segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

RELATIVIZAR - A NOVA FORMA DE BURLAR

           "Eu nada seria sem minhas obsessões" (Nelson Rodrigues)


           Relativizar é, bem no popular, o que há aos dias de hoje.

Não sei se somente neste derrotado país ou se também no resto do mundo. É possível que em algum outro país o mesmo ocorra. Sabe-se lá... Einstein abriu a janela da relativização com sua teoria? Sabe-se lá... A teoria física nem de perto tem as mesmas implicações da relativização de que falo. A do físico alemão surgiu da “compreensão progressiva de que dois referenciais diferentes oferecem visões perfeitamente plausíveis, ainda que diferentes, de um mesmo efeito”. O palavra-chave aqui é referencial.

Pois a relativização de que falo pretende e, de fato, atua levando-se em conta, quando da aplicação de regras e leis, o sujeito sobre o qual incide a possível pena ou ônus. Como exemplo amplamente conhecido, a relativização no Brasil, ainda que muitas vezes seja implícita, outras vezes é tão explícita quanto uma cena de sexo de filme pornô. A lei maior (?) reza que todos são iguais perante a lei (Artigo 5º). Está lá para quem quiser ver.

Ocorre que não é bem assim. Os membros do parlamento, no Brasil, são considerados uma exceção – eles têm a famigerada imunidade parlamentar e não podem ser processados criminalmente. Eis aí a mazela. Há outras, muitas outras. Nem falemos dos privilégios dos quais esta “casta” goza. Não só no parlamento, mas também nos altos escalões do poder judiciário e, principalmente, nos altos escalões do poder judiciário.

Pergunto: o que é tudo isso, afinal? Respondo – isso é a relativização posta em prática tão explicitamente quanto possível, que nem cena de sexo de filme pornô. Mas não fica por aí.  Essa relativização vem como exemplo a ser seguido em menor escala ou, melhor, aqui em baixo, na arraia-miúda. O que essa arraia-miúda não percebe, ou percebe e não liga, é que nesse filme pornô ela é o ator que está sendo currado. Vejamos, a título de exemplo, o caso horripilante que relatei sobre o que está a ocorrer com os clientes da Unimed Fortaleza (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2020/12/imposturas-ii-nem-tudo-o-tempo-resolve.html).

Dirá alguém que exagero, que estou a encher linguiça, que estou a perder meu tempo com pouca coisa. Será? Ora, fere-se diariamente, há anos, o estatuto da cooperativa prestadora de serviços de saúde Unimed Fortaleza, num criminoso acumpliciamento entre gestores e cooperados da mesma a fim de, utilizando uma prática ilegal à luz de seu próprio estatuto, majorar o valor da consulta médica paga a seus cooperados, hoje a irrisória quantia de R$ 80 (oitenta reais) brutos. O que acontece é o seguinte – os médicos cooperados, alguns deles, uma parte considerável deles, está cobrando valores de seus clientes à guisa de uma consulta médica, uma consulta “particular”, o que explicitamente é proibido por seu estatuto em seu Capítulo III, Artigo 7º, item I.

Mas... onde está a relativização nessa tétrica história? Simples – o cliente, quando da solicitação de reembolso dos valores indevidamente cobrados à mesma Unimed Fortaleza, tem, via de regra, seu pedido negado com base nos argumentos mais risíveis possíveis. São risíveis porquanto, para lhes proferir, se utilizam da ampla relativização. Em nenhum momento os auditores, figuras médicas que avaliam esses pedidos, se referem à parte do estatuto que proíbe tal prática. Pois por óbvio, já que estão fazendo vista grossa ao verdadeiro problema.

O referencial dessas pessoas quer ser tão móvel quanto o da teoria da relatividade com a diferença de que, naquela, as visões são plausíveis enquanto aqui, na história da Unimed Fortaleza, uma regra é uma regra, uma lei é uma lei e não seria possível relativizar seu cumprimento sob pena de ela virar pó. Pois é justamente o que está a ocorrer com a regra no estatuto da Unimed Fortaleza que proíbe a cobrança de consulta particular por parte de um cooperado no atendimento ao cliente pagador de um plano de saúde da Unimed Fortaleza. Bem se vê que a moda da relativização se explica – ferir a lei ou ferir a regra de forma cínica e criminosa. No caso, são dois os ilícitos – o do cooperado por cobrar e o da cooperativa por não reembolsar o cliente lesado e/ou punir o médico infrator.

Engana-se quem pensa que isso é tudo. Há outro agravante na conduta da cooperativa ao negar o reembolso a seus clientes. E por quê? Ora, os ”auditores”, ao negarem o reembolso, muitas vezes sugerem que o cliente troque de médico. Sim! a cooperativa sugere que o cliente de um médico cooperado que cobra “por fora” procure outro, também cooperado, que não cobre! Pasmem! Não fosse trágico seria cômico... O agravante, entretanto, não está aí. Vamos a um exemplo.

Imaginem um parto em que o obstetra trabalha rotineiramente com toda uma equipe. No parto está lá um(a) pediatra neonatologista para dar assistência ao bebê tão logo ele nasça. Ele(a) é cooperado da Unimed. Nada cobra. Numa visita à mãe, ainda no hospital, pede que lhe leve a criança no consultório dali a dez dias para uma consulta.

Dez dias depois a criança vai ao consultório com os pais para a consulta. Nada é cobrado, mas os pais já tomam conhecimento que a próxima consulta, dali a trinta dias, será “particular”. Uma relação médico-paciente na pessoa dos pais do recém-nascido é estabelecida. Os pais não querem procurar outro médico. Na solicitação do reembolso, recebem o indeferimento da Unimed sob a “justificativa” de que “os pais deveriam ter ido a outro médico”. Em suma, e para não encher linguiça como alguns irão sugerir, a cooperativa de médicos Unimed Fortaleza julga a relação médico-paciente uma bobagem, coisa à toa, “estória pra boi dormir”.

E como esta existem centenas de “estórias pra boi dormir” protagonizadas pela cooperativa Unimed Fortaleza.

(Alguns dirão que repito em demasia o objeto de minha indignação “Unimed Fortaleza”, e é verdade – repito. Mas, esclareço: é uma necessidade. Acredito piamente que o agredido deixa crescer em seu íntimo uma certa obsessão pelo seu agressor, como se ela, essa obsessão, os mantivessem ligados enquanto a relação perde-ganha se mantiver. Vejam que, aqui, ganhar e perder é apenas o indicativo de que uma regra ou lei foi violada sem a devida punição ou correção do infrator. Ao agredido só resta uma alternativa: lutar. Como diz um chavão, não é porque todos fazem que algo está correto. Estou quase a sugerir a criação de um grupo das centenas de clientes da Unimed que foram lesados a fim de ajuizar uma ação conjunta ou coletiva contra esses descalabros.) 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

IMPOSTURAS II - NEM TUDO O TEMPO RESOLVE

                 Não me lembra a última vez que comentei algo sobre a Unimed Fortaleza. Faz tempo, isso bem sei. Na época seu presidente pedia, ao me encontrar nos corredores do IJF: – “Fernando, pega leve, vai...” Éramos funcionários lá e era nesses fortuitos encontros a ocasião em que o presidente da Unimed Fortaleza via a oportunidade de manifestar certo incômodo por alguns de meus comentários.

                Hoje aquele presidente já não é presidente e o atual presidente, juntamente com os demais membros diretores, permitiram, ao que parece, a continuidade do farisaísmo, das incoerências e distorções que, já naquele tempo, ocorriam na relação da cooperativa como prestadora de serviços de saúde e seus clientes.

Vejam, por exemplo, o que escrevi em 02 de agosto de 2012 no texto “Imposturas” (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2012/08/imposturas.html). O que digo lá? Sem rodeios e sem delongas, para não tomar o tempo do açodado leitor – a cooperativa Unimed Fortaleza assiste com cumplicidade à lesão de seu Estatuto que reza, em suas várias atualizações subsequentes, tão explicitamente quanto possível, que “o cooperado se obriga a executar em seu próprio estabelecimento de trabalho, ou em instituições de saúde da cooperativa, ou por ela credenciadas, os serviços profissionais que lhe forem concedidos pela sociedade, sendo vedada a cobrança de quaisquer valores aos clientes pela realização destes procedimentos previstos nos contratos celebrados” (Artigo 7º, Item I.) O que se vê a céu aberto – ou seria inferno? – é exatamente o contrário: a cobrança indiscriminada de valores à guisa de consulta particular aos clientes dos vários planos da Unimed Fortaleza por parte daqueles que, pelo seu referido Estatuto, estão proibidos de o fazer.

