terça-feira, 26 de dezembro de 2017

OS CHIFRES DO AMORIM

         Há tempos devo uma visita à minha linda filha, que resolveu enlaçar-se em matrimônio a um vigoroso varão soteropolitano. Resolvi, então, vir visitá-la neste Natal. Na última quarta ou quinta-feira lia uma crônica do Airton Monte, onde ele confessava sua desilusão natalina. De pronto fiz minhas suas palavras e seus sentimentos. Sou um desiludido do Natal, com uma diferença: não me sinto necessitado de favores do além como parece andar o meu querido Monte. Todo dia é dia, tudo pode acontecer, posso sair de cena a qualquer hora. De mais resignação é o que preciso, isso sim. Em todo caso, estou sempre sendo vítima da boa esperança alheia, e ando também em falta com uma penca de amigos que me escreveram mensagens de fim de ano. 
        O fato é que aqui estou em São Salvador. Com minha cria tudo certo, tudo andando nos conformes. Saímos a passear por essa bela cidade e a admirar seus belos jovens e antigos edifícios, seu litoral deslumbrante, seus monumentos seculares. É tudo uma maravilha. Vista de cima ou de baixo, a cidade encanta mesmo a quem já a visitou outrora, como eu. Saboreei cada pedaço, cada seixo do Pelourinho, cada pimenta do tempero. Mas algo me incomodava. Não sabia o que era, mas um desassossego me tangia o pensamento. E já me desesperava quando desanuviou. O que era mistério se desfez na mais cristalina visão do óbvio - lembrava-me da tragédia do Amorim, o amigo que por seis anos aqui viveu. Amorim, sempre que sai-lhe a deixa, não perde a oportunidade de falar de Salvador, de seus sucessos, seus fracassos, seus casos e descasos em terras baianas. É notória sua nostalgia dos tempos de acarajé. E, por essas linhas que só o destino escreve, foi aqui onde Amorim casou, separou, chifrou e foi chifrado. 
          O que me espicaçava o espírito, de tudo isso, eram os chifres do Amorim. Aos diabos seus sofrimentos, suas noites mal dormidas, suas fossas, sua perda ponderal! Pensava só, e somente só, em seus chifres. Nem os sentimentos recíprocos do rival que dele foi vítima me detinham. Porque, se não sabem, Amorim e seu rival foram sócios de todas as formas possíveis e imagináveis. Enquanto um era noivo o outro era o amante, e assim reciprocamente. E o pior - ambos sofriam as mais cruéis dores de paixão pela beldade. 
     Então, onde passava imaginava as cenas da tragédia nos lugares mais afrodisíacos, nos bares mais recônditos, nos inferninhos mais perenes, nos restaurantes mais suspeitos e, por fim, no motel Del Rey, estopim de todo esse engodo do Amorim, onde ele - desta feita corneador - deflorou a pequena mais cobiçada do pedaço, a paixão mais enlouquecedora de sua vida. Cheguei a pensar - doce ilusão! - que encontraria algo, um poema, uma placa que fosse à saída do Mercado Modelo com algum dizer que lembrasse e imortalizasse o truculento romance em triunvirato, mas nada. Fotografias tirei, como podem ver em anexo, mas nada. Tudo se foi. 
          Acabei por descobrir, sem querer e de tanto procurar por algo, o que todos os brasileiros até há pouco mais queriam saber - o paradeiro de Belchior, o famoso compositor cearense. Sentado à mesa do Bar do França vislumbrei na obra de um artista local o desenho que mostra o nosso Belchior sentado com uma vara à mão a deliciar-se da pesca em vila próxima à capital baiana. Para aqueles céticos que sempre duvidam fiz fotografias que ilustram a verdade do que digo. Não há, portanto, a menor sombra de dúvida. 
        O mais foi o Natal de sempre, desta feita ao lado de quem amo profundamente, minha filha. Espero que ela tenha mais sorte que o querido Amorim e não venha a se embrenhar, pelas incorrigíveis linhas do destino, em semelhante desencontro de corações. Parto amanhã de volta ao Ceará. O Brasil é igual em todo lugar.
Fernando Cavalcanti, 26.12.2009

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

NOVO EM FOLHA

                    Estava pálido. A tez cérea da face, encimada pelas cãs cuidadosamente penteadas para trás, davam-lhe um aspecto sofrido. Sentado à mesa, assinava a folha de presença, a folha de ponto. O que havia lhe ocorrido semana passada ganhou os corredores, salas e andares do hospital – um infarto quase mortal. Seu drama ganhou o fio do telefone sem fio do boca-a-boca e, todos sabem, ao ouvido final estará tudo travestido dos efeitos múltiplos dos enfeites e adornos de cada um à medida que a história avança. Dele ouvi o relato cabal, incontestável e definitivo adornado apenas pelo sofrimento e medo do homem que se vê, súbito, à beira do que, pensava, seria seus últimos momentos de vida. Foi assim.
                Estava no hospital para uma operação. Seriam 6 da noite. A sala de operação, repleta da gente da sala de operação, tinha mais gente do que de costume. Transitava-se para lá e para cá, tentando-se compor o cenário para o ato. O falatório quase ensurdecia e ele, sentado a um canto, sentia-se mal. Doía-lhe a cabeça e, se não me engano, já lhe doía também o peito. Juntou o que pôde de forças e ergueu a voz. Pediu silêncio, um minuto de silêncio pelo paciente deitado à mesa. Fora vítima de morte encefálica. Só vivia porque respirava por aparelhos. Dali a pouco tirar-lhe-iam os órgãos, que seriam doados a outros. O silêncio que se fez em seguida não lhe calou a dor precordial.
Ligou para um colega. Pediu que se apressasse, que viesse logo. Queria que o substituísse na operação. Sabia que em seu peito a doença coronária lhe sufocava o miocárdio. A dor subia da boca do estômago por trás do esterno em direção ao pescoço. A intensidade crescia. Alguém percebeu que algo havia com ele. “O senhor está bem, doutor”?, perguntaram. Mentiu. Respondeu que era apenas uma enxaqueca, ainda que, com efeito, doesse também a cabeça. O colega que o substituiria estava do outro lado da cidade.
  Esperava sua chegada utilizando-se de tanato-devaneios. Sentia que a morte se aproximava. Ora orava, ora se compungia em culpas. Sentia-se em dívida com Deus, e Lhe implorava Seu perdão. Agradecia-Lhe a oportunidade de poder ter ajudado a tantos com sua missão de médico. Morreria, mas morreria com a esperança do perdão do Senhor.
A coisa estava evoluindo, sentia claramente. Dentro de um hospital e não lhe ocorria denunciar-se a si mesmo: –“Pessoal, estou tendo um infarto”!, deveria ter clamado. Mas, não – permaneceu omisso quanto ao que lhe ocorria. Sabia que, uma vez descoberta sua condição crítica, o procedimento que estava para começar talvez fosse suspenso para que lhe prestassem cuidados. O paciente na mesa apresentava instabilidade hemodinâmica. Se viesse a falecer, todos os órgãos para doação seriam perdidos e os receptores prejudicados.
Dali a um tempo chega o cirurgião que iria substituí-lo. A justificativa para a substituição seria a enxaqueca. Estava definitivamente descartada a confissão de seu estado.  
Além disso, queria o hospital adequado, outro, não aquele. Saiu da sala cirúrgica e veio sentar-se ao chão, no repouso. A dor crescia em intensidade e se espraiava para o pescoço e a mandíbula. Suava copiosamente. Outro alguém adentrou o quarto e percebeu que não estava bem. Mentiu novamente. Discretamente, jogou ao lixo os comprimidos que alguém lhe dera, minutos antes, para a suposta enxaqueca. Sabia que de nada adiantariam em seu caso.   
Precisava chegar ao outro hospital. Vestiu-se, sabe-se lá como, e desceu em busca do carro no estacionamento. Dentro do veículo a dor o sufocava. “Por que não morro sem essa dor”?, pensava. Lembra-se de ter descido e ter-se sentado ao chão, no asfalto, para vomitar ao lado do carro. O manto da escuridão da noite vencia a iluminação precária do lugar. Viu um colega, outro médico, passar a certa distância em direção à entrada do hospital. Gritava, chamando-o, mas ele não ouvia, não escutava. Por um instante pareceu-lhe que o outro voltava o olhar em sua direção, mas virou-se e seguiu em frente. É provável que não o tenha enxergado. A luz bruxuleante do lugar prenunciava a escuridão completa do evento final.
De alguma forma, conseguiu dirigir o carro em direção ao hospital onde, julgava, teria uma chance de sobreviver. E conseguiu.
No CTI, após o procedimento que lhe salvou a vida, recebia visitas de colegas, outros médicos. Queriam solidarizar com ele, porem-se à disposição. A infusão vigorosa de líquidos para proteger-lhe os rins da carga de contraste ministrada acabavam por lhe encher com frequência a bexiga. Queria urinar, mas se envergonhava de o fazer diante de outros, e mesmo de pedir para se irem. Era preciso pedir que saíssem à guisa de o deixarem repousar, tudo já previamente combinado com o pessoal da enfermagem. Só assim urinava.
Relatou-me tudo isso e muito mais enquanto desenhava assinaturas na folha de ponto, menos de uma semana depois de tudo. “Imaginei o sofrimento de nossos pacientes nesses corredores, sem privacidade, sem lugar reservado às suas necessidades. Como fazem xixi? Como fazem cocô? Como trocam de roupa?”, disse ele olhando-me nos olhos com a pureza e a indignação do grande médico que é. Contemplei-o por alguns minutos, as lágrimas instigando-me os olhos, imperceptíveis. Ele estava ali, sentado, como se nada houvesse acontecido, não fosse sua nítida palidez a denunciar a consequência de tudo: perda de sangue durante os exames e tratamento. Fora isso, ele está novo em folha.  



(Ao dia seguinte ao primeiro procedimento, foi realizado, com sucesso, novo procedimento para desobstrução de outras artérias que se mostravam gravemente afetadas no primeiro, mas que não foram as responsáveis pelo evento presente.)

