segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

RELATIVIZAR - A NOVA FORMA DE BURLAR

           "Eu nada seria sem minhas obsessões" (Nelson Rodrigues)


           Relativizar é, bem no popular, o que há aos dias de hoje.

Não sei se somente neste derrotado país ou se também no resto do mundo. É possível que em algum outro país o mesmo ocorra. Sabe-se lá... Einstein abriu a janela da relativização com sua teoria? Sabe-se lá... A teoria física nem de perto tem as mesmas implicações da relativização de que falo. A do físico alemão surgiu da “compreensão progressiva de que dois referenciais diferentes oferecem visões perfeitamente plausíveis, ainda que diferentes, de um mesmo efeito”. O palavra-chave aqui é referencial.

Pois a relativização de que falo pretende e, de fato, atua levando-se em conta, quando da aplicação de regras e leis, o sujeito sobre o qual incide a possível pena ou ônus. Como exemplo amplamente conhecido, a relativização no Brasil, ainda que muitas vezes seja implícita, outras vezes é tão explícita quanto uma cena de sexo de filme pornô. A lei maior (?) reza que todos são iguais perante a lei (Artigo 5º). Está lá para quem quiser ver.

Ocorre que não é bem assim. Os membros do parlamento, no Brasil, são considerados uma exceção – eles têm a famigerada imunidade parlamentar e não podem ser processados criminalmente. Eis aí a mazela. Há outras, muitas outras. Nem falemos dos privilégios dos quais esta “casta” goza. Não só no parlamento, mas também nos altos escalões do poder judiciário e, principalmente, nos altos escalões do poder judiciário.

Pergunto: o que é tudo isso, afinal? Respondo – isso é a relativização posta em prática tão explicitamente quanto possível, que nem cena de sexo de filme pornô. Mas não fica por aí.  Essa relativização vem como exemplo a ser seguido em menor escala ou, melhor, aqui em baixo, na arraia-miúda. O que essa arraia-miúda não percebe, ou percebe e não liga, é que nesse filme pornô ela é o ator que está sendo currado. Vejamos, a título de exemplo, o caso horripilante que relatei sobre o que está a ocorrer com os clientes da Unimed Fortaleza (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2020/12/imposturas-ii-nem-tudo-o-tempo-resolve.html).

Dirá alguém que exagero, que estou a encher linguiça, que estou a perder meu tempo com pouca coisa. Será? Ora, fere-se diariamente, há anos, o estatuto da cooperativa prestadora de serviços de saúde Unimed Fortaleza, num criminoso acumpliciamento entre gestores e cooperados da mesma a fim de, utilizando uma prática ilegal à luz de seu próprio estatuto, majorar o valor da consulta médica paga a seus cooperados, hoje a irrisória quantia de R$ 80 (oitenta reais) brutos. O que acontece é o seguinte – os médicos cooperados, alguns deles, uma parte considerável deles, está cobrando valores de seus clientes à guisa de uma consulta médica, uma consulta “particular”, o que explicitamente é proibido por seu estatuto em seu Capítulo III, Artigo 7º, item I.

Mas... onde está a relativização nessa tétrica história? Simples – o cliente, quando da solicitação de reembolso dos valores indevidamente cobrados à mesma Unimed Fortaleza, tem, via de regra, seu pedido negado com base nos argumentos mais risíveis possíveis. São risíveis porquanto, para lhes proferir, se utilizam da ampla relativização. Em nenhum momento os auditores, figuras médicas que avaliam esses pedidos, se referem à parte do estatuto que proíbe tal prática. Pois por óbvio, já que estão fazendo vista grossa ao verdadeiro problema.

O referencial dessas pessoas quer ser tão móvel quanto o da teoria da relatividade com a diferença de que, naquela, as visões são plausíveis enquanto aqui, na história da Unimed Fortaleza, uma regra é uma regra, uma lei é uma lei e não seria possível relativizar seu cumprimento sob pena de ela virar pó. Pois é justamente o que está a ocorrer com a regra no estatuto da Unimed Fortaleza que proíbe a cobrança de consulta particular por parte de um cooperado no atendimento ao cliente pagador de um plano de saúde da Unimed Fortaleza. Bem se vê que a moda da relativização se explica – ferir a lei ou ferir a regra de forma cínica e criminosa. No caso, são dois os ilícitos – o do cooperado por cobrar e o da cooperativa por não reembolsar o cliente lesado e/ou punir o médico infrator.