É notório, no momento atual, a dificuldade do brasileiro em seguir regras, em seguir leis. Por outro lado, abundam regras e leis esdrúxulas que visam tão-somente estabelecer privilégios e “castas”. É o caso até de se pensar ser uma coisa consequência da outra e, sendo assim, tal não ocorre atualmente apenas. No caso da Unimed, os médicos cooperados que vêm continuamente e repetidamente infringindo descaradamente e desavergonhadamente seu Estatuto recorrem, quando colocados diante de seu crasso erro, às justificativas mais esdrúxulas e estapafúrdias, a mais comum o vil valor da consulta médica pago a eles por sua cooperativa. Por outro lado, a cooperativa, através de suas “auditorias” existentes para esse fim, quando pleiteada por um de seus lesados clientes a ressarci-lo pela indevida cobrança, responde através de patéticas e até incríveis – no literal sentido de “inacreditáveis” – desculpas. Vejamos uma delas. Chega a ser anedótica.

“Por que o senhor – ou a senhora – não procurou outro profissional cooperado”? ou, na conclusão da farisaica “auditoria”, “o(a) senhor(a) deveria ter procurado outro profissional cooperado e, por esta razão, sua solicitação de reembolso  foi indeferida”.

Não bastasse o fato explícito de a cooperativa, através de seus “auditores”, demonstrar absoluto desprezo pelo estabelecimento de uma relação médico-paciente, ela ainda reconhece passivamente a indevida cobrança. A cooperativa rasga seu estatuto e ainda culpa o cliente pelo ocorrido, numa completa inversão de valores e de regras. Sabia-se ser comum nesse decadente país a justiça muitas vezes culpar a vítima pelo crime sofrido, mas ainda não nesse nível, no nível civil.

Casos há em que o cliente é atendido no consultório “pela Unimed”, para na próxima ou próximas consultas ser indevidamente cobrado. A Unimed Fortaleza sugere ao cliente que, nesses casos, vá a outro profissional, como se a primeira consulta de nada valesse, como se nenhuma ligação houve se estabelecido entre o paciente e aquele que ele já considerava como seu médico. A cooperativa sugere que seus clientes saiam “pulando de galho em galho” ao sabor dos médicos que ora cobram, ora não cobram; ora atendem, ora não atendem pelo plano, numa Babel de relações erráticas e frustrantes para o que padece doente.

Bem, não há a menor dúvida dos inúmeros impunes ferimentos ao Estatuto da cooperativa Unimed por parte de seus cooperados. Tal situação não é novidade. Ocorre há pelo menos dez anos e vem se intensificando de forma aparentemente irrefreável. A conclusão a que se chega é uma só – a cooperativa Unimed Fortaleza é cúmplice de seus cooperados, faz vista grossa a seus erros, faz de conta que não é com ela e que ela nada tem a ver com isso. E por que o faz?

A resposta parece ser simples: porque é mais fácil punir seus clientes com cobranças às vezes criminosas do que discutir em assembleia de seus cooperados uma saída contábil que lhe permita majorar o valor de suas consultas pagas, no momento o mísero valor bruto de R$ 80 (oitenta reais) – a propósito, essa a desculpa mais comum pelos médicos cooperados infratores. O que não entendem, e não entendem porque usam de má fé, é que o cliente comprou um plano de saúde que contempla a consulta médica como parte do pacote. Se os médicos cooperados não conseguem que sua cooperativa lhes pague o justo e o merecido não é culpa deles. Como digo lá no “Imposturas”, o plano “consulta zero” está de vento em popa. Só faltou avisar aos compradores de um plano de saúde da Unimed.

Antes de encerrar, uma nota. A cobrança é criminosa quando faz vítima um idoso mais idoso cujos parcos recursos são religiosamente guardados para honrar seu plano de saúde e ainda são onerados com essa brutal quebra de contrato por parte da cooperativa acumpliciada a seus cooperados. Seus médicos deveriam se envergonhar por tal descalabro. Se o atual presidente da Unimed Fortaleza se incomodar com tão humildes comentários como o presidente de outrora o fez, meço o ego de um e de outro sem lhes achar diferença.

sábado, 19 de dezembro de 2020

CURAR ÀS VEZES, CONFORTAR SEMPRE

O que aconteceu foi o seguinte.

Entro para bater o ponto no hospital e o Víctor anuncia: – “Doutor, tem aí um processo para o senhor responder”. Era uma queixa de um paciente do meu ambulatório. Não, uma queixa não – uma reclamação. Sim, o paciente havia ido à ouvidoria reclamar por eu lhe ter orientado, na consulta que fez comigo, a procurar a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza para fazer o tratamento cirúrgico de suas varizes nas pernas.

Ora, todos os pacientes com varizes nas pernas que se prestam ao tratamento cirúrgico e que vão ao meu ambulatório são, depois de serem ouvidos, examinados, e mostrarem o desejo de operar suas varizes, orientados nesse sentido. As razões para agirmos assim são bem óbvias e, diria até, seculares. Assim, destrinchemos esse aparente engodo a fim de esclarecer o que está, de fato, na pauta.

Antes, porém, adianto o seguinte – esta não é uma defesa. Sim, não estou a me defender. Pela simples razão de ter agido no melhor interesse do paciente, nada há que necessite para a defesa deste profissional. Apenas faço um relato do ocorrido. Neste país todo esforço tem sido feito para inverter ou deturpar os próprios fatos, como se estes pudessem ser alterados. Estamos em Fortaleza, uma cidade decadente, perigosa, mortal diria até, tomada por forças poderosas aliadas ou protegidas pelo chamado “poder público”, com um povo que se permite dominar e se ajoelha diante do mal. Assim, a tentativa de inverter os acontecimentos – não por parte do paciente, mas por outra fonte – não fosse por si só insana demonstra o grau de atuação a que chegaram os psicopatas locais, através de um de seus prepostos nomeados para função pública sem ter prestado concurso.

Foi-se o tempo em que um hospital público tinha toda a sua direção escolhida dentre seus funcionários. Hoje, essas figuras esdrúxulas vêm sabe-se lá de onde trazendo em seus currículos cursos de gestão e vivência zero em sua atividade principal. São fedelhos paparicados dentre a canalha política de plantão. Noutros tempos a direção era composta por médicos atuantes como médicos, não raro ícones da medicina local.

Dirão alguns que estas são afirmações exageradas, que não cabem numa humilde e pré-obsoleta crônica, mas, asseguro – nem tanto, nem tanto...

Então, vamos ao que viemos.

Em primeiro lugar, operar varizes de membros inferiores é perfeitamente opcional na esmagadora maioria das vezes. A condição é benigna e pode ser tratada de modo conservador sem nenhum prejuízo ou risco adicional para o paciente. Reforçamos isso quando o paciente tem comorbidades que “pesam” sobre o tratamento cirúrgico, impondo um risco absolutamente desnecessário. Essa é uma questão sobre a qual o paciente pode optar. Não estamos diante de uma condição que imponha risco à sua vida ou à qualidade dela, excetuando-se, talvez, a questão estética tão comum em pacientes do sexo feminino. Aqui vale a máxima: pesam-se os riscos e os benefícios. Como em tudo na medicina.

Em segundo lugar há o sistema público de saúde brasileiro com todas as suas mazelas. O Hospital Geral de Fortaleza (HGF) é um hospital desse sistema, um hospital terciário, ou seja, um hospital para onde são encaminhadas as pessoas portadoras de doenças graves, ou que requeiram tratamento especializado seja em complexidade de recursos materiais e/ou humanos. Como digo a meus pacientes do ambulatório e em relação ao escopo da cirurgia vascular, hospital terciário significa “gravidade” ou “prognóstico reservado ou não muito bom”. Eles ficam felizes em saber que suas varizes não lhes ameaçam a vida nem sua integridade física. Haveria dificuldade em entender isso ao leigo leitor? Todos os pacientes, inclusive meu queixoso paciente, saem conscientes de que lá não serão operados simplesmente porque os recursos deste nosocômio são todos dirigidos a pacientes com doenças graves que necessitam de tratamento complexo, o que não é o caso da doença varicosa de membros inferiores.

(Logo verão que sua queixa foi, digamos assim, uma maldosa indução de quem deveria zelar, acima de tudo, pela verdade e pela busca de soluções para aqueles que são usuários do sistema público.)

Lembra-me que, anos atrás, procurei a direção clínica do hospital a fim de solicitar a que comunicassem aos componentes primários do sistema de saúde que o hospital não oferecia aos pacientes com varizes e com esperança de operá-las um tratamento que não fosse o clínico. Os pacientes vinham cheios da certeza de ficar livres das incômodas varizes apenas para se verem frustrados.

O diretor alegou não ser isso possível por não me lembro quais razões. As pessoas portadoras de varizes em membros inferiores continuariam a vir ao HGF sorridentes e com a certeza absoluta de que teriam suas horrorosas varizes removidas. Eu seria o que está na linha de frente para lhes dar a triste notícia. O sistema alimentando a esperança e eu estragando o prazer. Por isso deixei de usar branco há muitos anos. Não combina com um estraga-prazeres.

Depois me iludi e perdi o meu tempo ligando para alguns postos de saúde, locais onde se faz a medicina básica, primária, mas não primitiva, de onde são encaminhados esses pacientes, na tentativa de sugerir que os encaminhassem a um hospital secundário, menor, de menor complexidade, para a consulta e tratamento de sua condição.