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

MELHOR UM BANHO DE BARATAS

Contou-me hoje no ambulatório – vários assassinatos ocorreram no último mês na Cidade 2000, onde mora. Aos leitores alhures, esclareço que é um bairro desta miserável capital alencarina. (E que me perdoe o escritor...) O último, há pouco menos de um mês, foi a duas casas da sua, vizinha a uma vizinha, tudo relacionado ao tráfico e uso de drogas.
                Perguntei-lhe do policiamento, se aumentara após esses fatos. “Os policiais fazem parte do esquema, doutor... recebem uma ‘ponta’”, respondeu-me sem hesitar. Busquei cá em minha memória e nada nela achei sobre isso. Afinal, não leio jornais nem assisto aos noticiários e telejornais. Ainda assim, aos dias de hoje as pessoas dão conta, nas redes sociais, dos acontecimentos omitidos pela imprensa marrom. Ainda assim, nada. Não ouvi falar de mortes naquele bairro há um mês, nem há dois, nem há um ano.
                Sugeri-lhe uma mudança para outro bairro ou para o Tocantins, estado onde mora o filho mais velho. Mudar de bairro não resolve, ela disse. “Tá tudinho igual. Estamos entregues às baratas”!
                Antes estivéssemos. Baratas não são venenosas, nem mordem, nem picam... Antes tomássemos banho com as baratas ou banho de baratas, como outro dia vi os artistas fazerem num programa de TV. Após o banho, fediam a metano, a substância a que elas cheiram. (Dizem que barata solta pum, e pum com cheiro de metano.) Assim, peçamos ao governo que nos entreguem, literalmente, às baratas, mas nos retirem desse mar de violência onde mergulhamos.
                Quanto ao Tocantins, é mais quente que o inferno, segundo ela. Se a temperatura ambiental sobe por lá, sobe a temperatura da maldade e insensatez dos homens por aqui. É uma questão de escolha. Há que se ter a coragem de se achar a solução pessoal, individual, que atenda ao instinto de sobrevivência de cada um.
        Saiu pela porta meneando a cabeça como a assumir sua tolerância à situação. Se havia solução, talvez pensasse, não estava ao seu alcance. Quanto a mim, suspirei, desejando o fim daquela jornada matinal. Dias há em que não se quer sair ou, sim, se quer sair, mas para outro lugar, distante desse lugar... 

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A MORTE DO JOÃO

Era cedo.
Chego ao hospital e caminho em direção à máquina. Aos que não sabem, aviso que a figura mais importante de toda e qualquer repartição pública desse miserável Estado é a máquina. Também nas repartições municipais da capital é assim – a máquina é tudo, a máquina é o eixo de toda essa engrenagem. O cumprimento à máquina se tornou o ritual mais importante e mais necessário na repartição pública. Não há mais relação entre as pessoas – devo satisfação unicamente e exclusivamente à máquina. O chefe? Ora, o chefe tornou-se uma figura meramente decorativa a constar nos organogramas inúteis e obsoletos. Por exemplo, não vejo meu chefe há mais de... sei lá... 1 ano. Por aí se vê sua atuação de figurante organizacional. A máquina, essa sim, é visível diariamente. Manda mais em mim do que meu chefe.
Saí da presença de Sua Excelência, a máquina, e rumei ao corredor onde se avizinham as salas dos diversos setores da administração.
Noutros tempos era um corredor mais amplo, mais populoso, e corria-se o risco, ao transitar por ele, de se bater de frente com o grande ícone da Medicina local. Como eram vários – homens de postura, respeitáveis e respeitados –, o resultado era que o corredor era quase uma calçada da fama hollywoodiana. O auditório, antes ali localizado, sempre era lugar de onde saíam jovens médicos e estudantes que lá estavam nas sessões clínicas junto a seus vetustos e simpáticos Mestres, vestidos em suas roupas muito brancas e elegantes, as camisas por dentro das calças os homens, as saias e vestidos discretos as mulheres. Hoje, nada disso há mais... e o que há eu não saberia descrever, posto que não caiba numa descrição a ser feita por um sujeito pouco letrado como eu.
Adentrei pela porta que separa o corredor do hall de entrada do hospital e enveredei em busca de qualquer coisa que me sinalizasse que a morte do João fora lembrada. Das diversas salas apenas 5 se dignaram a fazer uma homenagem ao médico prematuramente morto.
                                                              
                                                                        LUTO
“A Terra é o jardim de Deus e, toda vez que Ele quer colher alguma das flores mais bonitas, Ele tira uma da terra e fica pra Ele.” [sic]
Dr. João Wilson Araújo Silveira (15.07.1956 – 25.09.2017)

Eis aí a homenagem, escrita em papel ofício simples com a logomarca do hospital encimando o texto. Apenas isso.
Mais tarde, por outros corredores em direção ao ambulatório, nada. É verdade, não estive em todos os lugares dos vários edifícios, mas poderia apostar que nada encontraria onde quer que fosse. Em todo caso, alguém se dignou a lembrar a passagem do João por aqui.
Hoje, olhando esses corredores, vejo os espectros, ou os fantasmas, dos gigantes que faziam deste hospital o que ele sempre foi... e não é mais. Em mensagem ao meu amado amigo Casoba, disse: – “Tu és um destes, tendo, inclusive, ganhado prêmios e reconhecimento por tua excelência no exercício da profissão”. O João foi outro. Outro dos grandes.
Tenho certeza de que somente os setores que apuseram essa singela homenagem às portas lembraram do João, assim como possivelmente outros poucos jurássicos que estão espalhados na imensidão desses edifícios que compõem o HGF atual.
Vejo nos olhos e no comportamento dos jovens médicos residentes e internos um vazio de sentimentos e, para dizer o mínimo, uma brutal indiferença ante os colegas mais antigos. Às vezes, vejo mesmo um desprezo, um desdém pouco ou nada disfarçado.
O HGF se tornou uma quantidade de edifícios cheia de gente estranha que vive em função da máquina; que se acostumou a transitar por seus corredores entupidos de nossa doente dignidade; gente estranha que aceita a humilhação de viver e depois morrer diante de uma plateia de coração gelado cujos jalecos se encardiram na desumanidade que tolera. A morte do João foi um sopapo – primeiro, pelo vazio do amigo; segundo, pela evidência gritante de que morreu também uma cultura, uma maneira de fazer, uma maneira de pensar, uma maneira de ser. Não que isso passasse despercebido antes que o amigo partisse, mas justamente porque sua morte quase despercebida evidenciou a nossa capacidade de assassinar a memória e um passado grandioso. No Brasil a glória é burguesa. Assim dizem os idiotas.     

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O BOM, O RUIM E O PIOR

      É impressionante como se usa comparar pessoas ou coisas. “Isso é melhor que aquilo” ou “fulano é melhor que beltrano” é o lugar comum de nosso dia a dia. A cultura da competitividade, alastrada, plantou em nossas mentes os sinais matemáticos maior e menor. No meio médico ouve-se “doutor fulano de tal, o melhor médico da cidade”. Onde se escreve melhor leia-se maior, muitas vezes empregado também.
            A pergunta que me faço é: quem pode dizer que alguém é maior ou melhor que outro alguém? Há tantos e tantos e tantos bons médicos, assim como há tantos e tantos e tantos bons advogados. Em contrapartida, há médicos e advogados ruins. Mas não há, dentre os bons, o melhor. (Minha intenção é provocar.)
            Tomemos o exemplo, um lamentável exemplo, o do ex-médico Roger Abdelmassih, tido como o maior especialista em reprodução humana do país. O homem, sabe-se hoje, é um estupradorzinho de quinta categoria. Era o maior, o melhor e, súbito, revelou-se o pior. Nem pelo estágio de ruim passou. De bom que era passou a pior. Tão grande a sua fama e tão elitizada a sua clientela que ao final só serviram a engrandecer ainda mais seu crime.
             Tentemos uma explicação. O que é bom pode, eventualmente, agir ou ser melhor, se sair melhor do que o normal. Nem por isso será o melhor absoluto. Se, ao contrário, cometer grave erro, será um pior absoluto. O melhor jamais poderia cometer erros, nem mesmo os menores. Além disso, um pequeno erro do cirurgião – escolhi o cirurgião como exemplo só para puxar a sardinha pro meu lado - pode representar uma catástrofe para o paciente, por exemplo, o que demonstra que um erro não se mede pelo seu tamanho, mas por suas conseqüências.
             Consideremos o Yamandu Costa. Não sei se conhecem o Yamandu Costa. Apresento, aos que não o conhecem, o Yamandu Costa. É um violonista virtuosíssimo. É um gênio do violão de sete cordas. Foi assim reconhecido aos dezenove, vinte anos. Fará trinta e um em janeiro próximo. Quem já viu o Yamandu tocar diz: -“É o melhor!”(Suspeito para falar – sou louco pelo Yamandu -, estou quase a desistir de continuar com essa história de que não há melhor.) Eis que se vê tocar um Marco Pereira, um Raphael Rabelo, um Marcel Baden Powell, um Manassés, um Nonato Luis, e outros, e outros, e outros, e se acaba por concluir que não há melhor. São todos bons. O que se disser acima da categoria de “bom” fica por conta dos superlativos de nossa emoção. (Outro dia alguém escreveu no site oficial do Yamandu que ele acerta até quando erra.)
              Ocorre que, ao errar o violonista, não há conseqüências no resultado, como se vê pelo comentário do fã do Yamandu. (Assevero: não fui eu!) Continua sendo bom o violonista, com os superlativos que lhe queiram acrescentar. Não há possibilidade de que lhe rebaixem a qualidade por causa de um ou outro erro. Afinal, a música é uma arte em que a liberdade de improvisar até permite que o erro pareça tudo menos um erro.
              Percebe-se, ao comparar o cirurgião com o violonista, que há bons violonistas e bons cirurgiões, e que há cirurgiões ruins e violonistas ruins, e que há ainda os piores cirurgiões e os piores violonistas. (Quem quiser saber onde encontrar os piores violonistas vá a uma festinha de aniversário onde apareça um violão.) Não há, contudo, melhores. Felizmente há muitíssimo mais ruins e piores violonistas que ruins e piores cirurgiões. De fato, esses últimos eu não saberia dizer onde encontrar. (E aqui não estou puxando a sardinha pro meu lado.)
               Faço agora uma confissão. Iniciei esse texto sem a menor intenção de falar sobre isso. Eu queria falar sobre a Unicred, nossa cooperativa de crédito, e os juros que se pagam entre ela e seus cooperados. Paga-se a ela mensalmente um valor acima de vinte reais que é depositado na conta capital do cooperado e que vai rendendo a uma taxa xis. Se o cooperado tiver um cheque especial - que cobra uma taxa xis mais muito mais – e a conta estiver sem dinheiro, saca-se automaticamente o valor do cheque especial. A conta fica “negativa”. Você estará devendo aquele valor mais xis mais muito mais ao banco, e o mesmo valor vai render para você módicos xis de juros em sua conta capital. Conclui-se o seguinte. Primeiro, é bom gastar menos do que o que se ganha. Segundo, é ruim tomar dinheiro emprestado. Terceiro, é pior quando se teima em desobedecer a essas regras básicas. O melhor? Aqui há, sim, o melhor: desistir de ter. “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade.”

