sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A PROPOSTA DO DOUTOR FULANO

              Nada se deve prometer. Hoje se tem a intenção. Amanhã se tem o arrependimento e a má fama. Então, melhor é nada prometer. Ou, ainda mais cômodo, se quer prometer que vai realizar algo, faça-o a si mesmo. Ponha como uma meta pessoal a ser atingida, custe o que custar. Assim evita-se a má fama.

            Dizia o professor Heródoto, de História, que todo homem tem seu preço. À época, divulgava abertamente o seu: um milhão de dólares. A alguns parecerá pouco, mas eram os anos setenta, e o dólar custava uma penca de cruzeiros, a moeda da época. Assim, tínhamos a nítida impressão de que o professor era caro. Não se o compraria barato. Nós, os alunos - todos recém adolescentes - ainda não nos tínhamos dado ao trabalho de nos etiquetar preços. Nem de divulgá-los. A vida viria a fazer isso mais tarde.

            Entretanto, não tenho dúvida que o preço de um homem muitas vezes não se paga com dinheiro. Em outras palavras, há valores tão elevados que nem todo o dinheiro do mundo será capaz de cobri-lo. Continuará o homem a ter seu preço, como pregava professor Heródoto, só que de valor não monetário. Vamos a um exemplo, onde descobri que não me vendo barato.

            Eu estava no consultório quando a atendente me interfona para anunciar que acabara de chegar o doutor Fulano, médico ecografista. Fiquei muito feliz pela honrosa visita, pois era para ele que encaminhava meus pacientes a realizar as ecografias. A ecografia é um exame cujo resultado depende muito do examinador. Hoje isso é cada vez menos verdade, visto que os aparelhos estão cada vez mais capazes de fornecer imagens que até a mamãe saberia interpretar. Contudo, isso ocorreu há mais de dez a doze anos. Ainda valia a competência do examinador. Os laudos do doutor Fulano eram compatíveis com a clínica do paciente bem como com os achados cirúrgicos. Por tudo isso eu nutria por ele um grande respeito e admiração, mesmo sem o conhecer pessoalmente. Fácil é, então, entender minha alegria por saber que naquele momento ele vinha pelo corredor para me visitar no consultório.

            Cumprimentamo- nos efusivamente. Pedi a minha secretária água e café, e iniciamos uma conversa amena, que não durou mais que três ou quatro minutos. Lá pelas tantas, doutor Fulano revelou o verdadeiro caráter de sua visita. Vinha, a “pedido” do dono da clínica radiológica em que fazia seus exames, oferecer-me uma “participação nos lucros”. Ora, eu encaminhava os pacientes para com ele fazer os exames por uma razão muito simples: eu precisava das informações que o exame me fornecia para resolver o problema dos pacientes. Toda a coisa girava em torno do melhor interesse dos pacientes. Essa era a razão de tudo. Não me passava pela cabeça auferir lucro neste cenário. Estava havendo ali uma tentativa de me corromper e cooptar.

            Ainda bem que minha secretária agira com rapidez, de modo que o café e a água já haviam sido devidamente servidos e bebidos. Delicadamente agradeci a visita e disse-lhe que não aceitava a proposta, mas que continuaria a enviar-lhe pacientes para que ele me ajudasse a ajudá-los. Assim, nos despedimos.

            Como um sujeito como eu - que passa boa parte de seus dias a ferroar más condutas e maus caracteres - pode se deixar ter teto de vidro? Não pode, eis a resposta. Como um reles mortal, sou um poço de defeitos. Mas não posso ser incoerente nem me contradizer. Um homem precisa zelar por um mínimo de decência, ter um mínimo de virtudes, sentir prazer com ações que o aproximem da nunca atingida perfeição do caráter. Somente a tentativa cristalina e verdadeira já indica a preocupação em não fazer o mal.

            Outro dia, não faz nem uma semana, um amigo disse-me que eu tinha moral para falar, e sugeriu que eu só a tinha porque ainda não fui testado. Pensa ele, certamente, se é que o entendi, que eu faria a mesma coisa que fazem aqueles que estão em posição vantajosa: relutam em largar o osso.

            Aviso, então, a todos – de antemão - que não aceito qualquer proposta indecorosa que cogitem em me fazer. Há muitas, e muitas, e muitas formas de ganhar dinheiro honestamente mantendo-se a integridade e a honra. Não há, para os que não têm medo de trabalhar, possibilidade de faltar dinheiro no bolso. Nem há a necessidade de concorrer com a malta por cargos e posições e assessorias para auferir recursos abdicando-se da paz do viver sabiamente. Rejeito, peremptoriamente, os testes a que eventualmente me queiram submeter. Eles não encontram eco em minhas prioridades. Logrei bem me suceder na vida. Cheguei onde queria, de acordo com os planos que fiz quando estudante. Tenho hoje outros projetos em pleno andamento que mantêm minha paz e me dão prazer em viver. Repito: cedo percebi em mim o horror pela competição. Isso catalisou minha ambição e a tornou sadia. Aprendi que não se tem sucesso sozinho, que o melhor sucesso é instigar os outros, e ajudá-los, a ter sucesso. O meu próximo sucesso é ajudar outros a ter sucesso.

            Minhas promessas estão guardadas em mim. E as cumprirei custe o que custar. Este, sim, é um bom teste a me fazer a mim mesmo.

 

Fernando Cavalcanti, 06.06.2009         


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