segunda-feira, 22 de junho de 2020

VERDADE?

Recentemente quis o destino que estivesse de frente a dois entes absolutamente estranhos. Diria até serem eles imiscíveis, algo como o óleo e a água. Mas... quem são eles? Respondo: – são eles “o entendimento” e “a verdade dos fatos”. O que aconteceu foi o seguinte.
Um amigo, em interessante diálogo com não sei quem, quis lucubrar sobre a possibilidade de “a verdade dos fatos” ter dono. Imaginem.  Ele supôs, em sua “pureza” de amigo que, se o sujeito se acha dono da verdade dos fatos, agirá conforme a autoridade advinda de tal possessão ou, dito de outra forma, agirá conforme seu entendimento. Seria como se... sei lá... aos amigos tudo fosse permitido. (Já estou cá a fazer valer a minha posse da verdade que diz que, sendo amigo, tudo pode.)
 Falando assim parece não fazer sentido o que foi dito ao início. Se o entendimento e a verdade dos fatos são mesmo imiscíveis, então eles seriam mutuamente exclusivos. Daí pergunto: – como, então, pode o sujeito, dono da verdade dos fatos, agir conforme seu entendimento? Bingo! Pois – pasmem! – é exatamente o que acontece.
Não se vai muito longe sem antes se ter o vislumbre da explicação do porquê isso ocorre. Com efeito, ela se apresenta clara como água: – ninguém, agora ou em tempo algum, é dono da verdade, inda mais da verdade dos fatos. A propósito, a expressão “verdade dos fatos” é uma imensa tautologia, um brutal pleonasmo, uma inexorável redundância. Contra fatos não há argumentos, diz a fria sabedoria popular. Falar-se na verdade dos fatos seria como se referir à “verdade verdadeira”. O fato simplesmente é. E ponto final. A pessoa que age baseada em seu julgamento próprio e pessoal nunca estará agindo com base nos fatos, eis a grande conclusão. Dizia Hugh Prather que “o erro é um lembrete de que não estou lidando com os fatos”.
O problema é que viceja por aí a ideia de que cada ser humano, cada um de nós, tem a sua verdade, sendo ela irretocável, inviolável e absoluta. Por aí se vê que, supondo que todos pensem pensamentos de toda sorte, que todos desejem desejos de todo tipo, que todos sintam sentimentos de toda origem e fins pessoais, a suposta verdade de cada um é tudo, menos a “verdade dos fatos”; é tudo, menos a “verdade verdadeira”.
Eu ia dizer qualquer coisa, fazer um comentário imbecil – sou bom em comentários imbecis – mas, arrefeci. Fiquei quieto. No final, só pude concluir o seguinte – a evidência brutal da diminuta e ao mesmo tempo enorme diferença entre a única e irrevogável verdade dos fatos e nossas bilhões de diminutas e insignificantes verdades individuais. Indo além, diria que nossas microscópicas verdades individuais abrigam apenas e tão-somente nossos inflados e pobres egos, na luta para sobreviver. A pergunta que me faço é: – sobreviver a quê? Só posso supor que lute para sobreviver à nossa consciência ou, melhor dizendo, à consciência individual de cada um de nós.
Voltemos ao “entendimento” ou, melhor, falemos dele. Digo, o amigo admoestava o outro sobre o perigo de a verdade dos fatos se confundir com o entendimento pessoal. A conversa carregava algo de alucinatório, algo de imponderável, algo de intangível... parecia uma espécie de delusão verborreica, uma espécie de surrealidade, dado o bizarro daquele momento.
Ora, aquele que se referiu à “verdade dos fatos” quis, claramente, enfatizar seus argumentos, deixar claro não se tratar de uma opinião, de um entendimento pessoal. Baseava-se, unicamente e exclusivamente, nos fatos.  