Fernando Cavalcanti, 08.12.2010

terça-feira, 1 de agosto de 2017

DE OUTRA FEITA DIGO-LHE O NOME

Foi na última quinta ali na choperia Zug. Digam o que disserem, mas a choperia Zug continua sendo o lugar. Mas, enfim, foi lá onde me abordou o idiota. Ou direi o imbecil. Tanto faz. Um ou outro adjetivo será pouco para qualificar o indivíduo.
                Mas tudo se explica. Para tudo há uma explicação. É tudo muito simples. O indivíduo é assessor de um deputado, um deputado estadual. Para os esclarecidos, é sabido que deputado estadual e merda, no Brasil, é tudo a mesma coisa. Deputado estadual existe para duas coisas: dizer “amém” ao troglodita do governador; e fazer as mesmas merdas que suas contrapartidas federais. Num país onde os Estados são meros entes subservientes a Brasília, a Sodoma nacional, o puteiro da República, deputados estaduais e, por consequência, vereadores são nada mais do que nada.
                Ora, não é bem assim, devíamos saber. Eles não são nada. Eles valem muito para o esquema que aí está. São eles, deputados estaduais e vereadores, os detentores dos currais de vacas de eleitores corruptos que sustentam o vandalismo nacional. Do outro lado, os homens de bem. Agora os leitores sabem sobre o tipo que me abordou na Zug Choperia. (Poderia declinar-lhe o nome, mas evitarei.)
                Pois o troglodita, à guisa de uma brincadeira comigo, abordou-me por detrás (eu estava sentado) e, segurando-me pelas costas, gritava como uma hiena brava: – “Ele vai ser o presidente, Lula vai ser o presidente!” Nem mesmo tive tempo de me virar e ele emendou: – “Tu ‘acha’ que ele vai ser preso? Tu ‘acha’ que alguém vai ser preso??” Eis aí tudo. O discurso é claro.
                Antes, porém, digamos que o assessor é assessor de um deputado estadual do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Vejam a combinação entre pobreza nordestina, pobreza fortalezense, pobreza cearense, e esse PC do B. Gente preguiçosa e ávida por benefícios estimulada e ensinada por essa canalha comunista.  (Estou sendo deveras direto, mas é inevitável.) Que não me confundam com o imbecil que taxou todo o Nordeste brasileiro de qualquer coisa semelhante com os adjetivos que já aqui usei. Digamos sem muita delonga – o Nordeste brasileiro tem muita gente de bem, mas que a canalha aqui tem-se proliferado mais, disso não se tem a menor dúvida. É como o Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro era tudo e, de repente, o Rio de Janeiro se tornou um antro, um submundo, uma sarjeta cultural, fiscal, econômica, financeira, moral. Os canalhas tomaram de conta do Rio de Janeiro assim como tomaram de conta do Nordeste. Não é o Rio de Janeiro nem o Nordeste que não prestam – são os canalhas que os tomaram os que não prestam. A gente de bem desses lugares está oprimida, estupefata, encurralada, eis a grande verdade. A conclusão é única – é preciso libertar o Rio de Janeiro e o Nordeste da influência e poderio do canalha. E mais – urge libertar o país dessa canalha.
                Agora, vejam. O problema maior é que o canalha se traveste de bom moço, de Peter Pan, de Robin Hood. O canalha da “casa legislativa” inútil – sim, inútil porquanto sua legislação tão-somente imita a da Sodoma que tudo arbitra, tudo negocia, tudo estabelece – tudo faz para se travestir de idôneo e salvador do povo. O canalha vai à Zug, se mistura, conversa; faz-se passar por bom moço. Eis, então, toda a fonte de sua confiança.
                Falo, falo, e não vou ao ponto. O canalha que me abordou, fácil é deduzir, tem a mais absoluta certeza de que o canalha-mor, Luís Inácio Lula da Silva, será, novamente, eleito presidente da nação brasileira, ainda que condenado pela justiça. Além disso, demonstra seu relevante desprezo pelas leis vigentes. Afinal, ele tudo sabe sobre nossas leis fajutas.  Foram seus comparsas federais que as referendaram. Complementa afirmando, quase que peremptoriamente, que ninguém será preso. Como poderia o homem de bem, nordestino, fluminense ou carioca, dizer o contrário? E em meus ouvidos gritava: –“Você vai ter que engolir! Você vai ter que engolir!” O canalha da esquerda tem certeza que vencerá contra o homem de bem.
                Eu, controlando meus mais primitivos instintos, tive que sorrir amarelo. Meu maior medo é me decepcionar com o meu povo. Mais uma vez.

terça-feira, 25 de julho de 2017

UM SONHO, VÁRIOS FRACASSOS

Outro dia ouvi alguém falar sobre fracassar e fracassados. Dizia o palestrante que há, entre um e outro, uma enorme diferença: fracassar é uma etapa; fracassado é o que desistiu. Vejam que, segundo ele, o fracassar é um momento, um estágio, uma etapa de uma caminhada no caminho de uma meta, de um objetivo, ao passo que o fracassado é aquele que, numa dessas etapas, ali ficou sem se deixar ou querer reerguer. Desistiu da meta, do objetivo, do sonho. Deixou-se estar à beira do caminho culpando a estrada, os que pretenderam encorajá-lo, o mau tempo, o vizinho, enfim, tudo e todos, exceto ele próprio.
Vamos e venhamos – não é fácil realizar sonhos. Digo isso por experiência própria. E é tão pessoal a minha experiência que até admito – eu nem sabia que tinha sonhos outros. É fácil não os ter. Basta que, como aconteceu comigo, se os busque apenas nos lugares-comuns. Quando se os buscam aí e se faz tudo o que é necessário e a anuência de todos, é certo que se os conseguirá realizar. Entretanto, o mesmo não se pode dizer dos sonhos que a manada não permite sonhar. Se ousar, será considerado mais um louco a surtar. Neste contexto, mesmo os mais empedernidos lutadores hão de sucumbir se se permitirem serem vítimas da implacável rejeição. Sim, porque a rejeição ao sonho não consentido será como a rejeição a mesmo.
Não é fácil ser rejeitado. Os sonhos comuns são, como se supõe, disseminadamente aceitos e bastante estimulados. Por isso, como é óbvio, não serem rejeitados. Quem os sonha pode fracassar quantas vezes necessário for, e o fará sem temor. A razão é a ausência completa de rejeição. Já os sonhos não permitidos, esses não. O primeiro fracasso em sua direção é razão mais que suficiente para intensificar sua rejeição, o que para muitos servirá como prova de sua completa inviabilidade. Eis aí tudo.
Dizia o palestrante que fracassar é bom, e eu me perguntava qual seria a anatomia do “bom” fracasso. (Doravante o “mau” fracasso será referido àquele resultante de sonhos não aceitos, em que o sonhador é contundentemente rejeitado ao sonhá-lo.) E a resposta já se me deslindava no pensamento: – como a manada não aceita seus rebeldes, os que ousam ousar são, para ela, detestáveis. O cérebro da manada é a vaidade e seu coração chama-se status. Para ela, o bom fracasso é muito bem aceito porquanto é ele quem referenda e avaliza as altas posições, os elevados postos, as incontestáveis autoridades, ou seja, seus órgãos vitais. São esses bons fracassados os que nutrem os órgãos vitais dessa massa, como se fossem eles o sangue que lhe traz vida e a faz pulsar em fluxos de infindável gozo. O fracasso no contexto da não realização dos sonhos aceitáveis vem a bem do fluxo para os mais aquinhoados, pretendendo manter o que se considera imutável e inexorável. Tal fracasso é “bom” porque é comemorado por todos, bem-sucedidos e fracassados, os quais procuram, nas formas mais extremas de fracasso, algum tipo de esmola pública ou privada e a anuência de seu status aeternus como compensação e reparo. Os diferentes estratos dessa manada opaca traduzem tão somente diferentes níveis de sucesso e fracasso, o que relativiza mesmo tais conceitos, como se existissem níveis de um e de outro, plenamente aceitos e considerados “normais” e até necessários e desejáveis. Tudo isso é deveras oposto ao que consideram o mau fracasso. Sim, o mau fracasso é ameaçador. (Tirei-lhe as aspas injustamente, já que de mau nada tem ele, a não ser para a manada que pretende seguir irretratável e livre de ameaças.)
Pois direi também da anatomia do “mau” fracasso. (Volto sem demora a lhe pôr as aspas.) Este tipo é ameaçador porquanto só acaba quando alcança o pleno objetivo, a realização do sonho de quem sonhou, dentro de uma ordem absolutamente estranha ao que a manada permite. Seu cérebro é a crença no incrível e seu coração é a grandeza do sonho que sonhou. Ousar é o sangue de suas veias e persistir é a musculatura que o carrega pelo caminho da rejeição e escárnio.   
Façamos um resumo a fim de que não haja dúvidas.
Há dois tipos de fracassos, segundo o entendimento ordinário. O bom fracasso, aquele aceito à larga e com o qual se simpatiza; e o mau fracasso, aquele resultante de se tentar o extraordinário. Este último, quando ocorre, alivia o temor da ordem vigente como se isso viesse a bem da confirmação de ser ela a única possível.
Ocorre que, com a evolução tecnológica e o resultado de seu uso para fins econômico-financeiros e do surgimento de novos modelos de negócios, a ordem vigente se viu irremediavelmente ameaçada, visto que muitos se permitiram fracassar incontáveis vezes antes de verem concretizado o sonho considerado impossível. A vaidade se viu aterrorizada, o status se desesperou. Seu poder de encantar, seduzir e humilhar se viu impotente e reduzido a pó. É questão, apenas, de mais um lapso de tempo antes que todos, sem exceção, percebam que a tal ordem sucumbiu de vez, como estão a sucumbir cada um de seus alicerces sem que muitos se deem conta em razão de sua cegueira.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