Novamente dei com os burros n’água. Concluí de imediato: o sistema está assim montado e não há quem mexa nisso. A jovem ou velha senhora sai no carro da prefeitura da cidade do interior na noite anterior à sua consulta com o cirurgião vascular do HGF só para ser desiludida por um médico de merda que ainda “perde” tempo tentando lhe explicar um sistema de saúde que não funciona perfeitamente e que, em seu entender, é gratuito. Horas e horas na estrada, gasolina da prefeitura, votos para os canalhas da política... e o estraga-prazeres ali, à sua frente, a lhes contar a verdade.

Mas, só agora percebo o detalhe: – por que a Santa Casa? Porque, no presente momento, é o único hospital nesta decadente cidade que presta esse serviço numa base rotineira com recursos públicos. E como sei disso? Ora, conversando e indagando de colegas da especialidade que trabalham nos outros hospitais terciários da cidade. É tudo a mesma coisa – hospitais terciários não combinam com condição benigna. Elas terão, ou teriam, seu tratamento em hospital secundário. O sistema não oferece essa alternativa, como bem se pode concluir. O problema é apenas um – os “gerentes” do sistema não assumem que há essa brecha.

Foi nesse cenário que a ouvidoria do HGF recebeu a reclamação contra mim. Julguei, a princípio, uma má fé do paciente que fez tal chororô. Sim, porque a única coisa que falta eu fazer no meu ambulatório é pôr meus doentes no colo. O resto já fiz – abraço, choro, beijo, faço cafuné, dou beliscões carinhosos, acaricio-lhes a face... mas no colo ainda não pus ninguém. São velhinhos e velhinhas com a doença mais desgraçada do mundo, a aterosclerose obliterante generalizada recalcitrante e mortal, com aneurismas ameaçadores, potencialmente explosivos ou obstrutivos; portadores de cotocos de pés, de pernas, de dedos, de mãos e braços que lhes avisam que o fim inexorável pode estar próximo. Outros, até mais jovens, com rins improdutivos de suas diárias urinas, presos à uma máquina que lhes filtram o sangue através de dispositivos artificiais que os médicos lhes enfiam no pescoço, virilhas, tórax, ou com veias enormes e dilatadas nos braços, resultado de suas “arterializações” para uso da máquina. São incontáveis histórias, inúmeros sofrimentos, difusas e insanáveis dores, lágrimas incoercíveis que molham lenços já sujos e puídos de tanto uso e esperanças fugidias...  E a frase que resume a missão me espicaçando a alma...

Por tudo isso senti um mal-estar leve, muito leve, ao anúncio do Víctor, como uma desolação causada por certa decepção com o ser humano.

Foi quando tudo se fez claro. Assim do nada, saindo de volta para casa, encontro ali, nos corredores do hospital, a informação dando conta de que meu paciente, o que elaborou a reclamação, confessou ter adorado a minha pessoa, o meu atendimento e a minha atenção, e que só foi à ouvidoria por orientação de graduado funcionário do hospital que, como já dito lá atrás, prefere a mentira à verdade temendo, talvez, o envolvimento inevitável de seu nome na constatação de uma falha ou brecha do sistema. Tão míope é que não percebe que o sistema não é ele. Mas sentir-se como o próprio sistema já denota que estamos lidando com um ego pueril e inflado, como o de um fedelho qualquer.  

segunda-feira, 6 de julho de 2020

O BEBÊ DO BAIRRO DE FÁTIMA

Não vou nem tergiversar, ficar de blablablá, contando caraminholas – queria saber, descobrir, qual seria o endereço fiscal de meu querido amigo-irmão Fábio de Oliveira Motta. Aos que não sabem, ou não lembram, o Motta é aquele que é a cara encarnada e esculpida do senhor Cesar Luis Menotti, ex-técnico da seleção argentina de futebol.  (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/08/menotti-motta-e-as-tres-raparigas.html). A fotografia da sumidade esportiva estava anexa ao texto, mas, por uma dessas limitações da rede ou o exercício do direito de seu autor, a removeram, de modo que, quem quiser ver a cara do homem, que digite seu nome no Google e lá verá várias delas, várias caras de um só homem.
Pois nosso Menotti Motta, como ficou conhecido após constatada a semelhança brutal, não tem, ao que conste nos autos, residência própria. É mais ou menos assim – já estivemos na casa do Mesquita umas cem vezes; na do Gaudêncio outras cinquenta; na do Bacana outras trinta; na do Tomasinho umas vinte; na do Baxin umas quarenta; na de Madame Serjão umas “uma”; na minha umas... sei lá. Na casa do Fábio “Menotti” Motta, nenhuma. Sim, na casa do Meninotti Motta, a casa dele mesmo, nenhuma. O que me recorda é ter estado em casa de seus pais há uns, digamos... seiscentos anos. Lembro neste dia, há seiscentos anos, o Agapito, seu saudoso pai, me cochichando ao pé do ouvido: –“A mulher é um bicho inconsequente...” Era na casa do Bairro de Fátima... Havia também as casas dos Motta no Pecém, a da praia e a outra, o sítio. Dos Motta, vejam bem.
Daí minha curiosidade no endereço fiscal do homem. Devo dizer, em minha abissal ignorância, que estou presumindo ser o “endereço fiscal” aquele que nosso homem pessoa física coloca em sua declaração de imposto de renda. Se estiver errado, e é extremamente provável que esteja, paciência... Sigo a perguntar: –“FaMotta, pedido de amigo... me diz aí qual é teu endereço fiscal”? Peço mais e humildemente: –“Se não quiseres ou puderes confessar esse endereço, me diz aí qual’é teu endereço residencial mesmo”...
É bem possível que o pobre e achacado leitor esteja até agora a entender patavinas dessa história. E é porque já comecei dizendo não querer usar de evasivas! Assim, o que queria indagar a meu amigo-irmão, de fato, é o seguinte: –“Onde é que moras”? Não, não... não é essa a pergunta. A pergunta é: –“Meninotti, onde é a tua casa”? Sim, porque estão a dizer aos quatro cantos, coisa de gente fofoqueira que não tem o que fazer, que moras com mamãe e papai há... mais de seiscentos anos. Sim, o amado e saudoso Agapito ainda vivia em plena fortaleza física, mental, emocional, espiritual. Assim, pergunto: –“É verdade?? Agora que Agapito não mais está entre nós, estás a morar com a amantíssima senhora dona Mirtes, tua querida mãe”?? Não... sim... sei que ela está idosa e requer alguém próximo que possa atender suas demandas, mas... o diabo são os últimos 20 anos... ou seriam 30? Há 30 anos, depois do teu divórcio, te amancebaste em casa paterna e lá permaneces até hoje? Em tempos antigos serias taxado, ou melhor, receberias uma plaquinha pendurada no pescoço onde estaria escrito em letras graúdas – RAPAZ VÉI.
(Aos que não entendem o cearencês, esclareço – véi é o mesmo que “velho”, uma espécie de hipocorístico muito comum nesse dialeto nordestino.)
Rapaz i... Nosso Meninotti não se enquadraria bem na definição porque o verdadeiro rapaz véi é aquele que nunca contraiu núpcias, nunca se amasiou, e este não é bem o caso...
Para encerrar, que não quero mais te perturbar o sono, em nosso próximo encontro, por favor, leva um boletinho da tua conta de luz... (Desde linhas atrás já me dirijo diretamente ao amigo porque sei que a canalha não perdoa e torna, em segundos, assunto sério em disse-me-disse sem rumo...)
Sim, um boleto da conta de luz porque o da conta de telefone não serve... não sei por que, mas não serve, viu?...