Engana-se quem pensa que isso é tudo. Há outro agravante na conduta da cooperativa ao negar o reembolso a seus clientes. E por quê? Ora, os ”auditores”, ao negarem o reembolso, muitas vezes sugerem que o cliente troque de médico. Sim! a cooperativa sugere que o cliente de um médico cooperado que cobra “por fora” procure outro, também cooperado, que não cobre! Pasmem! Não fosse trágico seria cômico... O agravante, entretanto, não está aí. Vamos a um exemplo.

Imaginem um parto em que o obstetra trabalha rotineiramente com toda uma equipe. No parto está lá um(a) pediatra neonatologista para dar assistência ao bebê tão logo ele nasça. Ele(a) é cooperado da Unimed. Nada cobra. Numa visita à mãe, ainda no hospital, pede que lhe leve a criança no consultório dali a dez dias para uma consulta.

Dez dias depois a criança vai ao consultório com os pais para a consulta. Nada é cobrado, mas os pais já tomam conhecimento que a próxima consulta, dali a trinta dias, será “particular”. Uma relação médico-paciente na pessoa dos pais do recém-nascido é estabelecida. Os pais não querem procurar outro médico. Na solicitação do reembolso, recebem o indeferimento da Unimed sob a “justificativa” de que “os pais deveriam ter ido a outro médico”. Em suma, e para não encher linguiça como alguns irão sugerir, a cooperativa de médicos Unimed Fortaleza julga a relação médico-paciente uma bobagem, coisa à toa, “estória pra boi dormir”.

E como esta existem centenas de “estórias pra boi dormir” protagonizadas pela cooperativa Unimed Fortaleza.

(Alguns dirão que repito em demasia o objeto de minha indignação “Unimed Fortaleza”, e é verdade – repito. Mas, esclareço: é uma necessidade. Acredito piamente que o agredido deixa crescer em seu íntimo uma certa obsessão pelo seu agressor, como se ela, essa obsessão, os mantivessem ligados enquanto a relação perde-ganha se mantiver. Vejam que, aqui, ganhar e perder é apenas o indicativo de que uma regra ou lei foi violada sem a devida punição ou correção do infrator. Ao agredido só resta uma alternativa: lutar. Como diz um chavão, não é porque todos fazem que algo está correto. Estou quase a sugerir a criação de um grupo das centenas de clientes da Unimed que foram lesados a fim de ajuizar uma ação conjunta ou coletiva contra esses descalabros.) 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

IMPOSTURAS II - NEM TUDO O TEMPO RESOLVE

                 Não me lembra a última vez que comentei algo sobre a Unimed Fortaleza. Faz tempo, isso bem sei. Na época seu presidente pedia, ao me encontrar nos corredores do IJF: – “Fernando, pega leve, vai...” Éramos funcionários lá e era nesses fortuitos encontros a ocasião em que o presidente da Unimed Fortaleza via a oportunidade de manifestar certo incômodo por alguns de meus comentários.

                Hoje aquele presidente já não é presidente e o atual presidente, juntamente com os demais membros diretores, permitiram, ao que parece, a continuidade do farisaísmo, das incoerências e distorções que, já naquele tempo, ocorriam na relação da cooperativa como prestadora de serviços de saúde e seus clientes.

Vejam, por exemplo, o que escrevi em 02 de agosto de 2012 no texto “Imposturas” (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2012/08/imposturas.html). O que digo lá? Sem rodeios e sem delongas, para não tomar o tempo do açodado leitor – a cooperativa Unimed Fortaleza assiste com cumplicidade à lesão de seu Estatuto que reza, em suas várias atualizações subsequentes, tão explicitamente quanto possível, que “o cooperado se obriga a executar em seu próprio estabelecimento de trabalho, ou em instituições de saúde da cooperativa, ou por ela credenciadas, os serviços profissionais que lhe forem concedidos pela sociedade, sendo vedada a cobrança de quaisquer valores aos clientes pela realização destes procedimentos previstos nos contratos celebrados” (Artigo 7º, Item I.) O que se vê a céu aberto – ou seria inferno? – é exatamente o contrário: a cobrança indiscriminada de valores à guisa de consulta particular aos clientes dos vários planos da Unimed Fortaleza por parte daqueles que, pelo seu referido Estatuto, estão proibidos de o fazer.