A PUTA QUE ELE LOUCAMENTE AMAVA

                 Após tantas desfeitas, aguentou ainda mais desfeitas. Direi sem rodeios – aguentou chifres até não mais poder. O diabo é que podia, sempre podia. No início acreditava piamente. Poria a mão no fogo por ela. Hoje, depois de sabe-se lá quantos chifres, por ela põe no fogo a cabeça. Vá entender a mente humana.
                Havia, segundo ela, uma justificativa, uma desculpa. Não seria propriamente uma desculpa esfarrapada, dessas que se dão de última hora apenas para tirar o corpo fora. Não era, não parecia ser. Confesso com toda pureza d'alma – era uma senhora justificativa para os chifres, para mais chifres, e para quanto mais deles viessem. Aconteceu o seguinte.
             Viviam os dois num cafofo que beirava o padrão da miséria, dois aposentos e um reservado onde se banhavam e se aliviavam. Na caixa da descarga ela desenhou, com batom vermelho, um coração flechado e embaixo escrito “fulana e fulano”. A mobília se constituía numa cama de casal, uma cadeira e um móvel largo com gavetas amplas. No outro aposento, a cozinha, a geladeira e um fogão. Não sei se havia armários sobre a pia.
            Um dia uma amiga lhe bate o telefone. Estava vindo do interior, da cidade onde ambas nasceram, para trabalhar. Precisava de um lugar para ficar. Não tinha dinheiro. Uma pousada por alguns dias era tudo o que precisava enquanto se arranjava.
            Foi motivo de alegria receber em casa a amiga do tempo das fraldas. Dormiria numa rede que armariam sobre a cama do casal. Ele não fez objeção a essa hóspede inesperada. Seria bom ter mais alguém em casa. Mudaria a rotina. Todos sabem, rotina é um negócio chato.
            A verdade é que ele nutria más intenções para com a pequena. Era jeitosinha, engraçadinha, charmosinha... Tinha o rosto bonitinho, os cabelos lisos e escorridos. Ter diariamente essa visão não seria uma má ideia, eis o que pensava.
            Chegada a hora de dormir, ia o casal para a cama e a amiga para a rede. Ele, que adorava o perigo extremo, que desde a infância adorava assediar a secretária do lar, fosse ela quem fosse, perdoando apenas as mais velhas enquanto seus pais e irmãos dormiam, entrava, nesse instante, em estado de excitação que beirava o incontrolável. Cada vez era um tormento maior, e já não sabia por quanto tempo seria capaz de se conter.
            Até que, certa noite, atormentado pelo desejo, pelo perigo de ver saciado seu apetite, percebeu que a companheira dormia profundamente, tão profundamente que sibilava em suaves estertores, um ronco macio e pleno, desses que denotam estar a mente ausente e bem longe da realidade. Ergueu lentamente o tronco e sentou-se ao leito, de modo que pudesse espreitar o interior da rede onde dormia a apetitosa hóspede.
            A janela entreaberta se deixava transpassar por raios de luzes suaves e esmaecidos pela debilidade e distância de sua fonte, mas que provocantemente iluminavam o corpo seminu da que lá jazia. Parecia que retirara de cima de si, propositalmente, o lençol que se amarfanhava ao lado de seu corpo, longe da utilidade de encobrir, de proteger do frio, de resguardar o mínimo de pudor, deixando à penumbra leitosa a visão que o excitou ainda mais, a ponto de enlouquecê-lo. Vagarosamente arrastou-se para mais perto do que contemplava e, inescrupulosamente, saiu a palpá-la nas coxas, nas partes pudendas, no baixo ventre...
                Como não houvesse sido rejeitado, durante quase uma semana espreitou o sono da companheira a fim de se entregar à aventura do assédio à outra que parecia que dormia, mas que, notara, apreciava deveras aquela invasão, aquele ímpeto descarado e destemido. Percebera que o corpo da jovem se eriçava e que suas secreções abundavam à investida. Nada daquilo seria possível sem o mínimo estado de alerta.
                Certa noite, contudo, foi veementemente rejeitado e, em meio a sussurros de cínica indignação a fim de não despertar a outra, foi definitivamente repelido. Que nunca mais se atrevesse. Que nunca mais dela se aproximasse, mesmo durante o dia, sob pena de dar ciência à amiga do que ele tentara fazer aquela noite. No dia seguinte procuraria um lugar para ficar ou iria embora, de volta ao interior. 
             Dias depois as duas tiveram uma entrevista em que tudo veio à tona. Foi desde então que ele passou a colecionar chifres. Eis aí a justificativa, uma senhora e mais que justificada justificativa.
                Como não houvesse solução para tantas e tantas galhas, vez ou outra ele também pulava a cerca. Cada vez que ela lhe fazia uma nova desfeita, ele sofria como se fosse a primeira vez. Ela, por sua vez, não tomava as dele como desfeitas. Não dava a mínima. Só queria dele uns trocados de vez em quando. Era quando saíam para uns drinques. Já nem coabitavam. Ela se tornou para ele a puta que loucamente amava.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

O QUE (NÃO) QUEREMOS?

Ninguém perguntou se eu queria. E, vamos e venhamos – na vida quase nunca perguntam se a gente quer. Há que se entender a questão da lei.
Sob a égide do sistema legal, nem tudo que se quer se pode fazer, sob pena de punições severas. Eu disse “punições severas” me referindo ao sistema penal de outro país. No nosso brasilzão não há punição severa. Para ninguém. Escolha sua vítima e a corte em pedacinhos. Se tiver curso superior e se comportar muito bem enquanto estiver trancafiado, você não ficará preso mais que três a cinco anos. Isso se pegar a pena máxima. Sim, porque aqui a pena máxima de 30 anos quase nunca é efetivamente cumprida. Dirá alguém que é essa a cabeça do legislador e direi que, não, essa não é a cabeça do legislador – essa é a cabeça do brasileiro.
Estou fugindo do assunto, agora percebo. O assunto é: por que não me perguntam o que eu quero? Bem, se me perguntarem o que quero, direi que sim algumas vezes e direi que não outras vezes. Nada poderia ser mais natural na vida. Vezes dizemos sim, vezes dizemos não. 
Por exemplo. Quando entrei para o funcionalismo público não me perguntaram o que eu pensava sobre minha aposentadoria. Se me perguntassem: o senhor deseja que o Estado retenha mensalmente uma parte de seus proventos para investi-la e devolvê-la daqui a trinta e cinco anos a fim de que sirva como uma renda para a sua aposentadoria? É bem provável que naquele tempo da verdura dos anos e de minha ignorância em educação financeira eu respondesse “sim”. Há cerca de quinze anos, quando adentrei os portais do entendimento básico sobre finanças, se me fizessem a mesma pergunta eu responderia com um sonoro e prolongado “não”. É digno de nota que as respostas diametralmente opostas se expliquem por uma única razão – a educação.
Até os 30 anos, tudo que aprendera sobre isso havia sido pelo que chamo de “inércia conceitual”. Chamam também a isso de “paradigma”. Era o paradigma vigente acreditar que o Estado fosse competente para gerir os recursos de terceiros. Talvez o fosse até então. De lá para cá ficou claro – o Estado é ou tornou-se absolutamente incapaz de exercer tal tarefa com competência e justiça. Estão aí os rombos previdenciários das três esferas que não me permitem mentir.
Essa mudança brutal, cuja origem é multifatorial e tem tudo a ver com corrupção, downsizing das empresas, contração do mercado de trabalho devido a avanços da tecnologia, envelhecimento da população, incompetência de gestores e muitos outros, não foi acompanhada da principal mudança necessária na lei previdenciária – dar ao trabalhador da empresa pública e privada a liberdade de escolher se aceita que o Estado, esse mesmo Estado que já se mostrou descaradamente incapaz de tal tarefa, continue a gerir parte de seus vencimentos mensais para fins de aposentadoria.
Essa alteração na lei causaria enorme impacto na sociedade, a primeira delas a busca em massa por educação financeira e, por efeito colateral, o aprendizado sobre formas diversas de geração de renda familiar e investimentos por parte de pessoas físicas. Isso tiraria a sociedade brasileira da escuridão da pobreza mental e, como consequência, da pobreza material interminável. (Eu ia dizer inexorável.)
Cresci ouvido – este é o país do futuro. Hoje me pergunto: quando será esse futuro? Dirá alguém que o processo histórico é lento, que há muitos problemas a serem enfrentados, que é muita a injustiça e desigualdade social, e um blablablá interminável que já ouço a vida inteira.
Ora, o país está, dizem, sob a égide de um regime democrático onde impera o estado de direito e liberdades individuais. Aos que incham o peito para dizer tal asneira, pergunto: é mesmo? Se for assim, por que não me dão a liberdade de escolher se quero votar ou não em cada pleito eleitoral? Ao invés disso, sou obrigado a votar porque é imperativo para a manutenção do “estado de direito” que todos votem a fim de que se possam comprar votos de eleitores corruptos. Por que não me dão a liberdade de escolher onde aplicar meus recursos que me servirão no futuro na velhice? Ao invés disso, me obrigam a ceder parte de meus vencimentos mensais ao Estado a fim de que seu agente o utilize em suas emendas e desvios de recursos que enriquecem os que cuidam dessa máquina maravilhosa de fazer dinheiro fácil. Por que não me facilitam a vida quando quero abrir um negócio e, quando quero, já me vem o Estado a me escorchar com impostos e dificuldades burocráticas custosas e infindáveis? Ao invés disso, obstam o capitalismo saudável a fim de perpetuar o capitalismo de comadres onde somente os grandes vicejam a fim de que existam os eikes e batistas que funcionam como pontes de enriquecimento ilícito a políticos todas as estirpes de todos os mais de trinta partidos. Por que não deixam que os Estados da federação e seus municípios tenham vida própria, captando e gerindo seus recursos próprios ao invés de os enviarem a Brasília a fim de que lá se decida o que fazer com eles? Ao invés disso, Brasília serve como a grande banca de trocas de favores, políticos ou não, em troca de mais ou menos recursos para a construção de pontes e praças de igrejas matrizes de minúsculas cidades longínquas cujas câmaras municipais com seus cinco ou sete vereadores chantageiam seus prefeitos em troca de parte desses recursos. Assim, temos sido obrigados a coisas que um real e legítimo estado de direito e liberdades individuais não nos deveria obrigar, levantando firmes suspeitas de se este é, de fato, o que diz ser. Sabemos muito bem o que essa centralização nos tem causado, como bem ou mal acabamos de dizer: negociatas, dependência de recursos da União, cooptação, vícios, compra de apoio político para projetos alheios às reais necessidades da sociedade, e por aí vai.
Ninguém perguntou se eu queria, repito. Mas eu não sou eu. Eu sou um povo, uma massa humana, uma sociedade. Se os que fazem as leis são aqueles que o povo escolhe para tal tarefa, por que não as fazem de acordo com o que o povo quer? Há aí algo de muito errado. Das duas, uma: ou o povo está sendo traído ou o povo não sabe o que faz. Há ainda uma terceira possibilidade: o povo é carrasco e vítima de si mesmo. Mas isso eu já disse noutros textos. 