quinta-feira, 2 de julho de 2020

FEIO

Estou eu confortavelmente a fomentar meu ócio produtivo – alguém há de questionar a possibilidade de um ócio, qualquer ócio, ser produtivo – quando me bate o telefone portátil. Era o meu querido amigo Francisco José Ley, cirurgião plástico da Unidade de Queimados do Instituto Dr. José Frota.
Antes de continuar, me pergunto – há tipos diferentes de ócio? Sim, porque quem fala em “qualquer ócio” está a pressupor tipos diferentes do mesmo. Pois respondo sem o menor pudor: – sim, há o ócio improdutivo e o ócio produtivo. O improdutivo é um desses pleonasmos irremediáveis, ao passo que o outro, o produtivo, é um bálsamo na mente daquele que não quer se assumir desocupado.
Outro dia falei de meu feliz estado de desocupado (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2014/08/o-desocupado.html), sem nenhum constrangimento. No texto demonstro, com alguma facilidade, como o paradigma vigente no serviço público local tem a ver com “estar ocupado”. Por sua vez, “estar ocupado” tem a ver com o que o burocrata chama de “horas trabalhadas”. 
Ora, é sabido que o burocrata é, antes de tudo, o exemplo mais refinado e típico do idiota. Ele não vê diferença entre um trabalhador na linha de montagem de carros com o profissional da área de saúde que cuida de gente. Assim, para ele, quem cuida de gente deve demonstrar de alguma forma uma certa quantidade de “horas trabalhadas”. A ele não interessa a qualidade desse cuidado, mas a quantidade de pessoas que ele deve “cuidar”. Ele não tem noção, já que é um idiota de carteirinha e sindicato, do valor intangível que um tempo de qualidade dedicado a uma única pessoa tem. Dirá alguém que estou a desmerecer o trabalhador da linha de montagem de carros, ou de aviões, ou de caminhões, ou de qualquer outro bem útil. Apenas tento, justamente, mostrar a gritante diferença entre bens uteis e seres humanos.  
O que quero dizer é que é possível ser produtivo sem ser ocupado, e vice-versa. Conheço uma penca de gente ocupada que pouco ou nada produz. Por exemplo, o sujeito que passa o dia inteiro na rede social a bisbilhotar a vida alheia. Do outro lado dessa moeda está essa “vida alheia” a gastar muito de seu tempo a se expor na rede social. Ou seja, nem um nem outro produz. Dirá alguém que a rede social é um grande outdoor onde se pode fazer marketing gratuito, e é verdade; há muitos que a utilizam para alavancar seus negócios, serviços, produtos. Isso é, obviamente, outra história. Não é disso que estou a falar. 
Há, também, o desocupado cirurgião que assim ficou após realizar seu procedimento cirúrgico e que agora precisa, por força da atuação do idiota, esperar o relógio de ponto bater determinada hora para poder ir embora, fazer outra coisa, atender alguém, ir à praia, sei lá... (Já, já me acusam, com alguma razão, de estar sendo um corporativistazinho de meia tigela. Com alguma razão...) O mesmo se pode dizer do radiologista ao qual se obriga que dê laudos de exames em quantidade maior do que o que é humanamente possível, e por aí vai nas várias outras áreas profissionais da saúde.
Voltemos ao meu amigo Ley. O que queria o homem? Sem rodeios direi – queria falar. Anelava falar. Se não falasse ficaria louco. Pudera. O homem está há quase noventa dias, coitado, trancafiado em casa por ser idoso... O homem não queria se ocupar – queria ser produtivo! Nesses noventa dias se ocupara de tudo e em tudo dentro de casa. Ser produtivo, no entanto, não era possível.
Conversa vai, conversa vem, lá pelas tantas o amigo me faz um relato. Confessava uma incontida felicidade. Não era pra menos. Foi o seguinte.
Um certo querido amigo comum, colega na profissão, saíra de alta do CTI do hospital onde estivera internado vítima do vírus chinês. Surpreso por saber de seu grave acometimento, eu quis saber: –“Mas... ele tinha algum fator de risco”? Na bucha, Ley fuzilou: –“A beleza”! 
O detalhe é que o referido colega é conhecido por sua intensa e assustadora... como direi... “assimetria de formas”. Uso de uma expressão carregada de eufemismo para evitar dizer a verdade indubitável e inquestionável – o homem é feio pra burro. Feíssimo. Feio é apelido. Bota feio nisso.
Bem se vê que a quase loucura de meu amigo afetou em nada seu mordaz senso de humor. Aliás, fazer humor é uma forma de produção. É quase como fazer amor. E disso o amigo há de estar ávido!

segunda-feira, 22 de junho de 2020

VERDADE?

Recentemente quis o destino que estivesse de frente a dois entes absolutamente estranhos. Diria até serem eles imiscíveis, algo como o óleo e a água. Mas... quem são eles? Respondo: – são eles “o entendimento” e “a verdade dos fatos”. O que aconteceu foi o seguinte.
Um amigo, em interessante diálogo com não sei quem, quis lucubrar sobre a possibilidade de “a verdade dos fatos” ter dono. Imaginem.  Ele supôs, em sua “pureza” de amigo que, se o sujeito se acha dono da verdade dos fatos, agirá conforme a autoridade advinda de tal possessão ou, dito de outra forma, agirá conforme seu entendimento. Seria como se... sei lá... aos amigos tudo fosse permitido. (Já estou cá a fazer valer a minha posse da verdade que diz que, sendo amigo, tudo pode.)
 Falando assim parece não fazer sentido o que foi dito ao início. Se o entendimento e a verdade dos fatos são mesmo imiscíveis, então eles seriam mutuamente exclusivos. Daí pergunto: – como, então, pode o sujeito, dono da verdade dos fatos, agir conforme seu entendimento? Bingo! Pois – pasmem! – é exatamente o que acontece.
Não se vai muito longe sem antes se ter o vislumbre da explicação do porquê isso ocorre. Com efeito, ela se apresenta clara como água: – ninguém, agora ou em tempo algum, é dono da verdade, inda mais da verdade dos fatos. A propósito, a expressão “verdade dos fatos” é uma imensa tautologia, um brutal pleonasmo, uma inexorável redundância. Contra fatos não há argumentos, diz a fria sabedoria popular. Falar-se na verdade dos fatos seria como se referir à “verdade verdadeira”. O fato simplesmente é. E ponto final. A pessoa que age baseada em seu julgamento próprio e pessoal nunca estará agindo com base nos fatos, eis a grande conclusão. Dizia Hugh Prather que “o erro é um lembrete de que não estou lidando com os fatos”.
O problema é que viceja por aí a ideia de que cada ser humano, cada um de nós, tem a sua verdade, sendo ela irretocável, inviolável e absoluta. Por aí se vê que, supondo que todos pensem pensamentos de toda sorte, que todos desejem desejos de todo tipo, que todos sintam sentimentos de toda origem e fins pessoais, a suposta verdade de cada um é tudo, menos a “verdade dos fatos”; é tudo, menos a “verdade verdadeira”.
Eu ia dizer qualquer coisa, fazer um comentário imbecil – sou bom em comentários imbecis – mas, arrefeci. Fiquei quieto. No final, só pude concluir o seguinte – a evidência brutal da diminuta e ao mesmo tempo enorme diferença entre a única e irrevogável verdade dos fatos e nossas bilhões de diminutas e insignificantes verdades individuais. Indo além, diria que nossas microscópicas verdades individuais abrigam apenas e tão-somente nossos inflados e pobres egos, na luta para sobreviver. A pergunta que me faço é: – sobreviver a quê? Só posso supor que lute para sobreviver à nossa consciência ou, melhor dizendo, à consciência individual de cada um de nós.
Voltemos ao “entendimento” ou, melhor, falemos dele. Digo, o amigo admoestava o outro sobre o perigo de a verdade dos fatos se confundir com o entendimento pessoal. A conversa carregava algo de alucinatório, algo de imponderável, algo de intangível... parecia uma espécie de delusão verborreica, uma espécie de surrealidade, dado o bizarro daquele momento.
Ora, aquele que se referiu à “verdade dos fatos” quis, claramente, enfatizar seus argumentos, deixar claro não se tratar de uma opinião, de um entendimento pessoal. Baseava-se, unicamente e exclusivamente, nos fatos.  
Tudo isso, esse “palavrório” todo, vem à guisa de demonstrar para onde certos diálogos são levados. Como ele, o diálogo, tem um componente mínimo de dois indivíduos, pode, em determinado momento, a certa altura, passar a ser conduzido por um deles, tendo em vista a perda do fio da meada por parte do outro. Vejamos um exemplo.
Os comunistas. Não, não... Vejam o Carlos Marighella. O que direi sobre este senhor pode, a seguir, ser usado como uma figura de linguagem sobre o comunismo.
Este senhor escreveu um livro, “Manual do Guerrilheiro Urbano”, acessível a quem quiser na rede mundial de computadores, que trata sobre como matar pessoas naquilo que levaria à vitória de sua ideologia na guerra que considerava “religiosa” contra o resto do mundo. Bem dito, uma vez que sua guerra não tem território específico. E tem: – em todo o território do planeta Terra deve ou deveria viger o comunismo. Para quem não sabe – e acreditem: muita gente não sabe – tudo é de todos e nada é de ninguém. Uma ressalva sobre esse “tudo”. Na ideologia comunista esse “tudo” é a miséria geral e irrestrita, escapando dela somente os que perambulam em torno do poder central. Não sei se me fiz entender... Há mais. Aqui não estamos falando de bens materiais somente. Há o principal, o mais importante, a ser subtraído do ser humano – sua liberdade ou a supressão dela. Como há duas liberdades, a física e a não-física – mental, espiritual e emocional –, à supressão do direito de ir e vir se associa a supressão do pensamento e todas as consequências dele, tendo como pano de fundo a miséria endêmica.
É histórico o que aconteceu à população cujo país se deixou dominar por esta nefasta ideologia – os extermínios em massa, os assassinatos em massa antes do grassar da bancarrota econômica e da miséria geral.  Não se trata de uma opinião, minha ou de quem quer que seja – é histórico, repito; são fatos, são verdades levadas a inúmeros tratados e livros por autores de diversas nacionalidades e origens, muitos deles ex-comunistas ferrenhos que se renderam à dura realidade contra a quimera que lhes foi vendida (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/12/os-crimes-do-comunismo-excerto-do.html).   
                Assim, estamos diante de fatos históricos que referendam a natureza assassina e desumana dessa ideologia que, repito, pretende dominar todos os seres humanos da face da Terra. Sim, não há meio termo para comunistas. Para eles só há vida e “direito” a ela no comunismo. Fora isso, resta somente a morte para os “rebeldes”.
                Agora pergunto, a propósito do amigo que inquiria do outro se não seria o caso eliminar o comunista que está em vias de subverter a ordem e já agindo conforme reza sua cartilha: – não seria legítima defesa? A pergunta do amigo era baseada em fatos ou, melhor dizendo, na verdade que se lastreia em fatos. O outro, seu interlocutor, já saiu com a justificativa de que, feito isto, seria um flagrante uso do entendimento pessoal para agir criminosamente tal qual o real criminoso, o criminoso de fato; como se o exercício da legítima defesa tornasse um inocente que reage semelhante em maus bofes ao que faz uso de cartilha que manda odiar o ser humano e matá-lo tão logo tenha a oportunidade.
                Como disse o José de Alencar ao final de “Iracema”, tudo passa sobre Terra, ao que eu completo, numa conclusão nada poética – tudo passa numa cabecinha humana...

sexta-feira, 19 de junho de 2020

VERGONHA SOBRE MIM!

