segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O VELHO-NOVO FÁBIO MOTTA

          O que faltou dizer, na crônica anterior, sobre o último encontro dos amigos do tempo das fraldas foi que o Fábio Motta, do alto de seus cinqüenta e poucos, voltou a surfar.
          Pensando melhor, acho que lá já foi dito, mas sem a ênfase que o tema merece. Esse foi o ponto alto de nosso encontro. Sim, porque o amigo era outra pessoa, era outro Fábio Motta; era aquele do violão arrastado e das múltiplas e simultâneas namoradas. Antes, porém, façamos uma breve retrospectiva da vida deste meu amado amigo; tão breve que ele nem terá tempo de suspirar e se ressentir.
          O que ocorria era o seguinte. O amigo sumia. E sumia como quem já morreu. Eu, que lia o poeta, li-o quando dizia: - morrer é apenas não ser visto. Pois era exatamente isso o que ocorria com o amigo: - sumia como quem já foi desta para a melhor. Vejam, por exemplo, o que fez ele nos dois últimos anos na data de comemoração de seu aniversário.
          Na data em que se comemora seu natalício, ao ano passado e também no ano anterior, o homem se enclausurou sabe-se lá onde. Tão escondido estava que o carteiro, o ser tecnológico mais démodé do universo, não o encontrou em casa nem em seu local de trabalho. Seus 4 ou 5 telefones portáteis permaneceram desligados durante as 24 horas do dia. (Fábio Motta tem mais aparelhos telefônicos do que o número de operadoras existentes. Suspeito que possua mais de uma linha em mais de uma operadora. Um dia, jurei a mim mesmo, hei de descobrir a razão desta abundância comunicativa.) Corria à boca miúda que o amigo andava sorumbático, macambúzio, triste de fazer dó... O que nos encafifava, seus mais diletos amigos, era a causa de tamanha desventura. Alguém mais pessimista aventou a possibilidade de o amigo estar a tramar contra a própria vida, o que seria um disparate dado o seu passado de alegrias e danações. Assim, era consenso geral de que aquele seria um Fábio Motta inteiramente diferente do que sempre fora, um homem prematuramente envelhecido no espírito, um ex-homem-menino dado a conquistador e uma tênue, opaca e nebulosa sombra do que havia sido um dia... Dir-se-ia que morrera um espírito alvissareiro e nascera um outro, taciturno e ensimesmado, em seu lugar. Uma de suas conquistas confessou-me ao ouvido, confirmando o que diziam os boatos: -”É de fazer dó”...! Eis aí, em sumárias palavras, o estado de meu amigo antes de sua guinada fenomenal.
          Quando, nas raríssimas vezes em que dávamos com ele n´alguma esquina, lhe perguntávamos o que sucedia, ele dizia, cabisbaixo e melancólico:
          -“É o trabalho, é o trabalho”...
          E completava:
          -“Trabalho demais”...
         O Bacana, cabreiro, queria culpar a mulher. (O Bacana sempre culpa a mulher.) Dizia, com o dedo em riste:
          -”É a mulher, é a mulher”!...
          Outros, os menos afoitos, aceitavam sem duvidar as justificativas do amigo e ponderavam:
          -”Precisa trabalhar menos, que diabos”!...
          Quanto a mim, devo confessar, creio piamente no que me dizem. Acredito, a princípio, que todos dizem a verdade, e fazia coro com os que admitiam a hipótese do workaholismo do amigo. E ia além; dizia ao Bacana, às vezes em tom admoestativo, por vezes em tom reprovativo, como se plenamente certo desta hipótese:
          -”A mulher nada tem a ver com isso”!
          Assim, a coisa já era dada como causa perdida quando, certo dia, o Motta surpreende a todos. Como ressurgido das cinzas ou, porque não dizer, como renascido do inferno, fez questão de anunciar seu novo-velho estilo de vida. Declarou em alto e bom som, na rede social, junto com as devidas provas fotográficas, seu retorno irremediável e definitivo à prática do surf, esporte ao qual era adepto nos tempos da adolescência. Se bem me lembro, recebi dele mensagens no telefone portátil dando conta de que readotara o estilo despojado de viver, abandonando, se não por completo ao menos parcialmente, a vida inteiramente voltada e dedicada ao trabalho. Com efeito, o surf parecia mais como a desculpa mais apropriada que o amigo encontrara para anunciar o rejuvenescimento de seu espírito.
          Todo o episódio serve a nos ensinar sobre o que acontece com o sujeito que se distancia de seu “eu”, de sua essência e, vale dizer, de sua alma: - torna-se um zumbi, um morto-vivo sem viço e sem brilho, ainda que chovam reprimendas e críticas a essa essência. Sim, porque a perfeição está a anos-luz de todos nós. Impossível é, a quem quer que seja, calar a boca da súcia boquirrota e maledicente. Provado fica que é melhor estar na boca alheia do que longe da própria alma, excetuando-se desta regra aqueles de maus bofes, cuja essência é malcheirosa e traiçoeira. O nosso Motta é o eterno menino-homem, sempre ladino, sempre dado à boa pilhéria e à conversa solta e desprovida de armadilhas e insinuações interesseiras. Através de sua experiência, pude constatar na vida real o que disse o psicólogo James Hillman na teoria: - se você trair a sua alma, ela estará bem ali, à espreita, esperando a melhor oportunidade para se vingar de você.

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