segunda-feira, 17 de julho de 2017

UM ROTUNDO E ESPESSO CANALHA

          S.C. é meu paciente do ambulatório. Já cá esteve duas vezes acompanhado de sua dedicada irmã. Eles vieram de Belém do Pará. Reconheci pelo sotaque, o plural das palavras com som de “sh”: doish, coisash, e por aí vai.
       Ele tem apenas 31 anos e já não tem rins. Perdeu-os para a doença hipertensiva grave e precoce. Faz diálise a cada “trêsh” dias. Já fez vários procedimentos para confecção de fístula arterio-venosa. Como ele é canhoto, começaram pelo lado esquerdo. Nenhum deu certo. Vários procedimentos no membro superior direito também falharam, o que acabou por exigir a colocação de uma prótese comunicando a artéria à veia.
         Certo dia, inchou-lhe o braço. O exame mostrou um estreitamento de mais de 90% da luz da veia proximal à fístula. A estenose é uma ameça à diálise. Se a estenose virar oclusão, adeus fístula. A solução é introduzir um cateter munido de um balão pela veia e dilatar o estreitamento. Providenciamos a guia de internamento para S.C.. Já se passaram quase dois meses. E por quê? Por que não há material, não tem cateter com balão próprios ao procedimento. Ele está a ponto de perder a fístula porque a Constituição “cidadã” é uma falácia, uma enganação, uma chacota de mau gosto. O gestor não paga o fornecedor, o fornecedor suspende o fornecimento.
           Dias atrás veio o ministro. Disse o que quis e o que não quis. Do alto de sua autoridade ignorante e diabólica, pôs a culpa do caos nos médicos e em todos os profissionais de saúde. A culpa é vossa, disse ele de nós. Os gestores estão exigindo o ponto biométrico dos profissionais de saúde. Certo dia, disse uma sumidade da cúpula administrativa do governo deste miserável e desgraçado Estado que os profissionais de saúde estariam “devendo” não sei quantas mil horas de trabalho ao povo, como se a causa do caos fosse o absenteísmo laboral dos profissionais. Em suma, na pele o profissional de saúde sente a opressão por parte das autoridades incompetentes e criminosas.
           Mais recentemente veio o Alexandre Garcia e expôs, no telejornal matutino, as entranhas do modus operandi do gestor incompetente, criminoso e opressor. De que adianta? De que adiantará? Fará alguma diferença? Não fará. E ainda se fala da opressão da “ditadura militar” que nunca existiu ou, melhor, só existiu para os guerrilheiros criminosos que queriam e planejavam implantar no país o mais falido, criminoso e desumano de todos os regimes já ideados pelo homem.
        O gestor é, antes de tudo, um rotundo e espesso canalha.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

TODA ESSA GENTE... E NÓS

Ah, como roda rápido o tempo...!
Noutros tempos, o tempo era lerdo, uma lesma a se arrastar rente à parede, invisível à vista de todos. Naquele tempo não se justificava a pressa, não fazia nenhum sentido a velocidade. Correr pra quê? Olhávamos cada coisa durante quanto tempo quiséssemos, e esperávamos sem pressa porque havia tempo de vê-la em cada detalhe, de analisar cada pedaço, de perceber seus contrastes... Tudo corria conforme o tempo.
                Hoje, como roda rápido o tempo!
Sem demora passa o tempo, e com ele passamos nós, vamos nós; pouco vivemos porque ele já foi, já está ali, adiante, chegou antes de nós. E se não vamos, ficamos; nos abandonam porque ficamos; nos esquecem porque não mudamos para... pior. Sim, somos piores a cada quinze minutos, diria o Nelson. Não ir junto é como morrer, como se perder da multidão e ficar ao largo, no deserto da vida sem água e sem teto, condenado a ser a negação de (quase) tudo.
                Tudo é muito e o tempo é pouco. Muita gente, muita coisa; muita gente, muito (ou pouco) espaço; muita gente, muita dor; muita gente, muita morte; muita gente, muita festa; muita gente, muito bebê; muita gente, muita morte. Muita gente, pouco vovô e vovó; muita gente, pouco papai. Onde está mamãe? Muita gente, pouco eu; muita gente, pouca vida; muita gente, pouco amor...
Muita gente, pouco eu...
Muita gente; pouco VOCÊ.
Ou somos e estamos com essa gente, ou somos poucos, você e eu.
            Você e eu nada somos diante de tanta gente...

segunda-feira, 20 de março de 2017

O AMIGO CONTRA OS INSETOS

          Corre o mês de março. Eis que me lembro que é o mês em que faz aniversário o meu amigo Fábio Motta. Sim, comemora-se a festiva data ao dia 23 do corrente. Digo “festiva data” e já me arrependo. E por quê?, perguntará o leitor. O arrependimento é um sentimento que nos assalta quando agimos de forma errada e nossa consciência nos aponta a culpa. Ora, seria errado me arrepender de considerar o dia do aniversário do amigo uma data festiva? Já expliquei inúmeras vezes, mas vamos lá.
                Ocorre que entra ano e sai ano e o Motta faz tudo da mesma forma. E o que faz ele? Resposta – tranca-se em si mesmo ao dia da festa. Vejam que não afirmei que o homem se tranca em casa, ou some, ou desliga todos os meios de comunicação que lhe permitam o alcance. Não. Repito para que não reste a dúvida – o homem tranca-se em si mesmo. Ou seja, tranca-se em casa, some, desliga tudo, e... não sai da cama. É tudo junto. É como se o homem estivesse morto. 
              Diz o poeta que “morrer é apenas não ser visto”. Pois fica evidente a vontade de morte do amigo. Arrisco-me até a dizer que a coisa piora a cada ano. Ano passado o homem sumiu por três dias. Penso que estava tão apegado ao leito de morte que ao erguer-se teve um surto de articulações congeladas. No toalete, olhando-se no espelho com as remelas nos cantos dos olhos, assemelhava-se a um figurante de “Epidemia de Zumbis”, ou de “A Volta dos Mortos-Vivos”. Por um momento, do alto de sua atual e interminável Síndrome de Peter Pan, julgou-se o ator principal de “Meu Namorado É Um Zumbi”. Outro dia escrevi que o pior suicida é o que não morre. Pois é isso – o pior suicida é o que não morre. 
          Assim, em poucos dias veremos o que nos reserva o homem para este ano de 2017. Arrisco um palpite. Diria que espera-se uma mudança radical em seu comportamento. E por quê? Porque agora ele é um surfista. Um surfista de marola, é verdade, mas ainda assim um surfista. Sim, o surf foi o divisor de águas, o ponto de inflexão, a razão de tudo o que é novo para o amigo, de modo que estou seriamente inclinado a duvidar que ele se negue a surfar no próximo 23. Insisto: da forma como (re)entrou na vida do homem, o surf tem sido o grande diferencial, o gatilho para a reversão desse comportamento deplorável. Enfim, alguma coisa boa restará desse hábito tão salutar. (Pode parecer que estou a propagar contradições, mas não há aqui contradição. É apenas uma aparente contradição.) 
          O surf afastou o homem de seus velhos amigos para aproximá-lo de hábitos saudáveis e de grupos de pessoas cujas vidas giram em torno desse esporte. Dito de outro modo, o amigo tornou-se parte de uma tribo. Nós, os amigos do tempo das fraldas e dos cueiros, fomos completamente alijados e violentamente distanciados do convívio desse impoluto varão vigoroso. Paciência. Nada se pode fazer quando a rejeição se apresenta friamente e cruamente. Os amigos comuns dirão que estou a manifestar, indisfarçadamente, meus ciúmes e direi que, não!, em absoluto! E direi que, sim!, são legítimos os ciúmes! Digam-me: – como poderei me conformar perder um amigo-irmão para uma "tribo"? Nada contra os indígenas, pelos quais declaro uma piedosa solidariedade. Até porque o termo "tribo" aqui empregado não é literal, mas uma figura de linguagem para designar um grupo que se aparta do "resto". Que seremos nós, os que somos "o resto"? Já me sinto o cocô a descer pelo grosso intestino ou o catarro a subir pela via aérea do fumante inveterado, a apostema da estafilococcia...
          Também, notem, falando assim fica a impressão que os antigos amigos são má influência ou estimulam uma vida de hábitos pouco saudáveis. Direi sem demora – nada está mais distante da verdade. A essa altura da jornada, cada um recebe a influência que se permite receber. Depois de certa idade as escolhas se apresentam diariamente. Está-se escolhendo a todo instante, a cada segundo. Paramos de escolher enquanto dormimos e, com efeito, até dormindo escolhemos, se acontecer de sonhar com a dúvida que nos assola. Penso comigo: – o amigo sonhou conosco e, em seu sonho-pesadelo,  éramos todos insetos, mosquitos da dengue ou do zica-vírus, enormes e gosmentos como no "A Mosca", de David Cronenberg, a vomitar sobre as pernas do amigo a gosma enzimática que derrete ossos. 
         Devo admitir: – se sonhasse isso de alguém, jogar-lhe-ia nas fuças uma baforada de Baygon ou de SBP, "terrível contra os insetos". Contra os insetos, viste Fábio Motta?

sábado, 18 de março de 2017

MAX GEHRINGER E O MARKETING MULTINÍVEL - SERÁ QUE ELE APRENDE?

