Por
um momento cheguei a pensar que, hoje, justamente hoje, uma
segunda-feira, eu estaria sendo perseguido por ela, a segunda-feira.
Diferente do Crusoé, que encontrou o Sexta-Feira, imaginei que a
segunda-feira seria, doravante e para mim, uma presença densa e
constante. Ao seu final constatei – a segunda-feira é, de fato, um
dia incomum.
Paro
no cruzamento entre Pessoa Anta e Alberto Nepomuceno. À direita o
motoqueiro não dá a mínima para o farol vermelho e imprime
velocidade à sua bicicleta provida de motor, avançando o sinal. À
esquerda, um outro, um motociclista, para a meu lado e, olhando para
mim, comenta, referindo-se ao insano: – “É por isso que ninguém
respeita a gente e pensa que somos todos iguais a esses malucos”...
Concluí que os preconceitos e os posconceitos frequentemente se
confundem. De fato, no caso em questão, o posconceito prevalece
lastreado em evidências gritantes e incontestáveis, o que leva
muitos de nós a serem levados na conta daqueles que não amam suas
vidas o que, obviamente, é uma dedução presunçosa e injusta. Toda
regra tem lá sua exceção...
A
nota mais robusta do dia foi a reunião. Não sei se comentei –
acho que não comentei –, mas fui convocado a uma reunião. Meus
mais antigos e recalcitrantes leitores sabem – detesto reuniões.
Pois fiquem sabendo que a tal foi marcada para hoje, uma
segunda-feira. Por aí se vê como minhas segundas-feiras têm sido,
no mínimo, suspeitas. O sujeito podia ter marcado a reunião para a
terça, para a quarta, para a quinta ou para a sexta-feira. Mas não
– marcou-a para a segunda. Ao menos uma vantagem tive – pude
preparar a “defesa” ou, melhor dizendo, a pauta no fim de semana.
Como detesto reuniões, ninguém obviamente acredita que eu tenha
perdido meu fim de semana preparando a pauta de uma, e nem deve mesmo
acreditar – não perdi um segundo sequer de meu precioso tempo
preparando nada disso.
Devo
dizer, não sem uma pitada de empáfia, que nada preparei porque já
me considerava preparado. Os amigos leitores hão de me perdoar esse
deslize na humildação, mas ele, de fato, nada tem de pretensioso.
Em que pesem opiniões contrárias, o tempo de vivência é um senhor
professor, inda mais se estivermos sustentados sobre fortes pilares
de princípios imutáveis e valorosos.
Eis
que começa a reunião. Lá fora a chuva e a violência, a mesma que
nos traz, aqui no hospital, a “matéria prima” na qual labutamos.
O assunto, a pauta, a melhoria e a integração das Residências
Médicas do Instituto Dr. José Frota. Lá fora a demanda que, na
reunião, segundo o superintendente, mantém-se constante, como a
constante gravitacional, nada tem de constante. Segundo ele, a grande
diferença são as pessoas. Se as pessoas fizerem a sua parte,
superaremos as dificuldades e a demanda já não será uma variável
importante da equação. E o doutor? o médico? O médico quer
encolher, quer responsabilidades restritas, tem medo da
“juridicização” da medicina. Em suma, o médico tem medo de ser
processado. Por isso não quer ir um micra além do que faz sua
especialidade. Mas... que diabos é uma especialidade? Falando de
outra forma, quais os limites de uma especialidade médica? Onde
começa e onde termina uma especialidade médica? Mais: – até onde
onde posso atuar sem ser processado?
Quanto
menos se sabe, menos responsabilidade se tem, menos envolvimento se
tem. Trabalhemos, então, contra a maior responsabilidade.
Restrinjamos-nos a um campo restrito, bem curto, quase nada.
Esqueçamos, inclusive, o básico, a febre, os estertores, as bulhas,
o ritmo de galope, a anasarca, o facies hipocratica, a
dispneia paroxística
noturna, os ruídos hidroaéreos... esqueçamos tudo o que é básico.
Escondamos-nos por detrás da ignorância, como se a nós, médicos,
fosse permitida alguma ignorância a respeito de tudo o que
basicamente e frequentemente acomete o ser humano em suas agonias e
angústias... Fujamos, afrouxemos os laços!... Não nos
envolvamos...!
Na
reunião quase ouvi alguém dizer: – “Coitado do médico
residente!... 'Tadinho!
Tanto trabalho”!... Minha indignação quis gritar, mas minha
polidez impediu... a muito custo, devo admitir. Por um momento me
distraí e meti o dedo no nariz, em busca de uma casca de minha
crônica rinite... Súbito, me vi pego como o menino travesso a
catar melecas no nariz adulto... Estou na reunião! Aquieta-te!
Comporta-te! O residente está
sendo preservado pelo discurso que o quer preservar. Mas... preservar
de quê? A resposta veio rápida: – do trabalho excessivo, das
vicissitudes do dia-a-dia de um médico interno. Interno??
Corrijamos: – interno é o doente, não nós, médicos residentes.
Como se chama o doente? Não sabemos. Ou, melhor, sabemos sim: –
seu nome é 1304. Sim, o doente do leito 1304.
A
reunião passou por mim como o vento que não consigo deter. Boa
vontade não paga o almoço, nem resolve a questão do residente que
não quer aprender. Falou-se em cultura. Estamos sob a égide de uma
nova cultura, a cultura do não envolvimento. Súbito, na reunião,
lembrei-me da definição de cultura
da Brené Brown: – cultura é a maneira como
fazemos as coisas por aqui. Perfeito! Demonstrei aos presentes à
reunião que cultura é um modo, uma maneira de agir. Eles diziam:
–“Aos poucos vamos mudar a cultura”... Sem falar, sem emitir um
som, como um coelho prestes a ser abatido para o churrasco, eu
gritava para dentro de mim mesmo: –“Não, não, não! A cultura
numa instituição se impõe pelas regras e elas, as regras, são
ditadas pela caneta da autoridade”!
Eis aí tudo... a
autoridade... A autoridade persegue, corta o ponto, desconta o
salário... mas não impõe a cultura que gera resultados!
Acabada
a reunião – mesmo que não estivesse acabada, para mim ela já era
passado – saí. Devo dizer que bebi do café e da água de coco
dos chefes, mas tive náuseas e refluxos. O melhor é que, mais uma
vez, tive a certeza: – reunião nada resolve. Evitar a ilusão me
acalmava, me dava uma sensação de unicidade, de clarividência e
liberdade. Eis aí tudo: – liberdade! Pensar segundo as regras de
pensar é uma forma de submissão ultrajante e aviltante. Mais gente
sou com o dedo no nariz a arrancar melecas e crostas riníticas. À
tarde, a má notícia – a gravíssima doença de um querido amigo,
de um colega... As lágrimas queriam vir e eu as suprimia, eu as
afogava, eu as bebia, nelas me afogava... E pensava e levitava como
se pairasse dois ou três metros acima do chão, como o bêbado do
dia-a-dia que não repousa... Ah...! é segunda-feira, dia com
cara... de segunda-feira. Mas, que importância tem isso se quem
vive, vive e quem vai morrer, vai morrer? Perdi a noção... devo
por aqui ficar...
Nenhum comentário:
Postar um comentário