              Detesto que me elogiem. Sou um poço de imperfeições e erros. Por isso detesto quando me atribuem qualidades que não tenho; ou, mesmo que suponham tê-las, que as exponham tão fragorosamente. Já disse uma vez que o elogio é a véspera da decepção. Disse também que a decepção depende de quem as tem. E é verdade. Quem mandou elogiar e esperar tanto? Por isso já há algum tempo, muito tempo, deixei de ser tiete de quem quer que seja. Aprendi cedo a ver os outros como seres humanos, somente. De carne e osso como eu. Imaginem o George Bush sentado na privada com diarreia. Quem seria, então, o George Bush? Seria um mísero ser humano se esvaindo numa cagada. Igual a qualquer um de nós. A diferença dele para nós é que ele tem o poder de apertar os botões. Para os que ainda estão vivos ele é poderoso; para os sobreviventes ele seria um insano, um assassino, um imbecil, um troglodita. Um Hitler. Então, não me elogiem. Não me puxem o saco. A qualquer momento posso falhar.
                Fiquei sabendo hoje que um colega do hospital me esculhambou. Falou mal de mim às pampas. Disse que eu era tudo menos santo. Disse que eu era tudo menos um bom médico. Pensei: ele deve estar certo. Tenho sido um mau colaborador. Tenho sido um péssimo funcionário público. Tenho sido muito rebelde. Não tenho acatado as diretrizes dos gestores. Não tenho sido humilde como o gado à espera do cutelo. Tenho sido impertinente e inadaptado. Admito. Eis meu mea culpa. Sou réu confesso. Tenho falhado reiterada e obstinadamente. Não me puxem o saco os meus doentes sob meus cuidados.
                Sim, os meus doentes, que estão sob os meus cuidados, gostam até de minhas impolidezes e rudezas. Gostam quando lhes digo a verdade e os responsabilizo por suas agruras e maldizeres. São uns loucos. Gostam de me ter como amigo, porque dizem que os repreendo com a franqueza do que ama. Estão loucos, com certeza. Onde já se viu?... E não lhes aborreço com minhas estúpidas brincadeiras, que os divertem e lubrificam nossas relações fadadas ao tecnicismo de meus pouquíssimos conhecimentos da ciência médica. Devo ser um George Bush com diarreia para eles. Eles me presenteiam quando lhes digo que tudo vai dar certo, mesmo sabendo que estou a lhes mentir descaradamente. Eles dizem que acreditam tanto em minhas mentiras que quase ficam curados. Pena que são mortais, e eles ririam de mim se lhes dissesse que jamais iriam morrer nem sofrer. Confesso nunca ter chegado a tanto. Correria o risco de ser processado por falsidade ideológica, ou por propaganda enganosa, ou por negligência. Eles não sabem, mas os sucessos de minhas operações se devem todos à sorte. Todo canalha é sortudo. E eu não sou diferente. Tudo dá certo porque tenho sorte. Se soubesse realmente operar teria qualquer dia uma ou outra complicação. Por isso não aprendo. Prefiro seguir confiando em minha sorte.
                O meu colega que me detesta me desmascarou. Eu sou um embuste, uma enganação, uma farsa. Minha técnica cirúrgica é imperfeita, e minha formação cheia de lacunas e erros irreparáveis. Minhas boas relações com os médicos de branco desta terra foram sempre repletas de interesses escusos de minha parte. Sempre queria lhes subtrair algo, mesmo caindo sempre em suas graças e bebendo de sua fonte inesgotável de saber e sabedoria. Doutor Régis Jucá quase morreu de rir quando lhe contei, durante uma operação, que o filho chegou para seu pai e perguntou: -“Pai, quanto custa casar? E o pai: -“Não sei, filho, ainda estou pagando!” Ah!  Eu estava me locupletando do grande médico e homem Régis Jucá! E não me esquivei de todas as obrigações a mim impostas pelo grande João Evangelista Bezerra Filho, meu chefe na residência de Cirurgia Geral, porque queria lhe peitar. E lia todos os livros e tratados de Cirurgia porque tinha a petulância de o querer imitar... Fui um estúpido subserviente: obedecia à risca a tudo o que meus mestres em Cirurgia me mandavam. Fazia isso por fingimento e sonsice. Eu queria apenas me projetar, ser um puxa-sacos, ficar em evidência, satisfazer minha vaidade incontida. Escondia ainda minha petulância e arrogância que meu colega, o que me detesta, acabou por desmascarar.
                Minha canalhice é tamanha que pretendi questionar o funcionamento de hospital tão exemplar como aquele em que labutamos. Minha arrogância chegou ao ponto – imaginem! – de eu ter consultado o Conselho Regional de Medicina do Estado na tentativa torpe de entravar práticas tão cristalinas de medicina de primeiro mundo. Tentei – meu Deus, eu não presto mesmo – destruir tudo, todas as rotinas, protocolos, algoritmos, enfim. Eu queria, e ainda quero, que este hospital não funcione. Quero que ele deixe de ser essa grande casa de saúde, onde se pratica a melhor medicina do Estado, e se transforme em... sei lá! uma grande Babel da ciência médica. Tornou-se meu propósito desfazer anos e anos de melhorias e excelência médica. Passo horas, dias, semanas, anos, atentando contra a vida através de meus embustes e sabotagens dentro daquela unidade de saúde comprometida com a melhor prática médica. Pensei inclusive – vejam como sou nefasto! – que se poderia tirar o hospital do controle dos gestores municipais - homens íntegros, sérios, comprometidos com a manutenção da instituição no mais elevado grau da prática médica corrente – e colocá-lo à mercê de interesses de políticos safados, mentirosos e venais para a realização de seus projetos de poder. Já vislumbrava para mim um cargo vistoso e poderoso, em minha ânsia de meus planos inconfessáveis agora descobertos. 
                A mim nada mais resta a não ser a execração perante meus pares e a sociedade. Temo pelos meus pais, ainda vivos, face ao desgosto de tão dolorosa descoberta, a de um filho farsante por quase quarenta e sete anos. Temo pelos meus filhos em busca de exemplos, ante o vazio que se lhes abriu sob os pés. Ainda assim fiz um bem. Involuntário, é verdade. Se pudesse não o faria. Aos acadêmicos do curso de medicina. Eles são a esperança de que esta casa de saúde e similares jamais se deixarão transformar e mudar seu rumo por influência tão deletéria como a minha. São eles a garantia de que tudo permanecerá como está. A virtude do modelo seguirá intocada, para o bem dos nobres de caráter que lhe seguem e do povo que lhe faz usufruto. 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

RESPEITE PELO MENOS O POBRE HOMEM...

Pediu licença para sair. Um paciente reclamava sua presença. Almoço em família, vida de médico.
            Dali a pouco chegava ao hospital. Comprara um desses rechonchudos sanduíches que têm de tudo. Não era para ele, era para a pequena.
Ela saiu ao seu encontro tão logo ele chegou.
Abraçou-o com força e o beijou na face. Não se apartaram até que ele, num gesto de pouca força, empurrou-a de si. Se não mais queria o romance, por que o abraçava? Ele viera porque batera uma saudade imensa. O sanduíche era a desculpa.
Entrou no carro e se foi de volta ao almoço.

                                                                                   ***
No quarto o telefone tocou. Era ela. “Espera que te ligo já”, e terminou de se vestir.
Foi para a varanda com o telefone portátil. Dizia: -“Não me ligue mais, por favor.” A paisagem era deslumbrante.
“Foi você quem desmanchou, não me procure mais. O sanduíche foi só pra te ver pela última vez”.
Desligou.
Virou-se para entrar na sala. A mulher estava parada atrás de si ouvindo a conversa.