Os amigos hão de lembrar o comentário que fiz há poucos dias sobre uma resposta que o Sr. Max Gehringer deu a uma leitora de “ÉPOCA”. Foi em sua edição anterior, há pouco mais de uma semana. Enviei o comentário ao Sr. Gehringer, que não me respondeu pessoalmente. Entretanto, creio que ele acabou por enviar-me sua resposta na última edição da revista de 10 de dezembro do corrente em sua coluna “Nossa Carreira”, à página 95. Uma senhora, chamada Laíssa, colocou a seguinte questão: -“Tenho 43 anos e formação superior. Mas sou recém-separada e sem experiência profissional (meu último emprego foi há 17 anos). Por onde devo começar a procurar uma oportunidade?” Ao que ele respondeu: -“Infelizmente, Laíssa, se você não conhece ninguém que possa recomendá-la para uma vaga, essa combinação de idade + inexperiência vai lhe trazer mais dissabores que alegrias se você for bater em portas de grandes empresas. Eu diria que há duas opções viáveis que você deve considerar. Uma é um concurso público. E outra é o marketing multinível – a venda direta de produtos de uma empresa ao cliente final. É uma atividade que não requer muito capital, cujo resultado dependerá APENAS de seu esforço e competência, e poderá não apenas lhe dar um fôlego financeiro, mas também ajudá-la a readquirir confiança profissional em si mesma etc. etc. etc.” (Grifos meus).
                Ficou claro por sua resposta que o Sr. Gehringer vê no marketing multinível, que eu prefiro chamar de Distribuição Interativa, uma opção de renda potencial às pessoas que envidam esforço e competência neste trabalho. Em suma, em nada diferente de qualquer atividade laborativa séria e honesta. Em suma ainda, qualquer atividade laborativa séria e honesta gerará um resultado. Com a Distribuição Interativa não é diferente. Com um detalhe importante: Distribuição Interativa, por formar uma rede de distribuição, pode gerar uma renda elevada e, o mais importante, mesmo cessado o trabalho feito para construí-la. Em outras palavras, cria-se uma renda residual ou renda passiva. Cria-se um ativo. Os contadores e economistas que me corrijam: ativo é tudo aquilo que põe dinheiro no teu bolso. Mais especificamente ainda: o ativo põe dinheiro no teu bolso sem trabalho. O trabalho que você tem é o de criá-lo!  O que quero dizer é que o resultado do trabalho em Distribuição Interativa, ou Marketing Multinível, pode ser bem melhor do que qualquer outro trabalho convencional. A renda passiva pode ser alcançada em poucos anos de trabalho e representa uma aposentadoria! Outro detalhe importantíssimo: em Distribuição Interativa deve-se ajudar outras pessoas a atingir esses resultados! Para ser franco, só se ganha dinheiro em Marketing Multinível se se levar os outros a ganhar dinheiro! Dito de outra forma: você só ganha dinheiro se os outros ganharem.
                A última frase do Sr. Gehringer é, talvez, a mais significativa de sua resposta, e merece um esclarecimento. Quando ele diz que a atividade de Marketing Multinível pode ajudar o indivíduo a readquirir confiança profissional em si mesmo ele deixa subentendido uma ferramenta poderosa de uma empresa séria de Marketing Multinível: um Sistema de Treinamento, ou de aperfeiçoamento pessoal. Robert Kiyosaki admoesta claramente que, antes de entrar para o negócio de Distribuição Interativa, deve-se procurar saber se a empresa à qual você se associa tem um Sistema de Treinamento voltado para o crescimento e aperfeiçoamento da pessoa. E desaconselha peremptoriamente a que se associe àquelas que não o têm. Os céticos quererão saber por quê. E lhes direi: Marketing Multinível é um negócio de pessoas. Muitas pessoas farão o negócio pelo simples prazer de estar com as pessoas que admiram, ou que lhes ensinam, ou que lhes ouvem, ou que lhes ajudam nas turbulências da vida. O Sistema de Treinamento lhes prepara para serem pessoas melhores de modo a atrair mais e mais pessoas para o seu negócio. Simples como dois e dois são quatro.
                Uma ressalva vem a calhar. Marketing Multinível não deve ser encarado como uma atividade de exceção. Pareceu-me que o Sr. Gehringer só a aconselha aos que estão sem oportunidades ou aos que estão “perdidos”. Não é verdade. Marketing Multinível pode ser o “plano B” de quem quer que seja.
                Para terminar, eu diria que Distribuição Interativa é um universo. Em que pese sua simplicidade matemática da geração da renda, que até uma criança de oito anos de idade entenderia, há tantos e tais meandros no Marketing Multinível que só os que não se deram o devido tempo não puderam vislumbrar.  Aconselho-os a que “percam” alguns poucos minutos para entendê-lo. Isso poderia desvendar uma oportunidade e um desafio inteiramente novo e excitante. A vida vale a pena ser vivida.
                De minha parte fico feliz em perceber que o Sr. Gehringer já sabe mais sobre Marketing Multinível. Se ele aprender mais sobre o assunto, em breve será consultor de empresários também.


Fernando Cavalcanti, 12.12.2007 

MAX GEHRINGER E O MARKETING MULTINÍVEL

Articulista  de “ÉPOCA” na coluna “NOSSA CARREIRA”, Max Gehringer recebeu a seguinte pergunta de uma senhora chamada Lisa, na última edição da revista, de 03 de dezembro de 2007: “Trabalho numa ONG e estou extremamente insatisfeita, porque não vejo perspectivas de crescimento. Estou em RH, mas não gosto da área. Quero mudar, mas não sei que setor ou atividade escolher. Já fiz orientação vocacional, mas não adiantou. O que eu faço?”
                O senhor Gehringer é comentarista corporativo e autor de oito livros sobre o mundo empresarial. Ele respondeu o seguinte: “Faça terapia, Lisa. Até que você descubra a razão de tanta insatisfação, não adianta mudar de empresa. Enquanto isso, sugiro que considere a possibilidade de trabalhar com marketing multinível (venda em domicílio). Embora essa seja uma atividade mais de curto prazo, que não constrói uma carreira, é algo que você poderá fazer a partir de sua casa, com horários flexíveis, que lhe garantirá uma remuneração decente até você encontrar seu rumo.  (Grifos e negritos meus)
                Acredito que a senhora Lisa deve ter ficado extremamente curiosa, e ao mesmo tempo confusa, sobre dois pontos da resposta do senhor Gehringer. Primeiro, por que uma atividade que garante uma remuneração decente não pode vir a ser uma carreira?  Segundo, por que a atividade de distribuição interativa, o mesmo marketing multinível, seria de curto prazo, já que é rentável?
                Acredito também que o senhor Gehringer tem muitos conhecimentos sobro o mundo corporativo, como é evidente em seu currículo. Quem não o conhece poderá ter o prazer assistindo ao Fantástico aos domingos. Entretanto, ele cometeu pelo menos um erro grosseiro em seus comentários, afora as dúvidas que suscitou. Distribuição Interativa, como prefiro chamar, não é, em absoluto, uma atividade que inclua vendas em domicílio. Como o nome sugere, há que se ter um forte relacionamento interpessoal entre o que vende e o que compra, e sempre se oferece, além de produtos a quem compra, a possibilidade e oportunidade de desenvolver a mesma atividade. Esta oferta inclui o apoio quase incondicional ao novo prospecto ou candidato, bastando para isso que ele assuma o compromisso de levar a sério o trabalho, já que quem convida não se torna seu chefe, mas seu sócio. Esse apoio contempla todos os conhecimentos e atividades didáticas que o prospecto necessita para exercer essa atividade, de forma a se tornar um profissional capaz no mundo do negócio de Marketing Multinível. Portanto, o sair de porta em porta não é uma técnica de vendas recomendada nem recomendável para o empresário de Distribuição Interativa. Os laços humanos de companheirismo, amizade e verdadeiro interesse no sucesso alheio são as características fundamentais do negócio de Distribuição Interativa. Essas características são a “cola” de um negócio bem-sucedido, rentável e consistente. São características e condições sem as quais simplesmente não se faz Marketing Multinível.
                Também, ao contrário do que afirma o senhor Gehringer, o empresário da atividade de Distribuição Interativa tem o potencial ilimitado de construir uma sólida, lucrativa e enriquecedora carreira. Como acontece em todas as atividades na vida, é apenas um potencial. Há que se pagar o preço. Como em tudo. Se quiser ser médico, pague-se o preço. Se quiser ser rico com Distribuição Interativa, pague-se o preço. Nada nasce feito. Há que se construir. Demanda aprendizado, tempo, estudo, fracassos. Quem não quiser aprender, se dar o devido tempo, estudar e se permitir fracassar para aprender com o fracasso, que procure um emprego.
                Distribuição Interativa é um revolucionário método de distribuição de produtos e bens de consumo aos consumidores. Pelas suas características, alguém já disse que é a socialização do capitalismo e da livre iniciativa. Por apresentar a mesma chance a todas as pessoas de várias classes sociais, diversos níveis culturais e de várias profissões tradicionais a que montem um negócio a partir de um investimento inicial mínimo e com custos mínimos como capital de giro, é que ela se torna atrativa e interessante. 
                O que me parece, para concluir, é que o senhor Gehringer é um excelente consultor... para empregados! Ele orienta, seguramente de forma correta, as pessoas que têm a mente de empregados. Ter a mente de empregado tem a ver visceralmente com a educação que as pessoas recebem sobre formas de ganhar dinheiro honestamente. A grande maioria das pessoas foi educada a ganhar dinheiro trabalhando para outras pessoas ou para o governo por um salário de paga. Desde grandes executivos (os Chief Executive Officer - CEO) com salários de cem mil a um milhão de reais/mês até um gari que ganha trezentos e cinqüenta reais/mês, é para essas pessoas que o senhor Gehringer discursa. Nada contra os garis! Eles são importantíssimos! Quem limparia essa sujeira se não existissem pessoas dispostas a fazer isso por esse salário? Ele ensina como ser um melhor empregado. Por isso não aconselhou à senhora Lisa a estudar com afinco e aprender sobre Marketing Multinível. Esta é uma atividade empresarial. Há que ter a mente de empreendedor para exercê-la. E não é todo mundo que foi empregado a vida inteira que estará disposto a mudar a sua mente e aprender a ganhar dinheiro de outra forma. Mesmo que esteja correndo o risco de ficar milionário. Isso o senhor Gehringer não saberia ensinar.