Tudo isso, esse “palavrório” todo, vem à guisa de demonstrar para onde certos diálogos são levados. Como ele, o diálogo, tem um componente mínimo de dois indivíduos, pode, em determinado momento, a certa altura, passar a ser conduzido por um deles, tendo em vista a perda do fio da meada por parte do outro. Vejamos um exemplo.
Os comunistas. Não, não... Vejam o Carlos Marighella. O que direi sobre este senhor pode, a seguir, ser usado como uma figura de linguagem sobre o comunismo.
Este senhor escreveu um livro, “Manual do Guerrilheiro Urbano”, acessível a quem quiser na rede mundial de computadores, que trata sobre como matar pessoas naquilo que levaria à vitória de sua ideologia na guerra que considerava “religiosa” contra o resto do mundo. Bem dito, uma vez que sua guerra não tem território específico. E tem: – em todo o território do planeta Terra deve ou deveria viger o comunismo. Para quem não sabe – e acreditem: muita gente não sabe – tudo é de todos e nada é de ninguém. Uma ressalva sobre esse “tudo”. Na ideologia comunista esse “tudo” é a miséria geral e irrestrita, escapando dela somente os que perambulam em torno do poder central. Não sei se me fiz entender... Há mais. Aqui não estamos falando de bens materiais somente. Há o principal, o mais importante, a ser subtraído do ser humano – sua liberdade ou a supressão dela. Como há duas liberdades, a física e a não-física – mental, espiritual e emocional –, à supressão do direito de ir e vir se associa a supressão do pensamento e todas as consequências dele, tendo como pano de fundo a miséria endêmica.
É histórico o que aconteceu à população cujo país se deixou dominar por esta nefasta ideologia – os extermínios em massa, os assassinatos em massa antes do grassar da bancarrota econômica e da miséria geral.  Não se trata de uma opinião, minha ou de quem quer que seja – é histórico, repito; são fatos, são verdades levadas a inúmeros tratados e livros por autores de diversas nacionalidades e origens, muitos deles ex-comunistas ferrenhos que se renderam à dura realidade contra a quimera que lhes foi vendida (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/12/os-crimes-do-comunismo-excerto-do.html).   
                Assim, estamos diante de fatos históricos que referendam a natureza assassina e desumana dessa ideologia que, repito, pretende dominar todos os seres humanos da face da Terra. Sim, não há meio termo para comunistas. Para eles só há vida e “direito” a ela no comunismo. Fora isso, resta somente a morte para os “rebeldes”.
                Agora pergunto, a propósito do amigo que inquiria do outro se não seria o caso eliminar o comunista que está em vias de subverter a ordem e já agindo conforme reza sua cartilha: – não seria legítima defesa? A pergunta do amigo era baseada em fatos ou, melhor dizendo, na verdade que se lastreia em fatos. O outro, seu interlocutor, já saiu com a justificativa de que, feito isto, seria um flagrante uso do entendimento pessoal para agir criminosamente tal qual o real criminoso, o criminoso de fato; como se o exercício da legítima defesa tornasse um inocente que reage semelhante em maus bofes ao que faz uso de cartilha que manda odiar o ser humano e matá-lo tão logo tenha a oportunidade.
                Como disse o José de Alencar ao final de “Iracema”, tudo passa sobre Terra, ao que eu completo, numa conclusão nada poética – tudo passa numa cabecinha humana...