                                                                      ***
Chamou os filhos e lhes contou da amante do pai. Dali em diante a vida se tornou um inferno. As filhas queriam agredi-lo. O filho do pai escarnecia dia e noite.
O diabo é que dali a alguns dias viajariam todos juntos, mais a outra parte da família. Eram cunhados, concunhados, sobrinhos, uma torcida inteira. E, já tudo pago, não havia como desistir.
No aeroporto desenhou-se o que o esperava nos dias vindouros – ninguém lhe dirigia a palavra. Os outros perceberam, e a mulher não escondeu seu drama: -“Vocês não vão acreditar! Esse cachorro está me traindo!”
Foram dias difíceis em terras estrangeiras. A família ia para um lado, ele para outro. Quando voltasse tinha uma operação a fazer. Ele era o paciente.
(Mal sabia que Caronte apenas esperava a levá-lo a maiores profundezas.)

                                                                                               ***
De volta ao lar, a mulher não perdia uma oportunidade de sabatiná-lo. Ao princípio tudo negara. Até que resolveu assumir: –“Sim, é verdade!”
Tolo engano esperar uma trégua. As sabatinas só pioravam. Contara tudo nos mínimos detalhes, mas de nada adiantou. A mulher não lhe cria numa só palavra. Era um mentiroso!
(Caronte atracara o barco e o convidava a subir.)

                                                                                            ***
Antes de baixar ao hospital escondeu os telefones portáteis. Temia que a outra, a enfermeira, ligasse para saber como estava, ou que lhe fosse acompanhar durante a operação.
Acordou dos sedativos na companhia da mulher e da cunhada.
Com a visão ainda turva devido às drogas pôde perceber a mulher a segurar os telefones que escondera.
Ali mesmo, no apartamento do hospital, o homem ainda padecendo de dores e drogas pós-operatórias, e a mulher a gritar com o dedo em riste: -“Canalha! Manda essa vagabunda parar de ligar!”
A cunhada, comprando a briga da irmã, fuzilou: -“Bicho sem-vergonha!”
Com a voz a um decibel do inaudível, suplicou: –“Respeite pelo menos minha cirurgia...”
Não teve jeito: -“Cachorro safado!” E emendava: –“Pulha!

                                                                                   ***
No segundo dia após a operação, à visita do cirurgião que já lhe assinava a alta, implorou: –“Me deixa aqui mais dois ou três dias!” Nem pensar! Está tudo bem e vai para casa já! Não era porque era médico que deixariam interferir na rotina.
Seria possível que a mulher e os filhos lhe dessem o mínimo de paz em casa? Nada lhe restava a não ser nutrir o mínimo de esperança... e a sonda pendurada na piroca a lhe drenar a urina sanguinolenta.
Menos dor, mais ânimo.
Levantava-se a ir ao mictório e, súbito, ainda com ardência e sangue, entrava a mulher chutando a porta: –“Cabra safado! Postema! Sacana!”, ao que ele retrucava num humilhante rogo: –“Respeite pelo menos minha hematúria...”

                                                                                   ***   
Tudo se resolveu quando alugou apartamento e mudou.
É uma paz... é um silêncio...  É o céu em vida.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

A DOENÇA QUE MATOU AS DOENÇAS

          “Robert Liston era a faca mais rápida do West End, em Londres. Podia amputar uma perna em dois minutos e meio”.
Assim começa o Capítulo 1 – Nocaute Triplo – entusiasmo cirúrgico desastroso de OS GRANDES DESASTRES DA MEDICINA, de Richard Gordon, também autor de A ASSUSTADORA HISTÓRIA DA MEDICINA.
                Fui reler isto a propósito de alguns desastres da medicina atual, em particular um quase-desastre que quase leva à campa uma pessoa próxima. Devo dizer que este é um quase desastre, ou pode assim ser chamado, por não ter resultado o pior para o paciente. Nem por isso houve menos sofrimento. Quase-desastre, neste exemplo específico, seria, de fato, um enorme e cruel eufemismo, já que fere um dos mais elementares princípios hipocráticos que manda ao médico “curar às vezes, mas confortar sempre”.
Sim, não se enganem. O leigo, em seu laicismo de leigo, pensa leigamente que sabe tudo o médico. Esquece o leigo que de quase nada sabe o médico. Em seu O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMÔNIOS, de 1995, Carl Sagan propõe que a ciência seja vista como uma velinha que queima ao centro de uma infinita escuridão. Ou seja – de nada sabemos e, em particular, de nada sabe o médico. Por tudo isso e muitas outras coisas mais é que deveria o médico cada vez mais, em seu crescente e contínuo obscurecimento, sair ao encontro do princípio correto e confortar.  Sim, confortar não requer diploma, não requer esforço mental. É preciso apenas alteridade e empatia.    
Eu ia sugerir, já agora, que o médico, todos os médicos, se ajoelhem e, de cabeça baixa e coração contrito, confessem sua completa ignorância. Sim, é grande, é fenomenal, é imensurável todo o desconhecimento. Ia fazer tal sugestão ao final, no arremate, nas conclusões, mas há um nó na garganta, um “sapo” querendo descer-me ao íntimo do ventre, e não pude me conter a fazer o pretenso inusitado convite.
Vejam, por exemplo, este senhor, Sir Robert Liston – nem sei se Sua Majestade assim o intitulou, remetendo-o à nobreza –, seus atos e respectivos resultados. No tempo em que o tempo cirúrgico era de suma importância a fim de abreviar o sofrimento do paciente – “podia-se escolher entre embriagar-se com ópio ou rum, ou morder um pano enrolado em bastão” –, ele era um dos ases da cirurgia europeia. O que ocorreu em seu terceiro mais famoso caso, no relato do senhor Gordon, diz muito:
Discussão com seu residente. Aquele tumor vermelho e pulsante no pescoço do garoto era um abscesso na pele? Ou era um perigoso aneurisma da artéria carótida? “Ora!”, exclamou Liston impacientemente. “Quem já ouviu falar de um aneurisma em um garoto tão jovem?” Tirando rapidamente um bisturi do bolso de seu casaco, ele o puncionou. Nota do residente: “Jorrou sangue arterial, e o garoto foi-se.” O paciente morreu, mas a artéria está viva, no Museu de Patologia do University College Hospital, objeto número 1256.
Não fosse a inexorável falibilidade de cada um dos médicos, diríamos que tal conduta foi um assassinato legitimado sob o manto de um ato intencionalmente terapêutico de resultado desastroso. É bem possível que tenha sido com essa ideia que o senhor Richard Gordon intitulou seu livro – desastre...
A senhora idosa chegou ao hospital por ter tido em casa o que o meu querido professor Oto Leal Nogueira chamaria de “uma síndrome cólera-like”. Após uma espera aparentemente interminável, veio “sua sumidade”, o médico. (Estou sendo injusto. Era um jovem cuja inscrição no conselho da classe me fez ter o seguinte pensamento – formou-se ontem.) Foi amável, conversou, explanou, examinou minimamente, e aqui teve início o quase desastre. Tendo em vista a pandemia do vírus chinês, só pensou segundo a clínica do vírus chinês, e o exame físico se limitou à ausculta do tórax com a paciente sentada à cadeira de rodas e vestida em seus vestidos amarfanhados de quem saiu às pressas do conforto do lar.
Os exames complementares seguiram todos a hipótese “mandatória” do vírus chinês como agente etiológico. Exames caros, em aparelhos complexos que fornecem imagens deslumbrantes, foram desnecessariamente solicitados sem, contudo, evidenciar o que tanto aqueles jovens médicos queriam encontrar. A gastroenterite desidratante com seu distúrbio hidroeletrolítico associado não se fazia “ouvir”. Tinha que ser, precisava ser, necessitava ser, era imperioso que fosse o vírus chinês. E nem um tratamento de reposição à altura, mandatório naquela situação, foi iniciado. A bem da verdade, não se aventava interná-la. Por quê? Ora, cada vez mais ficava claro – não era o vírus. Ali, naquele hospital, só os doentes do vírus estavam realmente doentes.
Paro por aqui. Digo mais apenas o seguinte – a internação só foi levada a cabo como resultado de uma pressão da família. Arrisco dizer – não fosse isso ela teria sido mandada para casa. Sabe-se lá o que poderia ter acontecido. Nunca saberemos. Ex ante se toma uma decisão; ex post se julgam seus resultados. Nunca se pode avaliar os resultados de uma decisão que não se permitiu tomar. Mas, naquele hospital, tentaram corromper princípios seculares da boa prática médica – queriam porque queriam que a clínica se curvasse ao vírus que matou todas as outras doenças.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