É notório, no momento atual, a dificuldade do brasileiro em seguir regras, em seguir leis. Por outro lado, abundam regras e leis esdrúxulas que visam tão-somente estabelecer privilégios e “castas”. É o caso até de se pensar ser uma coisa consequência da outra e, sendo assim, tal não ocorre atualmente apenas. No caso da Unimed, os médicos cooperados que vêm continuamente e repetidamente infringindo descaradamente e desavergonhadamente seu Estatuto recorrem, quando colocados diante de seu crasso erro, às justificativas mais esdrúxulas e estapafúrdias, a mais comum o vil valor da consulta médica pago a eles por sua cooperativa. Por outro lado, a cooperativa, através de suas “auditorias” existentes para esse fim, quando pleiteada por um de seus lesados clientes a ressarci-lo pela indevida cobrança, responde através de patéticas e até incríveis – no literal sentido de “inacreditáveis” – desculpas. Vejamos uma delas. Chega a ser anedótica.

“Por que o senhor – ou a senhora – não procurou outro profissional cooperado”? ou, na conclusão da farisaica “auditoria”, “o(a) senhor(a) deveria ter procurado outro profissional cooperado e, por esta razão, sua solicitação de reembolso  foi indeferida”.

Não bastasse o fato explícito de a cooperativa, através de seus “auditores”, demonstrar absoluto desprezo pelo estabelecimento de uma relação médico-paciente, ela ainda reconhece passivamente a indevida cobrança. A cooperativa rasga seu estatuto e ainda culpa o cliente pelo ocorrido, numa completa inversão de valores e de regras. Sabia-se ser comum nesse decadente país a justiça muitas vezes culpar a vítima pelo crime sofrido, mas ainda não nesse nível, no nível civil.

Casos há em que o cliente é atendido no consultório “pela Unimed”, para na próxima ou próximas consultas ser indevidamente cobrado. A Unimed Fortaleza sugere ao cliente que, nesses casos, vá a outro profissional, como se a primeira consulta de nada valesse, como se nenhuma ligação houve se estabelecido entre o paciente e aquele que ele já considerava como seu médico. A cooperativa sugere que seus clientes saiam “pulando de galho em galho” ao sabor dos médicos que ora cobram, ora não cobram; ora atendem, ora não atendem pelo plano, numa Babel de relações erráticas e frustrantes para o que padece doente.

Bem, não há a menor dúvida dos inúmeros impunes ferimentos ao Estatuto da cooperativa Unimed por parte de seus cooperados. Tal situação não é novidade. Ocorre há pelo menos dez anos e vem se intensificando de forma aparentemente irrefreável. A conclusão a que se chega é uma só – a cooperativa Unimed Fortaleza é cúmplice de seus cooperados, faz vista grossa a seus erros, faz de conta que não é com ela e que ela nada tem a ver com isso. E por que o faz?

A resposta parece ser simples: porque é mais fácil punir seus clientes com cobranças às vezes criminosas do que discutir em assembleia de seus cooperados uma saída contábil que lhe permita majorar o valor de suas consultas pagas, no momento o mísero valor bruto de R$ 80 (oitenta reais) – a propósito, essa a desculpa mais comum pelos médicos cooperados infratores. O que não entendem, e não entendem porque usam de má fé, é que o cliente comprou um plano de saúde que contempla a consulta médica como parte do pacote. Se os médicos cooperados não conseguem que sua cooperativa lhes pague o justo e o merecido não é culpa deles. Como digo lá no “Imposturas”, o plano “consulta zero” está de vento em popa. Só faltou avisar aos compradores de um plano de saúde da Unimed.

Antes de encerrar, uma nota. A cobrança é criminosa quando faz vítima um idoso mais idoso cujos parcos recursos são religiosamente guardados para honrar seu plano de saúde e ainda são onerados com essa brutal quebra de contrato por parte da cooperativa acumpliciada a seus cooperados. Seus médicos deveriam se envergonhar por tal descalabro. Se o atual presidente da Unimed Fortaleza se incomodar com tão humildes comentários como o presidente de outrora o fez, meço o ego de um e de outro sem lhes achar diferença.

sábado, 19 de dezembro de 2020

CURAR ÀS VEZES, CONFORTAR SEMPRE

O que aconteceu foi o seguinte.