sexta-feira, 19 de junho de 2020

VERGONHA SOBRE MIM!

              Detesto que me elogiem. Sou um poço de imperfeições e erros. Por isso detesto quando me atribuem qualidades que não tenho; ou, mesmo que suponham tê-las, que as exponham tão fragorosamente. Já disse uma vez que o elogio é a véspera da decepção. Disse também que a decepção depende de quem as tem. E é verdade. Quem mandou elogiar e esperar tanto? Por isso já há algum tempo, muito tempo, deixei de ser tiete de quem quer que seja. Aprendi cedo a ver os outros como seres humanos, somente. De carne e osso como eu. Imaginem o George Bush sentado na privada com diarreia. Quem seria, então, o George Bush? Seria um mísero ser humano se esvaindo numa cagada. Igual a qualquer um de nós. A diferença dele para nós é que ele tem o poder de apertar os botões. Para os que ainda estão vivos ele é poderoso; para os sobreviventes ele seria um insano, um assassino, um imbecil, um troglodita. Um Hitler. Então, não me elogiem. Não me puxem o saco. A qualquer momento posso falhar.
                Fiquei sabendo hoje que um colega do hospital me esculhambou. Falou mal de mim às pampas. Disse que eu era tudo menos santo. Disse que eu era tudo menos um bom médico. Pensei: ele deve estar certo. Tenho sido um mau colaborador. Tenho sido um péssimo funcionário público. Tenho sido muito rebelde. Não tenho acatado as diretrizes dos gestores. Não tenho sido humilde como o gado à espera do cutelo. Tenho sido impertinente e inadaptado. Admito. Eis meu mea culpa. Sou réu confesso. Tenho falhado reiterada e obstinadamente. Não me puxem o saco os meus doentes sob meus cuidados.
                Sim, os meus doentes, que estão sob os meus cuidados, gostam até de minhas impolidezes e rudezas. Gostam quando lhes digo a verdade e os responsabilizo por suas agruras e maldizeres. São uns loucos. Gostam de me ter como amigo, porque dizem que os repreendo com a franqueza do que ama. Estão loucos, com certeza. Onde já se viu?... E não lhes aborreço com minhas estúpidas brincadeiras, que os divertem e lubrificam nossas relações fadadas ao tecnicismo de meus pouquíssimos conhecimentos da ciência médica. Devo ser um George Bush com diarreia para eles. Eles me presenteiam quando lhes digo que tudo vai dar certo, mesmo sabendo que estou a lhes mentir descaradamente. Eles dizem que acreditam tanto em minhas mentiras que quase ficam curados. Pena que são mortais, e eles ririam de mim se lhes dissesse que jamais iriam morrer nem sofrer. Confesso nunca ter chegado a tanto. Correria o risco de ser processado por falsidade ideológica, ou por propaganda enganosa, ou por negligência. Eles não sabem, mas os sucessos de minhas operações se devem todos à sorte. Todo canalha é sortudo. E eu não sou diferente. Tudo dá certo porque tenho sorte. Se soubesse realmente operar teria qualquer dia uma ou outra complicação. Por isso não aprendo. Prefiro seguir confiando em minha sorte.
                O meu colega que me detesta me desmascarou. Eu sou um embuste, uma enganação, uma farsa. Minha técnica cirúrgica é imperfeita, e minha formação cheia de lacunas e erros irreparáveis. Minhas boas relações com os médicos de branco desta terra foram sempre repletas de interesses escusos de minha parte. Sempre queria lhes subtrair algo, mesmo caindo sempre em suas graças e bebendo de sua fonte inesgotável de saber e sabedoria. Doutor Régis Jucá quase morreu de rir quando lhe contei, durante uma operação, que o filho chegou para seu pai e perguntou: -“Pai, quanto custa casar? E o pai: -“Não sei, filho, ainda estou pagando!” Ah!  Eu estava me locupletando do grande médico e homem Régis Jucá! E não me esquivei de todas as obrigações a mim impostas pelo grande João Evangelista Bezerra Filho, meu chefe na residência de Cirurgia Geral, porque queria lhe peitar. E lia todos os livros e tratados de Cirurgia porque tinha a petulância de o querer imitar... Fui um estúpido subserviente: obedecia à risca a tudo o que meus mestres em Cirurgia me mandavam. Fazia isso por fingimento e sonsice. Eu queria apenas me projetar, ser um puxa-sacos, ficar em evidência, satisfazer minha vaidade incontida. Escondia ainda minha petulância e arrogância que meu colega, o que me detesta, acabou por desmascarar.
                Minha canalhice é tamanha que pretendi questionar o funcionamento de hospital tão exemplar como aquele em que labutamos. Minha arrogância chegou ao ponto – imaginem! – de eu ter consultado o Conselho Regional de Medicina do Estado na tentativa torpe de entravar práticas tão cristalinas de medicina de primeiro mundo. Tentei – meu Deus, eu não presto mesmo – destruir tudo, todas as rotinas, protocolos, algoritmos, enfim. Eu queria, e ainda quero, que este hospital não funcione. Quero que ele deixe de ser essa grande casa de saúde, onde se pratica a melhor medicina do Estado, e se transforme em... sei lá! uma grande Babel da ciência médica. Tornou-se meu propósito desfazer anos e anos de melhorias e excelência médica. Passo horas, dias, semanas, anos, atentando contra a vida através de meus embustes e sabotagens dentro daquela unidade de saúde comprometida com a melhor prática médica. Pensei inclusive – vejam como sou nefasto! – que se poderia tirar o hospital do controle dos gestores municipais - homens íntegros, sérios, comprometidos com a manutenção da instituição no mais elevado grau da prática médica corrente – e colocá-lo à mercê de interesses de políticos safados, mentirosos e venais para a realização de seus projetos de poder. Já vislumbrava para mim um cargo vistoso e poderoso, em minha ânsia de meus planos inconfessáveis agora descobertos. 
                A mim nada mais resta a não ser a execração perante meus pares e a sociedade. Temo pelos meus pais, ainda vivos, face ao desgosto de tão dolorosa descoberta, a de um filho farsante por quase quarenta e sete anos. Temo pelos meus filhos em busca de exemplos, ante o vazio que se lhes abriu sob os pés. Ainda assim fiz um bem. Involuntário, é verdade. Se pudesse não o faria. Aos acadêmicos do curso de medicina. Eles são a esperança de que esta casa de saúde e similares jamais se deixarão transformar e mudar seu rumo por influência tão deletéria como a minha. São eles a garantia de que tudo permanecerá como está. A virtude do modelo seguirá intocada, para o bem dos nobres de caráter que lhe seguem e do povo que lhe faz usufruto. 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