SOBRE O SOLDADO QUE TEME A MORTE

O amigo Gaudêncio me escreveu para dizer que seu prazer ao ler meus textos era o de quem bebe um bom vinho. Digamos... um Chianti de três mil reais. (Olha que o real tá valendo uma merreca...) Fez, entretanto, uma ressalva para o que escrevi mais recentemente em  https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2020/05/nada-mais-nada-menos.html. O momento, para ele, é de impaciência. Segundo ele mesmo, está “impaciente com ‘palavrórios’”. Por isso o referido texto lhe suscitou o sabor de uma... Sukita. Aos que não sabem, a Sukita foi um refrigerante muito apreciado não me lembra exatamente em que tempo, até os dias de hoje, creio... De qualquer forma, a Sukita é doce, dulcíssima, do tipo que acalma o que anseia por um prazer que sossegue os nervos, como parece ser o caso de meu amado amigo. O que esqueci de indagar ao amigo foi o porquê dessa impaciência. Terá sido a prolongada permanência em domicílio?  Parece-lhe o futuro deveras obscuro com a história da pandemia? Não importa. O fato é que o homem está lá, impaciente a não mais poder. Mas há pior e, repito, há pior nessa história – acusou-me de ser o culpado por sua parageusia, como se fosse eu o culpado de sua aversão ao “palavrório”... A quem culpar se o sabor de um bom vinho se deixa ultrapassar pelo sabor de uma reles Sukita? Ora, bolas... De volta, a título de vendetta, lhe diagnostiquei uma coronavirose chinesa implacável! Ora, bolas...
                Como sujeito curioso que sou, saí a me indagar e a querer saber – que diachos seria um palavrório? Uma oportunidade de ampliar o vocabulário da língua madre jamais deve ser perdida. Assim, fui aqui no pater asini pesquisar e eis que encontro o seguinte sobre palavrório: conversa para enganar ou convencer; lábia; discurso inútil ou aborrecido; palavreado... Ao me deparar com tais sinônimos, tomei-me assaltado por divertido horror. E por quê?
                Sei lá... eu estava para justificar, ou explicar o que já está explicado lá no texto. Mas, desisti. Sim, desisti. Dirá o resto da gente algo mais sobre o palavrório. Afinal, já externei inúmeras vezes a impressão de que quem escreve põe a cara a tapa.
A vida, a aventura da vida só vale a pena quando se arrisca a própria pele. O planeta está cheio de pessoas que tomam decisões cujas consequências maiores não recairão sobre elas. Em outras palavras, pessoas que tomam decisões cujas consequências funestas recairão sobre terceiros, sobre populações inteiras, às vezes, muitas vezes, milhões de pessoas. Aproveitam-se da vulnerabilidade das massas, de sua comodidade, de sua opção pela irresponsabilidade. A responsabilidade, ou seja, a capacidade e opção por responder à altura às demandas mais urgentes e importantes da vida em sociedade implica num massacrante, brutal, corajoso e irremediável comprometimento com nossos maiores e mais essenciais princípios e, doloroso dizer, poucos estão dispostos a tal missão. Ou, ainda, muitos não dão a mínima para essa história de princípios.
                 Só agora percebo que estou a devanear, a misturar alhos com bugalhos e o amado Gaudêncio há de achar que estou me agastando com ele, o que não é o caso. Concluí que a Sukita do amigo há de ser o Chianti de outrem. Se a impaciência chegou para alguém, a lição estará na contracapa do livro da vida.
                O que é que eu queria mesmo dizer? Ah! Lembrei! Ou, por outra, o que lembrei com a história da impaciência do amigo foi a conversa que tive com um outro querido amigo, empresário de sucesso, conhecedor da e ativo na estirpe empresarial deste famigerado Estado do Ceará. O amigo circula entre gente de peso, gente que emprega milhares de pessoas, gente a quem não faltam recursos. Eu, na conversa, queria saber – por que essa gente, esses poderosos que têm recursos, se abstêm de seu poder quando estão aptos a montar uma equipe de peso, de qualidade? pesquisadores da área de saúde, epidemiologistas e infectologistas que façam uma análise séria do que está a ocorrer propondo, com responsabilidade, alternativas para o enfrentamento da pandemia sem prejuízos de vidas, mas que, simultaneamente preserve o viço social e as relações de trabalho? cujos dados possam ser contrapostos ao governo do estado, portador de infindáveis conflitos de interesses, e demonstrar que estão ativos e vigilantes? Por que, meu amigo, – lhe indaguei – essa gente, com base nos pareceres abalizados desses cientistas, não disponibiliza um sistema de informações independente, um jornal, uma revista, livres de conflitos de interesse, diferente da famigerada imprensa cujos interesses são sobejamente conhecidos, com total dependência dos anúncios do governo, e divulga de forma lícita, independente, correta, ética, como diria alguém, informações para a sociedade que contradigam o que está a dizer a autoridade repleta dos referidos conflitos de interesse ? Enfim, por que esta elite não se descola do governo? Por que se alinham com a desgraça pública? Por quê? Por quê? Por quê?, eis o que me pergunto obstinadamente.
                O amigo, acabrunhado com minha insistência, respondeu, com a vergonha estampada na voz – "porque não querem contrariar o senhor governador...”
                Nada poderia descrever meu horror diante de tão contundente resposta. Nas palavras da elite empresarial do Estado estava tudo explicado.  E não querem contrariá-lo porque, em suas mentes, o poder vem de cima e não de baixo... porque o poder não vem deles, mas da autoridade lá colocada por um sistema “democrático” em que o povo vota. Eles, que não se consideram parte do povo, não querem se indispor... vai que precisam de algo no futuro, algo que só a autoridade máxima resolve... 
                Ora, se o empresariado, reunido em instituições que defendem seus interesses, tem em sua mente que o governo vem de cima e não de baixo, que dirá o periférico habitante desta miserável cidade, desse miserável estado. Se este empresariado se presta a reprimir no próprio seio de suas associações seu potencial de voz e de atuação social, que dirá o pobre e periférico "cidadão" desta combalida cidade, deste combalido estado. Com esta atitude e, pior, com este pensamento decretam a absoluta subserviência da sociedade ao que faz o poder que já nem digo "público" e muito menos "privado", mas ao poder absoluto do governador, falsamente referendado por um legislativo já conhecidamente subserviente em tempos "normais".
Concluí com imenso pesar que não há saída para nós, cidadãos supostamente "pensantes". Se as ruas se tornaram inacessíveis para estes cidadãos diante das intermináveis canetadas do senhor governador travestidas de boas intenções para com a saúde pública, não há nem mesmo esperança nas redes sociais. Sim, porque tudo que corre na rede são intenções e informações. A vida pública sempre se resolveu e sempre se resolverá nas ruas e avenidas ora vazias. Os soldados declararam seu temor à morte e à guerra. Negam- se a ir ao campo de batalha. E um soldado que teme a morte não é um soldado — é um covarde.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

NADA MAIS, NADA MENOS

Outro dia escrevi sobre muros e crianças. Sobre muros que não detinham crianças (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/10/criancas.html). Foi sobre o tempo em que éramos tão livres que queríamos invadir os espaços fechados. Pura curiosidade. Pura vida de criança. Aos dias de hoje parece ocorrer o oposto. Ou, melhor dizendo, não ocorre o oposto. Seria o oposto se as crianças de hoje, trancadas em espaços fechados, ousassem romper o que as impede e ganhassem as ruas de pedra, os terrenos baldios, os quintais... Mas, não... Não há mais ruas de pedra, nem terrenos baldios, nem quintais... Só há o medo.
Ainda assim, e por tudo isso, talvez, as crianças chegavam a ser cruéis. Por exemplo, o que podia ser capturado como estereótipo em qualquer um de nós se resumia num ”carinhoso” apelido. Bem... muitas vezes, quase todas, não eram os estereótipos, mas algum traço físico relevante ou extraordinário o que estimulava os coleguinhas a nos apelidar. Afinal de contas, crianças não tiveram tempo para se deixar estereotipar. Ainda. Crianças são vítimas dos caprichos da natureza e da malícia de outras crianças. Sim, isso mesmo. Uma parte elas não é vítima de coisa nenhuma – em tenra idade já demonstram uma malícia que deveria ser preocupante... para a sociedade.
(Estou aqui a ponderar... Falo, não falo; falo, não falo... Decidi: – vou falar. A única coisa que se leva à campa é a tralha do que vai virar pó.)
Certa feita um coleguinha me pôs um apelido muito carinhoso. Alcunhou-me de Cadáver.  Vejam que coisa pavorosa – Cadáver! Muito magrinho e pálido, ele, já na idade da malícia de alguns, via em mim todas as características de um corpo sem vida. Cadáver. (Escrevo com maiúscula porque apelidos são escritos com letra maiúscula. Vejam aquele garoto cuja cabeleira tem cinco fios, amigo da Mônica, personagem do Maurício de Sousa, o Cebolinha. Se escrevo com minúscula corro o risco de alguém pensar que me refiro à planta.) Nas conversas era Cadáver fez isso, Cadáver fez aquilo; Cadáver joga de centroavante, Cadáver fez um gol; e por aí vai...
Tanto não havia estereótipos que mudavam os apelidos caso mudassem os traços físicos. Depois de colocar um aparelho ortodôntico, a coisa mudou – era Boca-Rica; ou Sorriso Metálico. Antes do aparelho, como os dentes se projetassem muito à frente, outro apelido – Elefante. Este último “pegou” menos, já que era enorme o contraste entre meu mirrado físico e o porte do animal. Moreno, um coleguinha que àquela época já parecia mais crescido em malícia que as demais crianças – vejam que Moreno já é um apelido – me veio com a pecha de Gambá. Tudo porque, certo dia, as coleguinhas do bairro colaram-me à testa um pequeno adesivo para “referendar” meu pertencimento aos amiguinhos do bairro e, voltando eu ao colégio marista com outro adesivo semelhante ao dia seguinte, concluiu que eu não havia me banhado. Assim, para ele, eu seria semelhante a um gambá, o bichinho que exala forte odor quando se vê ameaçado e não porque seja imundo. Paciência. As crianças às vezes são cruéis em sua ignorância muitas vezes travestida de inteligência.
Mas, por que é mesmo que estou contando tudo isso? Ah! Lembrei. Foi o seguinte.
Escreveu-me o Sérgio Moura – ou foi o Bacana? – não lembro... para dizer que nossa geração havia fracassado. Ora, imediatamente me lembrei do que o Nelson disse certa vez:
“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo – a nossa”, disse ele.
Diz o sábio que “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”. Será que nosso suposto fracasso significava que essa geração havia feito – ou não feito – algo diferente do que outras fizeram antes e isso teria determinado nosso fracasso? Bem, não parece ser isso, já que diz mais o sábio e estou humildemente inclinado a lhe dar razão:
“Haverá algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’? Não! já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época”.
Assim, se não se faz nada de novo, se não há nada de novo, se tudo que já foi feito está fadado a se repetir sem nenhuma “inovação” – a tecnologia não muda a essência – então nada de novo fizemos ou deixamos de fazer, o que invalida a hipótese de que fracassamos. E o que fizemos, digo, o que faz repetidamente o bicho-homem? Ora, assassinar, roubar, injuriar, caluniar, humilhar, onerar, adoecer o semelhante – sim! adoecemos os outros! –, litigar, enganar, mentir, trair, apunhalar... e por aí vai. O que deveria ter dito ao Serjão ou ao Bacana, não me lembra bem, é que não, nossa geração não fracassou. Não há nenhum fracasso. O que há o ser humano. Por outro lado, fosse vivo o Nelson lhe escreveria para humildemente lhe dizer, lhe lembrar que não há a época “doente mental”, nenhuma época foi “doente mental”. O que há é o ser humano, repito. E só. Doente mental é o ser humano. Nada mais, nada menos.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

