domingo, 4 de dezembro de 2022

EM VIAGEM

Quando vim à Europa, tinha a intenção de escrever durante a viagem. Impressões, opiniões, comentários, descrições, fatos dos quais fosse protagonista, ou fatos dos quais tivesse conhecimento no velho continente, tudo seria objeto de minha pouco aguda percepção.


A cansativa viagem, apesar do muito que me ofereceu em matéria para escrever, me demoveu do propósito inicial. A exaustão física que resulta de uma noite em claro é algo que não devemos desdenhar, e algo impossível de olvidar. Essa exaustão embota até mesmo as expectativas positivas. Senti-me tão exaurido em minhas forças que me invadiu uma enorme sensação de desamparo e solidão. Seriam saudades de casa.


Não reduzam, por favor, essas saudades à simples necessidade do conforto físico do lar, a uma busca por um encosto, um espaldar macio e fofo onde pudesse repousar a cabeça e o corpo. Seria algo maior, algo mais abrangente. Ter-me tornado um sujeito sensível e ao mesmo tempo empedernido fez nascer em mim uma dualidade que, longe de me ser prejudicial, habilitou-me a comutar a característica mais adequada à situação. Para isso está implícita a necessidade de ter a razão no controle, a fim de escolher com sabedoria. Se por um lado continuo em minha essência a ser um sujeito chorão, por outro me tornei implacável comigo mesmo, visto que detesto a pieguice das vulnerabilidades insensatas que obnubilam a razão. O coração e a racionalidade podem se complementar, usados juntos, levando à plenitude da existência. Jamais um deve sufocar o outro, sob pena de se vir a ser um brutamonte ou um borra-botas. O esgotamento resultante da viagem me trouxe à tona as fraquezas, o menino indefeso e solitário, o homem sob o coração. Em suma: prevalecia o joão-ninguém.


De qualquer forma, convém ao entendimento, e atendendo afinal a meu primeiro intento, descrever o que foi dentro de mim.


 


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Já não conseguiria descrevê-lo. Os sentimentos fugazes, sem importância, são como uma febre passageira, uma morrinha, uma cólica. Vêm e vão sem que tenhamos tempo de lhes diagnosticar a etiologia. As defesas do corpo são mais rápidas que o tempo necessário para a análise, e mesmo elas abortam outros comemorativos fundamentais à sua identificação. Já se vão três dias passados. É difícil, senão impossível para mim, lembrar o que de triste e melancólico senti. Quero crer que meus mecanismos mentais de defesa, implacáveis como os leucócitos com memória, deram cabo dessa tralha emocional. Boa saúde e fraca memória são o segredo para a felicidade, é o que se diz.


 


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O fato lastimável é que já se vão quase sete dias de minha partida e nada escrevi, exceto por essas poucas linhas, escritas ao longo de todos eles, à moda freqüente a princípio, e quase nada aos demais.


O que ocorre, talvez, seja um outro ônus imposto pelo envelhecimento. O corpo padece das fraquezas e vulnerabilidades do envelhecer. Será possível que o mesmo venha a ocorrer com o espírito? Ao longo de toda uma vida, sempre atento e cônscio da brevidade do tempo, tenta-se solidificar o espírito a fim de prepará-lo para a solidão da morte próxima. E o que nos espreita é a consciência da solidão da vida. A solidão da morte há de ser escura e sem a participação dos sentidos, ao passo que a da vida é dolorosa como uma queimadura na alma. Terá sido esta a que experimentei. A distância enorme, e que aumentava a cada segundo, de meu cubículo onde estão meus restos do que sobrou de minha vida assemelha-se a aguda lâmina a me penetrar lentamente o âmago, impiedosamente. Não há seres humanos em minha solidão. Dela nenhum participa pela sua ausência. Os restos que permanecem em minha vida são nada mais que objetos. Inanimados, figuram em meu dia-a-dia como ícones da realidade que tanto tentei e teimei não enxergar, mas cujo peso extenuante faz ceder a mais obliqua cegueira. Sua existência preenche as sensações e os sentidos de forma plena, suave, serena, superficial. Sua existência não é contundente. Sua existência não agride. Dessa forma, poupo os sentidos das sensações, dos estímulos. Os olhos, quando os vêem, nada vêem. O espaço que ocupam é a única informação que passam de sua existência, e permite-me existir na serenidade de sua presença. Agora, neste momento, mesmo dessa presença me sinto isolado, excluído. É deles que sinto saudades.