Fernando Cavalcanti, 03.12.2007

RISCOS

Não se pode viver sem riscos. Em tudo há risco. Nada há nesta vida que não implique n’algum risco. Só não há o risco de morrer: a morte é certa. Não é um risco de quem vive: é a única certeza. O resto, todo o resto, é um risco. Em tudo há risco, repito.
                Um amigo, que reclamava até da nuvem sobre sua cabeça, não queria mais nada em sua vida que implicasse algum risco. Em verdade, não queria nenhum risco. Eu lhe disse que não era possível; que escolhesse coisas de menor risco; que seria até possível aferir os riscos de cada projeto, mas não havia como evitá-los completamente. Ele se convenceu quando lhe disse que as seguradoras vivem do dinheiro que ganham assumindo os riscos alheios. Você as paga e elas assumem os riscos que você tem de ter prejuízos ou perder um bem num sinistro. Se o evento indesejado vier a ocorrer, elas te reembolsam. Deve ser um bom negócio, visto que elas crescem cada vez mais. E, se crescem, é porque o dinheiro que entra em seus contratos de risco é maior do que o que sai com o pagamento do prejuízo dos clientes. Conclusão: o risco é só um risco. O risco não é um fato líquido e certo, como a morte. Ele é apenas uma possibilidade, e, portanto, só ocorre eventualmente. Na maioria das vezes nada ocorre. Por isso as seguradoras enchem os bolsos de dinheiro.
                Ele passou, então, a especular sobre os riscos de cada coisa em particular. Antes, contudo, alertei-lhe que às vezes corremos o risco de que também coisas boas aconteçam; que o evento fortuito pode ser uma coisa esplendorosa, tremenda. Um exemplo: se jogar toda semana na loteria esportiva – sou do tempo da loteria esportiva – corro o risco de ficar rico. É óbvio que também corro o risco de perder todo o meu dinheiro jogando, o que é muitíssimo pouco provável se jogar apenas um único e mísero real por semana. Ele, que estava mais preocupado em problemas advindos dos maus riscos – os maus riscos são os riscos em que o evento fortuito é ruim ou indesejável – enumerou duas coisas que evitaria doravante: casamento e filhos. Sobre o casamento alegou que corria o risco de levar chifres ou de sua mulher lhe tomar o que tinha. Sobre ter filhos me saiu com esta: custam muito caro e não dão retorno. Sobre o matrimônio argumentei que diminuiria bastante os riscos se procurasse a companheira ideal, financeiramente independente e de reputação ilibada. Ele contra-argumentou que as mulheres financeiramente independentes não iriam casar com um borra-botas como ele, e que as de reputação ilibada seriam como rede preta: inexistentes. Disse-lhe que os filhos lhe dariam muito prazer e que seriam a ponte para transcender a vida. Disse ele, então, que preferia ter outros prazeres com as mulheres e que não tinha interesse em transcender, pois não estaria lá em corpo físico para ver. Lembrei-lhe que, com a vida devassa que levaria, correria o risco de adquirir doenças e morrer mais cedo. Ele replicou que não tinha medo de correr esse risco, desde que a morte fosse confortável e rápida. E a conversa foi, foi, foi... e não teve mais fim.
                Como vêem, cada um escolhe os riscos que quiser. Foi muito bom porque fizemos um exercício de pensar mais objetivamente nas coisas. Na maior parte das vezes não agimos assim. Não nos damos ao trabalho de pensar nos riscos que corremos, os bons e os maus. Às vezes, o risco de bom êxito é até maior que o de mau, mas recuamos porque focamos no último. Só olhamos para o medo de perder. E esquecemos que podemos ganhar. Isso mostra que os seres humanos são basicamente negativos. E por isso muitos não acreditam em si mesmos. Quando amealhamos o pouco, não acreditamos que possamos ir além e abdicamos do muito. Quando nossos projetos se mostraram inadequados para nossa realização pessoal, perdemos a autoconfiança e a auto-estima. Ficamos congelados e aterrorizados. Morremos em vida. Dizemos-nos velhos, ou cansados, ou decepcionados, e nos apegamos com unhas e dentes ao status que eventualmente tenhamos. E ficamos unicamente com ele, nosso status. Nesse momento esquecemo-nos de fazer a pergunta principal: qual o risco de me prender a esse status? E eu lhes responderei: o risco de perder a capacidade de aprender. Quando se perde a capacidade de aprender, acaba a vida. O tempo que nos resta será usado para relembrar quem já fomos, o que já fizemos, quão bons fomos um dia. Seremos velhacos. O status será tudo que nos resta. Paramos e ficamos a olhar para trás, enquanto a estrada se perde no horizonte à nossa frente. Esse é um risco que não devemos correr. Seremos zumbis a vaguear pelo mundo, desprezados pelos que pulsam de tanta vida.

Fernando Cavalcanti, 06.12.2007 

quarta-feira, 8 de março de 2017

POSE NÃO GERA RENDA

Esse negócio de rede social aproximou demais as pessoas. Não, não. Esse negócio de rede social aproximou pessoas demais. Sim, pessoas em número excessivo interagem simultaneamente. Imaginem aí cem, cento e vinte pessoas conversando ao mesmo tempo ou quase isso. Isso não seria o pior. Como se administram tantas vontades? tantas ânsias? tantas carências? Não há de ser fácil, por óbvio. Dirá alguém que a arte da interação é o uso da dialética, do contraditório, da tolerância. Tudo bem, tudo certo. Falar é fácil, fazer é que são elas, diria minha avó.
                Pois a moda em voga é a criação, na rede social, desses grupos. E para tudo se criam grupos. É o grupo dos amigos de trinta anos, dos amigos de quarenta anos; dos amigos que se conheceram no berçário, dos que se conheceram no bar da esquina, e por aí vai. Falo tudo isso e assumo – eu mesmo já criei grupos. Devo dizer que foram grupos mixurucas, pequeninos, três, quatro, cinco pessoas. Quase não se interage, quase não se fala no grupo. Chego a pensar: – para que diachos existe tal grupo? E não acho a resposta. Mesmo eu me presto, às vezes, ao efeito manada.
                Contudo, sei de grupos enormes, acima de cem pessoas. As notícias que tenho do grupo são as mais variadas. Soube de intrigas, de querelas, de arranca-rabos. Depois, ao que consta, veio uma calmaria, uma espécie de hangover, como se todos houvessem se cansado de tantos debates e de tantos embates. Enfim, veio a prova de que Rousseau, ou o Rubem Alves, ou o Rubem Braga, estava absolutamente certo – o homem, sozinho, é essencialmente bom. O ajuntamento de homens o corrompe e o degrada. Eis tudo aí.
                Eu não sei por que falei tudo isso. Há de ter sido um desses atos falhos que diariamente nos assaltam. (O melhor do ato falho é a ausência de culpa.) Queria mesmo era falar do carioca que conheci em Florianópolis, sim, o carioca que se tornou manezinho. Sobre ele, foi o seguinte.
                Parado em seu carro em monstruoso engarrafamento na Avenida Brasil, sentiu uma opressão no peito. Não era dor física, nem o aperto da angina. Era uma emoção, uma emoção negativa. E era tão negativa que a ela seguiu-se a diaforese. A gravata o sufocava, o colarinho parecia uma argola que se lhe fechava em torno do pescoço. Tinha medo, um medo incontrolável e incoercível. Sacou do telefone portátil e ligou para o cliente que lhe esperava no fórum, para a audiência. Disse-lhe que não poderia ir, que enviaria alguém para substituí-lo.
Já em casa, chama a mulher. Dá o ultimato: –“Não quero mais viver nessa cidade”. A mulher ouvia sem dar importância. Continuou: –“Escolhe aí outro lugar pra viver; aqui não fico mais”... A mulher argumentou lembrando-lhe os filhos, que estavam para entrar na faculdade. Ele refletiu alguns segundos e assentiu: –“Está bem. Espero no máximo 2 anos. Depois disso, vamos embora”.
                Dois anos depois, após lembrá-la do acerto feito, a mulher vacila. E meus pais? Vou embora assim? Deixando papai e mamãe no inferno desse Rio de Janeiro? Ele, que ia lhe perguntar se era casada com ele ou com os pais, recua e, sem hesitar, avisa: –“Estou partindo”. E, assim, o encontramos em Florianópolis, dirigindo seu carro para fazer um caixa extra, esse negócio da Uber, a empresa americana. Tem uma banca de advogado com um sócio, mas complementa o orçamento com essa atividade. No meio da corrida – íamos à praia da Joaquina – liga um cliente. (De fato, era uma cliente.) Atende. Ela quer saber de um processo. Ele explica que já saiu o mandato de prisão contra alguém e a tranquiliza. Combinam de falar depois, e ele promete mantê-la informada. Ela se despede com gratidão: –“Muito obrigada, doutor Martins”!
Ao longo de todo o percurso, o novo manezinho fala da cidade, de seu novo lar, da nova namorada, do divórcio, dos filhos já formados, dos concursos, dos salários na cidade... Acima de tudo, demonstra estar tranquilo, vivendo em paz. Afinal, ser manezinho é como habitar o oásis da violência grassante por todo o país. É tão desprendido que ousa parar seu carro no Mirante Morro da Lagoa para tirar fotos de seus clientes cearenses, algo que não está incluído no serviço que nos presta. Ao final, deu-me um cartão de visita; não o cartão do motorista que dirige Uber, mas o do causídico atuante no interesse de seus clientes.
                Ia esquecendo. O dinheiro extra se presta à realização de um sonho. Estão de passagens compradas, a namorada e ele, para Portugal em janeiro do ano que vem. Precisa juntar sete mil euros para trazer uma quantidade de vinhos que irá guarnecer a adega que construiu em sua nova casa. Já dispõe de pouco mais da metade. Não se envergonha do trabalho que faz. Vergonhoso é parasitar, furtar, roubar, enganar, e permitir que a vaidade suba à cabeça – coisa produzida pelo efeito manada, pela pose que alguns têm em alguns lugares do país. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

