente certo desta hipótese:
-”A
mulher nada tem a ver com isso”!
Assim,
a coisa já era dada como causa perdida quando, certo dia, o Motta
surpreende a todos. Como ressurgido das cinzas ou, porque não dizer,
como renascido do inferno, fez questão de anunciar seu novo-velho
estilo de vida. Declarou em alto e bom som, na rede social, junto com
as devidas provas fotográficas, seu retorno irremediável e
definitivo à prática do surf, esporte ao qual era adepto nos tempos
da adolescência. Se bem me lembro, recebi dele mensagens no telefone
portátil dando conta de que readotara o estilo despojado de viver,
abandonando, se não por completo ao menos parcialmente, a vida
inteiramente voltada e dedicada ao trabalho. Com efeito, o surf
parecia mais como a desculpa mais apropriada que o amigo encontrara
para anunciar o rejuvenescimento de seu espírito.
Todo
o episódio serve a nos ensinar sobre o que acontece com o sujeito
que se distancia de seu “eu”, de sua essência e, vale dizer, de
sua alma: - torna-se um zumbi, um morto-vivo sem viço e sem brilho,
ainda que chovam reprimendas e críticas a essa essência. Sim,
porque a perfeição está a anos-luz de todos nós. Impossível é,
a quem quer que seja, calar a boca da súcia boquirrota e
maledicente. Provado fica que é melhor estar na boca alheia do que
longe da própria alma, excetuando-se desta regra aqueles de maus
bofes, cuja essência é malcheirosa e traiçoeira. O nosso Motta é
o eterno menino-homem, sempre ladino, sempre dado à boa pilhéria e
à conversa solta e desprovida de armadilhas e insinuações
interesseiras. Através de sua experiência, pude constatar na vida
real o que disse o psicólogo James Hillman na teoria: - se você
trair a sua alma, ela estará bem ali, à espreita, esperando a
melhor oportunidade para se vingar de você.
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