Entro para bater o ponto no hospital e o Víctor anuncia: – “Doutor, tem aí um processo para o senhor responder”. Era uma queixa de um paciente do meu ambulatório. Não, uma queixa não – uma reclamação. Sim, o paciente havia ido à ouvidoria reclamar por eu lhe ter orientado, na consulta que fez comigo, a procurar a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza para fazer o tratamento cirúrgico de suas varizes nas pernas.

Ora, todos os pacientes com varizes nas pernas que se prestam ao tratamento cirúrgico e que vão ao meu ambulatório são, depois de serem ouvidos, examinados, e mostrarem o desejo de operar suas varizes, orientados nesse sentido. As razões para agirmos assim são bem óbvias e, diria até, seculares. Assim, destrinchemos esse aparente engodo a fim de esclarecer o que está, de fato, na pauta.

Antes, porém, adianto o seguinte – esta não é uma defesa. Sim, não estou a me defender. Pela simples razão de ter agido no melhor interesse do paciente, nada há que necessite para a defesa deste profissional. Apenas faço um relato do ocorrido. Neste país todo esforço tem sido feito para inverter ou deturpar os próprios fatos, como se estes pudessem ser alterados. Estamos em Fortaleza, uma cidade decadente, perigosa, mortal diria até, tomada por forças poderosas aliadas ou protegidas pelo chamado “poder público”, com um povo que se permite dominar e se ajoelha diante do mal. Assim, a tentativa de inverter os acontecimentos – não por parte do paciente, mas por outra fonte – não fosse por si só insana demonstra o grau de atuação a que chegaram os psicopatas locais, através de um de seus prepostos nomeados para função pública sem ter prestado concurso.

Foi-se o tempo em que um hospital público tinha toda a sua direção escolhida dentre seus funcionários. Hoje, essas figuras esdrúxulas vêm sabe-se lá de onde trazendo em seus currículos cursos de gestão e vivência zero em sua atividade principal. São fedelhos paparicados dentre a canalha política de plantão. Noutros tempos a direção era composta por médicos atuantes como médicos, não raro ícones da medicina local.

Dirão alguns que estas são afirmações exageradas, que não cabem numa humilde e pré-obsoleta crônica, mas, asseguro – nem tanto, nem tanto...

Então, vamos ao que viemos.

Em primeiro lugar, operar varizes de membros inferiores é perfeitamente opcional na esmagadora maioria das vezes. A condição é benigna e pode ser tratada de modo conservador sem nenhum prejuízo ou risco adicional para o paciente. Reforçamos isso quando o paciente tem comorbidades que “pesam” sobre o tratamento cirúrgico, impondo um risco absolutamente desnecessário. Essa é uma questão sobre a qual o paciente pode optar. Não estamos diante de uma condição que imponha risco à sua vida ou à qualidade dela, excetuando-se, talvez, a questão estética tão comum em pacientes do sexo feminino. Aqui vale a máxima: pesam-se os riscos e os benefícios. Como em tudo na medicina.

Em segundo lugar há o sistema público de saúde brasileiro com todas as suas mazelas. O Hospital Geral de Fortaleza (HGF) é um hospital desse sistema, um hospital terciário, ou seja, um hospital para onde são encaminhadas as pessoas portadoras de doenças graves, ou que requeiram tratamento especializado seja em complexidade de recursos materiais e/ou humanos. Como digo a meus pacientes do ambulatório e em relação ao escopo da cirurgia vascular, hospital terciário significa “gravidade” ou “prognóstico reservado ou não muito bom”. Eles ficam felizes em saber que suas varizes não lhes ameaçam a vida nem sua integridade física. Haveria dificuldade em entender isso ao leigo leitor? Todos os pacientes, inclusive meu queixoso paciente, saem conscientes de que lá não serão operados simplesmente porque os recursos deste nosocômio são todos dirigidos a pacientes com doenças graves que necessitam de tratamento complexo, o que não é o caso da doença varicosa de membros inferiores.

(Logo verão que sua queixa foi, digamos assim, uma maldosa indução de quem deveria zelar, acima de tudo, pela verdade e pela busca de soluções para aqueles que são usuários do sistema público.)

