Dizia hoje um repórter da SIC Internacional, uma emissora de
televisão de Portugal, que a seleção brasileira de futebol está a
jogar “a passo”; e que, por isso, via boas possibilidades de
vitória sobre o Brasil no jogo da próxima sexta. Imagino que o
“jogar a passo” ao qual se referiu o repórter seja o mesmo
“jogar de salto alto” a que me referi há alguns dias.
Sim, a seleção brasileira faz tantos toques de lado que parece que
suas chuteiras têm salto alto. Seu ritmo em alguns momentos do jogo
é tão lento que nos enchemos de exaspero. A própria seleção
portuguesa não se intimidou – hoje partiu para cima dos coreanos
do norte e os arrasou. O regime há de estar a engendrar uma severa
punição ao escrete.
Não bastasse nosso jogo enfadonho, a imprensa local, que está
sempre a querer manipular nossos sentimentos e opiniões, comemorou
hoje o segundo gol do Luís Fabiano ontem contra a Costa do Marfim
apelidando a jogada que o antecedeu de “a mão de Deus brasileira”.
Cá entre nós, se há uma tentativa de fazer humor com uma jogada
irregular feita por um atleta brasileiro, é uma horrorosa e tétrica
investida. Se houve perfídia no lance – o que de fato aconteceu de
forma escandalosa! – o mínimo que a imprensa poderia fazer era
ficar calada. Esta mesma imprensa indignou-se e revoltou-se
recentemente com um gol de mão feito por atleta do Paraná contra o
time do Ceará Sporting. A própria imprensa nacional quase vai ao
delírio quando o Maradona fez um gol de mão na copa do México em
’86. Para nos deixar ainda mais atônitos, a Argentina terminou
campeã. Fomos tomados de acessos e cólicas irremitentes. Que
mensagem sub-reptícia quer esta imprensa passar a seus leitores?
Falemos ainda da imprensa. Certa vez o senhor Galvão Bueno afirmou
no ar, para os quase duzentos milhões de brasileiros que o
assistiam, que gostaria de ganhar não sei que torneio através de
uma vitória frente à Argentina com gol de mão marcado aos quarenta
e seis minutos do segundo tempo. Não me lembra se o senhor Galvão
Bueno fez tal comentário antes ou depois da façanha Argentina no
México. Se antes, o Maradona agradece até hoje a dica; se depois,
demonstra que ele morre de inveja da desonestidade dos argentinos em
campo.
Alguém que me lê há de lembrar este triste episódio. O homem,
também querendo fazer piada, é apologista de comportamento
desonesto, assim como a imprensa local, desde que não seja contra si
mesmo, ou contra seu país, ou contra os seus. Eis aí exposto em
sumas palavras o pensamento de parte da imprensa brasileira, talvez a
traduzir e explicar nossos políticos e o comportamento de boa parte
dos brasileiros em seu dia-a-dia.
Voltemos à imprensa portuguesa. Entrevistados nas ruas do país, do
Algarve ao Porto e Norte, na Madeira e Açores, os portugueses foram
francos: - a vitória numa copa do mundo com escore tão alargado é
coisa para acontecer uma única vez a cada século. Por um momento me
assaltou a dúvida: é raro o escore ou é rara a passagem às
oitavas-de-final? Presumo que ambos o sejam. Estavam tão extasiados
que comemoravam como comemoram aqui os ufanistas brasileiros.
Acreditam que podem vencer o Brasil, mas já estão satisfeitos com o
feito de hoje.
A moral de toda essa estória é que nós brasileiros não sentimos
a menor vergonha de lesar os outros. Traímos nossa impostura ética
em nossa retórica cheia de mágoa e indignação quando somos nós
os feridos. Quando não há vergonha não há pecado. Vide Adão que
se escondeu da face de Deus quando ouviu sua voz a chamá-lo no
jardim. Fosse Adão brasileiro viria nu ao encontro do Senhor
mascando chiclete e retrucando: -“Fala aí, meu velho!”
A “mão de Deus brasileira” é, de fato, a mão do pai da
mentira.
Fernando Cavalcanti, 21.06.2010
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