quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

UMA BESTA MENOS BESTA

          Ontem mesmo anunciei que encerrei amizades na rede social porque os “escolhidos” eram muito sabidos. O termo que melhor os qualificaria seria “cúmplices”. Sim, são cúmplices da patifaria política que ora vige. É bem verdade que não escrevi nada disso no texto de ontem, mas escrevo agora para aqueles que não entenderam o que escrevi ou, melhor, o que não escrevi nas entrelinhas.
          Apenas para exemplificar o que quis dizer na crônica de ontem, faço um breve comentário sobre a entrevista, postada na rede social, feita com “um dos maiores filósofos vivos”, o italiano Giorgio Agamben (http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/06/deus-nao-morreu-ele-se-tornou-dinheiro.html). Vejam que o homem não é pouca coisa, até porque, segundo consta, ele foi “definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo”. O sujeito que carrega tais credenciais na algibeira não é lá nenhum besta e, só para ter certeza de que não é besta mesmo, “pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu (grifo meu) um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista”. Eu, se passasse dois anos de férias, das duas uma: – ou estaria gravemente enfermo e aí não seriam férias, mas licença para tratamento de saúde; ou estaria de licença não remunerada para tratar de interesses pessoais e prestes a morrer de fome, já que é provável que estivesse à beira da falência.
          A única outra possiblidade seria uma riqueza acumulada que me abastecesse os bolsos. Em outras palavras, estaria vivendo de renda. Digamos de uma vez: – somente no capitalismo seria possível tal mordomia. O diabo é que o senhor Agamben se mostra, em sua entrevista, um anticapitalista mor. Por isso fiquei aqui, já ao início da entrevista, a matutar o que o entrevistador quis dizer quando diz que “pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de fárias”. Se entendi errado, isso só demonstra minha mais mesquinha ignorância.
          Na entrevista em si, dentre as várias abstrações para mim ininteligíveis feitas pelo entrevistado, um delas me chamou a atenção. Ele diz que “'crise' e 'economia' atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar”. E continua com a seguinte pérola: “Crise hoje em dia significa simplesmente 'você deve obedecer'”! 
          Mas há mais: “Creio que seja evidente para todos que a chamada 'crise' já dura decênios e nada mais é senão o modo normal (grifo meu) como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional”.
          Ora, tomemos, a título de exemplo, a iminente crise hídrico-energética que ameaça o Brasil. (Com efeito, já a crise é fato posto que importantíssimos reservatórios de água já estejam praticamente secos.) Os gestores, após venderem ao povo um quadro de fartura, suficiência e adequação infra-estrutural no país, se veem obrigados, agora, a ceder à dura realidade dos fatos. A infra-estrutura está em frangalhos e os reservatórios estão secando. Se São Pedro não ajudar, ai de nós. (Já, já vão culpar o pobre santo...) Óbvio é que o racionamento será a única solução caso se confirme a insuficiência dos reservatórios para abastecer as cidades e para rodar as turbinas das hidrelétricas. Restam as termelétricas, que geram energia mais cara e mais poluente. Ou seja, se antevê racionamento de água e de energia, e energia mais cara no bolso do pobre brasileiro. Culpa do capitalismo, senhor Agamben?
          Parece óbvio, entretanto, que o senhor pensador pica-grossa não estava a se referir à crise de água e energia no país de quinto mundo chamado Brasil. Ele se referia à crise financeira ou global “que já dura decênios”. Ele diz que ela, essa crise, é o modo normal de funcionamento do capitalismo. A crise, irracional, existe para obrigar as pessoas a fazer o que elas não são obrigadas a fazer, para obrigar as pessoas a acatar medidas e restrições que elas não são obrigadas a aceitar. Pareceu-me, em minha casta ignorância, que o senhor Agamben quis assassinar a própria Economia, a própria ciência econômica. Se não, vejamos.
          A Economia é a ciência que estuda a gestão e a distribuição de escassos e limitados recursos num cenário de demanda continuamente ilimitada. Assim, a Economia é, implicitamente e explicitamente, continuamente e permanentemente, uma ciência a lidar com a crise, donde se conclui que a crise é, sim, permanente! Não há nenhuma novidade no que este pensador de cérebro de três hemisférios diz. No capitalismo ou no comunismo, os recursos disponíveis serão sempre limitados ante a demandas continuamente crescentes. Em suma sumária, a “crise” à qual o senhor Agamben se refere não é recente nem é apanágio do capitalismo – ela é, pode-se dizer, inerente à existência humana e às sociedades. A crise econômica existe desde que existe o homem. 
          Para lidar com a crise é que se aventa, quando não há outra saída, o racionamento, uma medida que restringe o acesso ao bem ou recurso em extrema escassez. Pela cartilha do senhor filósofo, tal medida é inaceitável e não se deve obedecer. Felizmente não é o senhor Agamben o encarregado de abrir e fechar as torneiras dos reservatórios, nem o responsável pela liberação da energia para as cidades. Se o fosse, o caos estaria instalado e o recurso limitado deixaria de ser limitado e passaria a ser inexistente. Ficaríamos todos no escuro e sem água para beber, donde se conclui que ele é pior do que a senhora Dilma Rousseff, embora isso não seja um motivo bastante forte para se ter esperança. 
          O resto da entrevista é um blablablá medonho que somente os “cérebros” serão capazes de compreender. Por ter tanto tempo livre, presumo, é que o senhor Agamben se permite essas lucubrações sem pé nem cabeça, tomando um tinto envelhecido, a garrafa de mil euros, e enriquecendo o paladar com caviar. (É possível que esteja cometendo uma tremenda injustiça com o compenetrado pensador, mas me agrada muitíssimo pensar nele como mais um comunista que adora surfar nos prazeres capitalistas.)
          Eu, buscando me aculturar, li a entrevista na íntegra. O resultado é que perdi meu precioso tempo. É o que acontece quando damos espaço às bestas comunistas. No que me diz respeito, pelo menos, prefiro pensar que sou uma besta menos besta. Afinal, o pensamento é meu e penso o que quiser e bem entender. 

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