UM BREVE E DESINTERESSADO TRATADO SOBRE O INTERESSE

          Quisera eu ter a capacidade intelectual para escrever um tratado sobre interesse. Esperem um pouco. É possível que não me tenha feito entender. Falo do interesse em geral, do interesse em tese.  O caso é que o meu amado amigo Gaudêncio porta uma espécie de neurose sobre esse... o que é mesmo o interesse? É um substantivo. Mas, o que vem a ser ele? É um sentimento? É um desejo? É uma vontade? Que diachos é o "interesse"? Pois, repito, o Gaudêncio é um neurótico por interesse. Ou será que o amigo está a querer iniciar a inusitada propaganda "Viva o desinteresse!"? Vou tentar explicar. É o seguinte. O amigo não se conforma que as pessoas tenham interesses. E pior. Se o interesse partir de uma pessoa de posses ou poderosa, então, o mundo vem abaixo em forma de mais neurose. Mas vejam. O jornalista tem interesses, o advogado idem, o ginecologista também, e o coveiro há de ter igualmente os seus. Padre tem interesses? Seguramente. E o Papa? Sabe-se lá, mas não arriscaria dizer que não. Mesmo o Sumo sacerdote deseja algo, o que o faz possivelmente persona non grata aos olhos do Gaudêncio. (Estou começando a achar que o interesse é, sem dúvida, um desejo.) Então, o amigo é portador de uma neurose sobre esse tão alastrado desejo. Os leitores leigos na ciência que estuda o comportamento e a mente fiquem sabendo que a neurose é assim: — o sujeito sabe que dois mais dois são quatro, mas não se conforma. Percebem? Pois bem.
          Agora vejamos o seguinte. Se o interesse é um desejo e todos têm desejos, por quê?, qual a razão de meu amigo? Lembremos que até os animais têm desejos. São desejos que brotam a partir do que se conhece como instintos, mas nem por isso são menos desejos no sentido de pretender satisfazer alguma necessidade. Eu disse que o amigo odeia que os de posses tenham interesses. Assim, para ele pobre pode ter interesses. É legítimo. É apropriado. Poderosos e ricos, não. 
          (Estou tentando pegar "na veia", mas o tema é escorregadio.)
          Partirei de exemplos proporcionados por nossas últimas conversas. Outro dia entramos a falar que o país está passando pela pior crise de sua história. Os historiadores e economistas dizem que tal só houve à época do Floriano, ao fim do século XIX. Até aí nenhuma novidade. Foi quando se disse também que o país está melhorando, que a crise está amainando, que há sinais inequívocos de melhora do ambiente econômico. E que isso se deve ao fato de o governo estar empenhado em fazer as reformas necessárias para que tal aconteça. Ainda mais. A autoridade monetária está competentemente lidando com a inflação, com a taxa de juros e com o câmbio sem interferências externas, sem ingerência política. A melhora do ambiente sempre antecede a melhora do cenário real, visto que é natural que haja um lapso de tempo entre uma coisa e outra, período em que cresce a confiança das pessoas na materialização desse cenário. Pois o amigo, que estava quieto, saiu das sombras para dizer — quase ouço-lhe os gritos — que está tudo muito ruim e que não está havendo nenhuma melhora. E mais: — não há perspectiva para isso. E isso era o que diziam os jornalistas e blogueiros da Folha, do Estadão e do Valor. (Senti um alívio por ele não ter citado os jornalistas locais. Se o fizesse, certamente eu seria acometido de espasmos e furores digestórios.) Por fim, argumentou que nós, os que temos a visão da inflexão que está inequivocamente a ocorrer, estamos a beber em fontes duvidosas cujos INTERESSES seriam os mais escusos possíveis. E mais: — que não há ninguém sem interesses. (As afirmações do amigo eram de uma espessa e inegável obviedade.) Presumo que se referisse também aos jornalistas e blogueiros que lê. Eis aí o contexto.
          Contei o milagre é denunciei o nome do santo. Volto ao interesse puro e simples. Repito que a ubiquidade do interesse é tão primorosamente evidente que já sinto um crescente desconforto em falar sobre isso. Afinal, ao falar sobre o óbvio beiramos a nossa própria neurose. Temo iniciar o texto gozando de perfeita saúde mental e acabar por perdê-la ao longo de seu desenvolvimento. Paciência. Escrever é atividade de risco. 
          Ora, desde quando o interesse move as relações humanas? Presumo que a resposta seja desde sempre. Vou além e pergunto: — há relações onde o interesse não exista? Respondo: — não há relação onde o interesse não esteja presente. Há, além disso, a não-relação de interesse. Que diachos seria isso? Bem, a matéria do jornalista que leio terá algum interesse ao atingir o leitor, ainda que esse homem da imprensa e eu não tenhamos sido apresentados. Sendo assim, por que o meu amigo tem tantas reservas pelos interesses? Pensará ele que o interesse é um mal em si? Tudo indica que sim. O que o amigo não consegue, talvez, é distinguir os tipos de interesse. Assim, de minha parte sugiro a existência de dois tipos de interesse: o legítimo e o ilegítimo. Se alguém me disser que há mais algum, que me ajude a sair dessa enrascada. Ou, melhor ainda: — peço encarecidamente ao amigo Gaudêncio que me ensine quais seriam os outros tipos. 
          Vou ao pai dos burros e lá leio sobre "legítimo": fundado no direito, na razão ou na justiça; genuíno, verdadeiro; natural, justo, justificado; que tem caráter ou força de lei. Assim, as relações onde impera o ilegítimo interesse estão fadadas a qualquer resultado que não possa ser classificado como bom. Imaginemos o bandido, o assaltante. Para nós brasileiros é fácil imaginar. Vamos mais além. Imaginemos também o marginal de colarinho branco. Qual o interesse do bandido, do marginal? Resposta: o bandido quer ganhar sem trabalhar, tirando à força e usando de violência o que pertence a outros. Seu interesse não está fundado no direito, não é natural, não é justo. (É inevitável aqui dizer o óbvio, repito. Sim, porque é muito óbvio que o resultado da soma dois mais dois seja quatro...) Por outro lado, o bandido existe, sempre existiu. Justamente por sua existência é que se erigiu um corpo de leis. (Paro por aqui senão sairei a falar de direito natural e direito adquirido, e o amigo Gaudêncio sabe bem de tudo isso por ter um diploma de causídico.) 
          Vejam o jornalista a serviço do que quer que seja. Da mesma forma, seu interesse será ou não legítimo. Se sai a defender o interesse de criminosos, as penas brandas para bandidos e o desarmamento da população, estará claramente a serviço da vulnerabilidade da sociedade. Sua intenção é, usando de falsa retórica, convencer a todos de que a causa da violência é o fato de o cidadão de bem possuir uma arma, ainda que nenhum dado objetivo e claro apoie tal argumento. Reportando-me agora ao nosso diálogo sobre se está ou não o governo tomando as medidas necessárias a que se crie expectativa positiva para a economia do país já no curto prazo, os jornalistas e blogueiros que o amigo lê são TODOS céticos quanto a isso. Os tais jornalistas escrevem em grandes jornais, são cobras criadas da imprensa e por isso, somente por isso, são críveis? Ora, os dados irrefutáveis, sobre os quais obviamente não comentam em seus artigos, mostram o contrário. Presume-se que esses tais estão a defender interesses, assim como estão os que estão a divulgar os tais dados em outras fontes que o amigo não lê. Cabe então a pergunta: — a serviço de quem está esse pessoal tão entendido e tão celebrado? Melhor dizendo, que interesses essa súcia pretende defender? Seria somente a defesa de interesses ou estão a destilar sua ignorância pura e simples sobre assuntos de macroeconomia? Ignoram esses trogloditas da economia que expectativa faz preço? Que o reapreçamento começa a se fazer no exato momento de uma mudança na expectativa, seja para melhor, seja para pior? Tudo indica que sim. Mas a melhor pergunta é: — são legítimos os interesses desse povo? É para o bem do leitor ou quer induzi-lo ao erro que esse povo escreve? 
          Diz o amigo que não lemos tudo, quando é justamente o contrário. Nós que vemos os dois lados da moeda porquanto também lemos o que dizem esses paspalhões, temos bem constatado quem está com a razão. O pior de tudo é que informações se prestam sempre a alguma utilidade. Se ela pode lhe ser útil e você a lança ao lixo quando ouve quem ali está para induzi-lo ao erro, perderá oportunidades. E aí não há perdão. No mundo real, na dura realidade da vida três coisas jamais retornam: a pedra lançada, a palavra emitida e a oportunidade perdida. É melhor comprar barato do que caro. 
          

"SEU" ANTÔNIO, DISCÍPULO DE NASSIM NICHOLAS TALEB

               O que aconteceu foi o seguinte. Contrataram “Seu” Antônio, lá para as bandas de Crateús, para confeccionar e pôr no lugar a...