 


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É obvio, estou a enganar-me. Com relutância devo admitir que ainda sinto saudades de uns poucos humanos. Sejam o grupo ou isolados, sinto a falta de alguns desses tipos, desses espécimes. Não me entendam mal. Não pretendo estar acima do bem e do mal, nem acima de ninguém. Já antevejo a hipótese dos muitos que me detestam. Pensam também de mim algo semelhante, e em nada deles sou diferente. Ainda me imprimem a sensação do vazio, da presença do nada, da ausência da vida pulsátil quando se ausentam desse jardim da minha vida, quando ausentes nesta distância implacável e tamanha. Preferiria a frieza da ausência do coração pulsátil, preferiria a não existência dos normais sentimentos que unem os que se aproximam com a cola mágica da fragilidade persistente. Contudo, não nos acontece o que preferimos. Acontece-nos o que nos acontece. Resta-nos aprender a lidar com o que nos acontece. Como tudo o que nunca tentaram nos ensinar, não nos deram uma boa lição sobre como abandonarmos nossas fraldas e cueiros, ou coisas similares. Por seguimos chorosos e chorões, como eu.


Quantos filósofos terão se debruçado sobre as fraquezas humanas e suas criações fantasiosas sobre como lidar com suas angústias e prantos? Ah... não perderei tempo com essas chatices! Incomoda-me perturbar o que se aventurou a me ler. Discorrer sobre filosofia e filósofos pode indicar a petulância de se mostrar culto ou o enveredar genuíno e compenetrado em suas considerações profundas. Se falasse sobre tais assuntos, não seria pela primeira hipótese – sou um ignorante em filósofos e filosofia. Hipnotizam-me suas tristezas e angústias. Tão somente. Nada mais.


 


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Sou um turista incompetente. Não tenho a pinta, os trejeitos, os trajes. Só sabem que sou turista quando estou fora do circuito latino. Tenho olhos e cabelos castanhos, nariz e maçãs do rosto ósseas e pétreas. Sou latino. Os saxãos percebem. No mais, em mim nada vêem de exótico.


Na alcova dos hotéis ou da casa de amigos onde pouso, também não sou “o turista”. Leio livros que levo a tiracolo, revistas do Brasil, escolho não sair. Sou o antiturista. Os anfitriões tentam me agradar e tudo que faço é um muxoxo. Sou um balde de água fria na expectativa alheia. Mas... que culpa tenho de minha frieza turística?


Li “Gomorra”, de Roberto Saviano, jornalista italiano nascido há trinta anos em Nápoles. Apenas um garoto. Sua obra, a primeira, vendeu mais de dois milhões de exemplares, e virou filme concorrente italiano ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Li-o em viagem. Após os museus, o Saviano. No dia europeu de dezoito horas de sol cumpre-se toda a agenda do antiturista.


Enquanto apreciava fascinado a exposição do Rijksmuseum de Amsterdam, lia Roberto Saviano. Apesar de minha marmórea frieza turística, fui ao chão de joelhos em prantos ante “The Night Watch”, de Rembrandt van Rijn, de 1642. É algo indescritível. É soberbo. Sua beleza e genialidade porejam no coração dos que o contemplam. Poder-se-ia apreciá-lo por horas, dias, meses, e sempre se descobriria algum detalhe a mais de tirar o fôlego. Eu, em minha humilhante e ignorante aversão à pintura, capitulei. Conclui, então, que a ignorância é a mãe de toda contenda, discórdia e empáfia.  