RESPEITE PELO MENOS O POBRE HOMEM...

Pediu licença para sair. Um paciente reclamava sua presença. Almoço em família, vida de médico.
            Dali a pouco chegava ao hospital. Comprara um desses rechonchudos sanduíches que têm de tudo. Não era para ele, era para a pequena.
Ela saiu ao seu encontro tão logo ele chegou.
Abraçou-o com força e o beijou na face. Não se apartaram até que ele, num gesto de pouca força, empurrou-a de si. Se não mais queria o romance, por que o abraçava? Ele viera porque batera uma saudade imensa. O sanduíche era a desculpa.
Entrou no carro e se foi de volta ao almoço.

                                                                                   ***
No quarto o telefone tocou. Era ela. “Espera que te ligo já”, e terminou de se vestir.
Foi para a varanda com o telefone portátil. Dizia: -“Não me ligue mais, por favor.” A paisagem era deslumbrante.
“Foi você quem desmanchou, não me procure mais. O sanduíche foi só pra te ver pela última vez”.
Desligou.
Virou-se para entrar na sala. A mulher estava parada atrás de si ouvindo a conversa.

                                                                      ***
Chamou os filhos e lhes contou da amante do pai. Dali em diante a vida se tornou um inferno. As filhas queriam agredi-lo. O filho do pai escarnecia dia e noite.
O diabo é que dali a alguns dias viajariam todos juntos, mais a outra parte da família. Eram cunhados, concunhados, sobrinhos, uma torcida inteira. E, já tudo pago, não havia como desistir.
No aeroporto desenhou-se o que o esperava nos dias vindouros – ninguém lhe dirigia a palavra. Os outros perceberam, e a mulher não escondeu seu drama: -“Vocês não vão acreditar! Esse cachorro está me traindo!”
Foram dias difíceis em terras estrangeiras. A família ia para um lado, ele para outro. Quando voltasse tinha uma operação a fazer. Ele era o paciente.
(Mal sabia que Caronte apenas esperava a levá-lo a maiores profundezas.)