DESCULPEM, MAS NOVAMENTE O PÂNICO...

       "Na academia não existe diferença entre o mundo acadêmico e o mundo real; no mundo real existe". (Nassim N. Taleb)


      Não tem jeito. A rede social é o palco da vida moderna. Por conta disso, farei o seguinte. Doravante não mais farei nenhuma distinção entre o que é ou foi real, e o que é ou foi virtual. Dito isso, aqui vai o fato. 
      Outro dia tornei público o seguinte pensamento, me dirigindo à agência Reuters e depois publicado noutros sites: "Não sei por que razões as agências de notícias, quase todas, não publicam os dados científicos sobre os quais o Presidente da República se apoia para declarar sua defesa do término dessa palhaçada do isolamento social. Estudiosos de peso, médicos infectologistas, têm dito que isso não se presta ao que se destina e dão lá as evidências. Inclusive aqui, ninguém cita isso. Quase toda a mídia está se deixando levar pelo pânico injustificado. Ou por pura incompetência, ou por safadeza mesmo. As evidências também têm mostrado que esta última hipótese é a bem mais provável... E nem falo da evolução notória do tratamento da doença em pacientes gravemente acometidos. Parece que estamos ao início do pânico. Nada veio de bom. Façam jornalismo informativo. O resto é canalhice. Inclusive a omissão." 
      Ora, dizia Nelson Rodrigues que "a maior desgraça da democracia é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade." Para sermos o mais justos possível, vejamos o que diz o pai dos burros sobre "idiota": estúpido, imbecil, otário, que ou o que denota falta de inteligência; fácil de ser enganado. Bem, parece que a maioria de nós é fácil de ser enganada, segundo o NR, o que me leva a pensar que a mídia sabe muito bem disso e se utiliza desse fato para fazer vicejar o pânico.
      É sabido que a mídia é pê-agá-dê em montagem de discursos e reportagens cuja mensagem é a que ela, a mídia, quer passar, e não o fato real, aquele baseado em todas as informações disponíveis. Há toda uma técnica utilizada para isso, o que se pode concluir através de uma fina e perspicaz análise desse discurso. Se a maioria de nós é fácil de ser enganada e temos inúmeros interesses escusos em jogo, defendamos nossos interesses à custa do pânico, hão de conjecturar. Este pode muito bem, e portanto, ser a nuvem de fumaça que se utiliza para embaçar visões que se consideram a si mesmas a própria perfeição. Sua utilidade é politicamente incontestável. Dolosamente, negligentemente ou ainda uma associação de ambas — que chamei de negligência dolosa — a história da pandemia terá desdobramentos que a história — o tempo — há de desvendar. Como disse Nassim Nicholas Taleb em seu fantástico "Arriscando a própria pele", " o único juiz efetivo das coisas (ideias, pessoas, produções intelectuais, modelos de carros, teorias científicas, livros, intencionalidade ou negligência em criação de vírus, etc. ) é o tempo". 
      Não entremos a deslindar o porquê de a maioria de nós ser fácil de enganar. Recentemente falei sobre nossa natureza irracional, demonstrada tão brilhantemente por Dan Ariely, ao contrário do que orgulhosamente pensamos. Muito menos comentemos sobre as conclusões de Andrew Lobaczewski em seu "Ponerologia", a nova ciência cujo objeto é o estudo do mal. Imaginem aí o caldeirão onde se mexe esse espesso caldo: um número estupidamente alto de pessoas fáceis de enganar, a maioria — no mínimo metade mais um —, à mercê de um número absolutamente não desprezível — cerca de 1% da população — de psicopatas. Alguém dirá que esse é um pequeno número, desprezível e sem efeito na realidade dos fatos e citarei alguns poucos exemplos de conhecidos psicopatas: Josef Stálin, Vladimir Ilyich Ulianov, vulgo Lenin, Adolf Hitler, Mao Tse Tung, Ted Bundy... Há mais, muito mais. Fiquemos apenas com estes. 
      Seria possível supor os destrutivos, mortais e amplos efeitos que estes solitários senhores causaram em decorrência de suas crenças e ideias nefastas? Aos que estão a ponto de exalar o clichê que reza que "os vencedores escrevem a história", direi que a história ainda não acabou, porquanto tais crenças e ideias ainda estão a se propagar mundo afora e ainda a encontrar simpatizantes do mesmo naipe e entre os fáceis de enganar. Bem se vê que ideias, esses entes tão abstratos e etéreos, em muito se assemelham ao tal vírus cujo "pico de incidência" tarda, cada vez mais, a chegar esmagando os já parcos recursos hospitalares locais e alhures. 
      Foi no esteio de tudo isso que fiquei assim como que "abestado" quando li o comentário de um conhecido se referindo à minha publicação. Disse ele: "Triste ver um cara bom com uma visão tão restrita, uma pena". Ora, minha publicação tenciona justamente realçar a necessidade de se abrir o olho para o que está posto por nossa mídia-lixo. E o tal fulano me sai com essa pérola... Em nada me surpreende. É de conhecimento geral que a cartilha dessa gente reza, como técnica de seu discurso, acusar o adversário daquilo que eles mesmos são, acusar os outros de fazer o que eles mesmos fazem. Assim, fico aqui com minha cegueira, enquanto fica ele lá com sua visão 3D, 20 por 20, de 360 graus. 
      Em todo caso, estou aqui agendado para marcar uma consulta, tão logo acabe o tal "isolamento", com meu querido amigo Héverson Paranaguá da Paz, oftalmologista de primeira linha, a fim de me avaliar a vista. Sim, porque, segundo este senhor, meu campo de visão está restrito. Enxergo como um míope astigmático cuja ptose palpebral quase não lhe permite deixar entrar a luz exterior. 
      Outro dia foi um amado e querido amigo-irmão, o Gaudêncio, que me diagnosticou visão "turva", e isso sem falar no amigo psiquiatra Danúzio Carneiro, que me alcunhou de "abestado", justamente como me senti ao ler o comentário acima. Segundo o Danúzio, minhas análises políticas seriam destituídas de "fôlego teórico", o que, para bom entendedor, significa que o mundo real precisa, necessita, almeja, anela e não sobrevive sem uma penca de teorias que suportem trinta a quarenta minutos debaixo d'água. Devo dizer, inevitável é: o amigo Danúzio é um comunista de carteirinha e sindicato e, assim como todo comunista que se preza, adora teorias e filosofias onde surfa suas sandices absolutamente fora do mundo real. 
     Em todo caso, concluo que é imperioso manter vigilância sobre si mesmo "com a mente esperta, a espinha ereta, e o coração tranquilo", a fim de se auto-dignosticar não a visão turva, não a visão restrita, não as etéreas ideias cuja materialização no mundo real fosse insano e trouxessem mortes e miséria; mas a própria capacidade de não se deixar pensar com base nos fatos e no mundo real e, principalmente, não pensar com a manada. Diz o chavão que "quem pensa com a manada não precisa pensar". Eis aí tudo — nunca, jamais, em tempo algum foi tão necessário pensar. Aos dias de hoje, mais do que em qualquer tempo, quero crer, pensar é uma necessidade vital e imperiosa.

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...