 Enquanto meus joelhos tremiam, lia “Gomorra”, e me horrorizava. De um lado os gozos de Rembrandt, do outro o terror que saltava da pena de Saviano a me chicotear a humanidade. Rembrandt e Camorra. Meus dois companheiros de viagem ao velho mundo. Tão opostos e tão presentes. Um, a arte sublime da inspiração e do talento humanos naquilo que têm de mais genial; o outro, a podridão da escória da mesma raça. Como saber quem é quem? Disse o Homem: -“Pelos seus frutos os conhecereis.” Em meio a tudo isso, a viagem. Eu, o turista que se deixou arrebatar pela genialidade humana na arte que desprezava, separava o joio do trigo.


Depois, entre os meus, Lisboa e o Mosteiro dos Jerônimos, sobre os ossos de Camões e da Gama. O sol era forte e o vento frio.


 


Fernando Cavalcanti, 04 a 19.07.2009 



segunda-feira, 15 de agosto de 2022

ENTRE UM CAFÉ E UMA CERVEJA

Sempre muito me impressionou a paixão que alguns pupilos nutrem indefinidamente por seus gurus. A princípio parece que essa seria uma regra à qual muitos desobedecem, já que nem todos os discípulos assim o fazem. Tais rebeldes são sumariamente taxados de insolentes, arrogantes, mal-agradecidos e, com efeito, não deixa de também causar impressão um aluno ingrato. O diabo é que o tempo - esse sim, o verdadeiro mestre – vem nos ensinar que há gurus memoráveis e adoráveis, e que também há gurus deploráveis e olvidáveis.

Nunca esqueço o Chico que, de tanto amar e admirar seu mestre Queiroz, aprendia com ele até outras práticas e hábitos fora do ofício. O Queiroz, ao que parece um apreciador da bebida feita a partir da semente do Coffea sp, influenciou tanto o Chico na matéria regular que o homem também passou a beber e entender tudo de café. (Conheço o Chico já se vão quase trinta anos e até então nunca lhe vira tomar uma única e mísera xícara da bebida.)

Coincidência ou não, quanto mais tinha contato com seu ex-mestre mais de café entendia, ou ao menos parecia entender. Comentava dos tipos, das várias espécies, de detalhes dos grãos, dos diferentes modos de preparo, das marcas industrializadas disponíveis no mercado, dos sabores, e tal, e tal, e tal. Com tanta informação a lhe exalar pela boca e outros orifícios, me era impossível duvidar que o homem tinha, sem tanto o querer e já querendo, uma nova profissão.

Ocorre, para provar que era mais influência e ascendência do outro do que propriamente o apreciar o hábito e a bebida por ele próprio, que suspensos os contatos entre ambos sumiu o novo e empolgadíssimo barista. Voltou à cena o Chico de outros e velhos e bons carnavais, o Chico cervejeiro. Embora menos conhecedor de tantos detalhes da cerveja em comparação ao conhecimento adquirido rapidamente à semente do Queiroz, apreciava-a com uma sofreguidão medonha. Digo apreciava e corrijo de imediato: hoje a aprecia ainda mais. Aproximando-nos ainda mais da verdade, o Chico beberia uma piscina de cerveja com três tubarões dentro e ainda comeria a carne desses pobres  eslamobrânquios plagióstomos como tira-gosto.   

 Paremos a léria e confessemos o propósito.

Os ícones tornam-se ícones pelo caráter irretocável aliado a seu imenso saber técnico posto a serviço de quem necessita. E tudo isso tem o Queiroz. Por isso o imenso amor do Chico por essa figura que a ele é cara. Em uma única frase, que traduz o amor de um fedelho por seu padrinho: quer imitá-lo. Sua admiração é tão grande que quer ser como o mestre. Eis aí tudo.

Mas há outros mestres. Convém falar? Não convém. Acho que convém. Vá lá que seja.

Outros há que, passado algum tempo, cai-lhe a máscara e, ainda que seja possuidor de grande quantidade de saber técnico, das duas uma: ou não se dispõe a ajudar a quem necessita, ou em seu caráter se revela o ser humano em sua completa vileza. A esses, ainda que a princípio tenha feito brotar o amor e a admiração de seus alunos, restará a indignação da visão da monstruosa verdade, seguida da descomunal tristeza por sua morte em vida, a morte do mestre que não é mestre.

Não queiram experimentar. É uma cena horripilante.

 

Fernando Cavalcanti, 09.12.2010   

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...