                                                                                               ***
De volta ao lar, a mulher não perdia uma oportunidade de sabatiná-lo. Ao princípio tudo negara. Até que resolveu assumir: –“Sim, é verdade!”
Tolo engano esperar uma trégua. As sabatinas só pioravam. Contara tudo nos mínimos detalhes, mas de nada adiantou. A mulher não lhe cria numa só palavra. Era um mentiroso!
(Caronte atracara o barco e o convidava a subir.)

                                                                                            ***
Antes de baixar ao hospital escondeu os telefones portáteis. Temia que a outra, a enfermeira, ligasse para saber como estava, ou que lhe fosse acompanhar durante a operação.
Acordou dos sedativos na companhia da mulher e da cunhada.
Com a visão ainda turva devido às drogas pôde perceber a mulher a segurar os telefones que escondera.
Ali mesmo, no apartamento do hospital, o homem ainda padecendo de dores e drogas pós-operatórias, e a mulher a gritar com o dedo em riste: -“Canalha! Manda essa vagabunda parar de ligar!”
A cunhada, comprando a briga da irmã, fuzilou: -“Bicho sem-vergonha!”
Com a voz a um decibel do inaudível, suplicou: –“Respeite pelo menos minha cirurgia...”
Não teve jeito: -“Cachorro safado!” E emendava: –“Pulha!

                                                                                   ***
No segundo dia após a operação, à visita do cirurgião que já lhe assinava a alta, implorou: –“Me deixa aqui mais dois ou três dias!” Nem pensar! Está tudo bem e vai para casa já! Não era porque era médico que deixariam interferir na rotina.
Seria possível que a mulher e os filhos lhe dessem o mínimo de paz em casa? Nada lhe restava a não ser nutrir o mínimo de esperança... e a sonda pendurada na piroca a lhe drenar a urina sanguinolenta.
Menos dor, mais ânimo.
Levantava-se a ir ao mictório e, súbito, ainda com ardência e sangue, entrava a mulher chutando a porta: –“Cabra safado! Postema! Sacana!”, ao que ele retrucava num humilhante rogo: –“Respeite pelo menos minha hematúria...”

                                                                                   ***   
Tudo se resolveu quando alugou apartamento e mudou.
É uma paz... é um silêncio...  É o céu em vida.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