Lembra-me que, anos atrás, procurei a direção clínica do hospital a fim de solicitar a que comunicassem aos componentes primários do sistema de saúde que o hospital não oferecia aos pacientes com varizes e com esperança de operá-las um tratamento que não fosse o clínico. Os pacientes vinham cheios da certeza de ficar livres das incômodas varizes apenas para se verem frustrados.

O diretor alegou não ser isso possível por não me lembro quais razões. As pessoas portadoras de varizes em membros inferiores continuariam a vir ao HGF sorridentes e com a certeza absoluta de que teriam suas horrorosas varizes removidas. Eu seria o que está na linha de frente para lhes dar a triste notícia. O sistema alimentando a esperança e eu estragando o prazer. Por isso deixei de usar branco há muitos anos. Não combina com um estraga-prazeres.

Depois me iludi e perdi o meu tempo ligando para alguns postos de saúde, locais onde se faz a medicina básica, primária, mas não primitiva, de onde são encaminhados esses pacientes, na tentativa de sugerir que os encaminhassem a um hospital secundário, menor, de menor complexidade, para a consulta e tratamento de sua condição.

Novamente dei com os burros n’água. Concluí de imediato: o sistema está assim montado e não há quem mexa nisso. A jovem ou velha senhora sai no carro da prefeitura da cidade do interior na noite anterior à sua consulta com o cirurgião vascular do HGF só para ser desiludida por um médico de merda que ainda “perde” tempo tentando lhe explicar um sistema de saúde que não funciona perfeitamente e que, em seu entender, é gratuito. Horas e horas na estrada, gasolina da prefeitura, votos para os canalhas da política... e o estraga-prazeres ali, à sua frente, a lhes contar a verdade.

Mas, só agora percebo o detalhe: – por que a Santa Casa? Porque, no presente momento, é o único hospital nesta decadente cidade que presta esse serviço numa base rotineira com recursos públicos. E como sei disso? Ora, conversando e indagando de colegas da especialidade que trabalham nos outros hospitais terciários da cidade. É tudo a mesma coisa – hospitais terciários não combinam com condição benigna. Elas terão, ou teriam, seu tratamento em hospital secundário. O sistema não oferece essa alternativa, como bem se pode concluir. O problema é apenas um – os “gerentes” do sistema não assumem que há essa brecha.

Foi nesse cenário que a ouvidoria do HGF recebeu a reclamação contra mim. Julguei, a princípio, uma má fé do paciente que fez tal chororô. Sim, porque a única coisa que falta eu fazer no meu ambulatório é pôr meus doentes no colo. O resto já fiz – abraço, choro, beijo, faço cafuné, dou beliscões carinhosos, acaricio-lhes a face... mas no colo ainda não pus ninguém. São velhinhos e velhinhas com a doença mais desgraçada do mundo, a aterosclerose obliterante generalizada recalcitrante e mortal, com aneurismas ameaçadores, potencialmente explosivos ou obstrutivos; portadores de cotocos de pés, de pernas, de dedos, de mãos e braços que lhes avisam que o fim inexorável pode estar próximo. Outros, até mais jovens, com rins improdutivos de suas diárias urinas, presos à uma máquina que lhes filtram o sangue através de dispositivos artificiais que os médicos lhes enfiam no pescoço, virilhas, tórax, ou com veias enormes e dilatadas nos braços, resultado de suas “arterializações” para uso da máquina. São incontáveis histórias, inúmeros sofrimentos, difusas e insanáveis dores, lágrimas incoercíveis que molham lenços já sujos e puídos de tanto uso e esperanças fugidias...  E a frase que resume a missão me espicaçando a alma...

Por tudo isso senti um mal-estar leve, muito leve, ao anúncio do Víctor, como uma desolação causada por certa decepção com o ser humano.

Foi quando tudo se fez claro. Assim do nada, saindo de volta para casa, encontro ali, nos corredores do hospital, a informação dando conta de que meu paciente, o que elaborou a reclamação, confessou ter adorado a minha pessoa, o meu atendimento e a minha atenção, e que só foi à ouvidoria por orientação de graduado funcionário do hospital que, como já dito lá atrás, prefere a mentira à verdade temendo, talvez, o envolvimento inevitável de seu nome na constatação de uma falha ou brecha do sistema. Tão míope é que não percebe que o sistema não é ele. Mas sentir-se como o próprio sistema já denota que estamos lidando com um ego pueril e inflado, como o de um fedelho qualquer.  

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...