A DOENÇA QUE MATOU AS DOENÇAS

          “Robert Liston era a faca mais rápida do West End, em Londres. Podia amputar uma perna em dois minutos e meio”.
Assim começa o Capítulo 1 – Nocaute Triplo – entusiasmo cirúrgico desastroso de OS GRANDES DESASTRES DA MEDICINA, de Richard Gordon, também autor de A ASSUSTADORA HISTÓRIA DA MEDICINA.
                Fui reler isto a propósito de alguns desastres da medicina atual, em particular um quase-desastre que quase leva à campa uma pessoa próxima. Devo dizer que este é um quase desastre, ou pode assim ser chamado, por não ter resultado o pior para o paciente. Nem por isso houve menos sofrimento. Quase-desastre, neste exemplo específico, seria, de fato, um enorme e cruel eufemismo, já que fere um dos mais elementares princípios hipocráticos que manda ao médico “curar às vezes, mas confortar sempre”.
Sim, não se enganem. O leigo, em seu laicismo de leigo, pensa leigamente que sabe tudo o médico. Esquece o leigo que de quase nada sabe o médico. Em seu O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMÔNIOS, de 1995, Carl Sagan propõe que a ciência seja vista como uma velinha que queima ao centro de uma infinita escuridão. Ou seja – de nada sabemos e, em particular, de nada sabe o médico. Por tudo isso e muitas outras coisas mais é que deveria o médico cada vez mais, em seu crescente e contínuo obscurecimento, sair ao encontro do princípio correto e confortar.  Sim, confortar não requer diploma, não requer esforço mental. É preciso apenas alteridade e empatia.    
Eu ia sugerir, já agora, que o médico, todos os médicos, se ajoelhem e, de cabeça baixa e coração contrito, confessem sua completa ignorância. Sim, é grande, é fenomenal, é imensurável todo o desconhecimento. Ia fazer tal sugestão ao final, no arremate, nas conclusões, mas há um nó na garganta, um “sapo” querendo descer-me ao íntimo do ventre, e não pude me conter a fazer o pretenso inusitado convite.
Vejam, por exemplo, este senhor, Sir Robert Liston – nem sei se Sua Majestade assim o intitulou, remetendo-o à nobreza –, seus atos e respectivos resultados. No tempo em que o tempo cirúrgico era de suma importância a fim de abreviar o sofrimento do paciente – “podia-se escolher entre embriagar-se com ópio ou rum, ou morder um pano enrolado em bastão” –, ele era um dos ases da cirurgia europeia. O que ocorreu em seu terceiro mais famoso caso, no relato do senhor Gordon, diz muito:
Discussão com seu residente. Aquele tumor vermelho e pulsante no pescoço do garoto era um abscesso na pele? Ou era um perigoso aneurisma da artéria carótida? “Ora!”, exclamou Liston impacientemente. “Quem já ouviu falar de um aneurisma em um garoto tão jovem?” Tirando rapidamente um bisturi do bolso de seu casaco, ele o puncionou. Nota do residente: “Jorrou sangue arterial, e o garoto foi-se.” O paciente morreu, mas a artéria está viva, no Museu de Patologia do University College Hospital, objeto número 1256.
Não fosse a inexorável falibilidade de cada um dos médicos, diríamos que tal conduta foi um assassinato legitimado sob o manto de um ato intencionalmente terapêutico de resultado desastroso. É bem possível que tenha sido com essa ideia que o senhor Richard Gordon intitulou seu livro – desastre...
A senhora idosa chegou ao hospital por ter tido em casa o que o meu querido professor Oto Leal Nogueira chamaria de “uma síndrome cólera-like”. Após uma espera aparentemente interminável, veio “sua sumidade”, o médico. (Estou sendo injusto. Era um jovem cuja inscrição no conselho da classe me fez ter o seguinte pensamento – formou-se ontem.) Foi amável, conversou, explanou, examinou minimamente, e aqui teve início o quase desastre. Tendo em vista a pandemia do vírus chinês, só pensou segundo a clínica do vírus chinês, e o exame físico se limitou à ausculta do tórax com a paciente sentada à cadeira de rodas e vestida em seus vestidos amarfanhados de quem saiu às pressas do conforto do lar.
Os exames complementares seguiram todos a hipótese “mandatória” do vírus chinês como agente etiológico. Exames caros, em aparelhos complexos que fornecem imagens deslumbrantes, foram desnecessariamente solicitados sem, contudo, evidenciar o que tanto aqueles jovens médicos queriam encontrar. A gastroenterite desidratante com seu distúrbio hidroeletrolítico associado não se fazia “ouvir”. Tinha que ser, precisava ser, necessitava ser, era imperioso que fosse o vírus chinês. E nem um tratamento de reposição à altura, mandatório naquela situação, foi iniciado. A bem da verdade, não se aventava interná-la. Por quê? Ora, cada vez mais ficava claro – não era o vírus. Ali, naquele hospital, só os doentes do vírus estavam realmente doentes.
Paro por aqui. Digo mais apenas o seguinte – a internação só foi levada a cabo como resultado de uma pressão da família. Arrisco dizer – não fosse isso ela teria sido mandada para casa. Sabe-se lá o que poderia ter acontecido. Nunca saberemos. Ex ante se toma uma decisão; ex post se julgam seus resultados. Nunca se pode avaliar os resultados de uma decisão que não se permitiu tomar. Mas, naquele hospital, tentaram corromper princípios seculares da boa prática médica – queriam porque queriam que a clínica se curvasse ao vírus que matou todas as outras doenças.

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...