quinta-feira, 10 de agosto de 2023

UMA HISTÓRIA DE MULHERES

 Mulheres têm história. E histórias. No plural. Por que afirmo isso a essas alturas do campeonato? Porque conto tantas histórias cujos protagonistas são figuras masculinas que possa parecer que desconheço o fato de que as mulheres também têm suas histórias. Então, deixem-me dizer uma verdade: como têm histórias as mulheres!

Outro dia fiz um comentário sobre o pensamento de uma querida amiga e o resultado foi que acabei por magoá-la. Foi involuntário. Em nenhum momento quis lhe desdenhar a ideia. Apenas a combati – a idéia – com uma veemência tal que talvez tenha parecido a seus olhos uma audácia de minha parte. Pedi-lhe perdão pela mágoa, mas ratifiquei meu persistente desacordo com sua ideia. A mulher é um ser especial, não resta dúvida. Diz a Rita Lee que “mulher é bicho esquisito, todo mês sangra.” E diz também: “nas duas faces de Eva a bela e a fera.” E avisa repetidas vezes, com maior veemência que a minha: “por isso não provoque, não provoque, não provoque, não provoque, não...” Eu, mais ligado à melodia e à harmonia e avoado aos dizeres e alertas da letra, anos e anos ouvindo, acabei por sentir na pele o que é contrariar uma mulher.

Pergunto-me agora, no exato instante em que escrevo estas linhas, e por ter passado por essa experiência decorrente de minha mania de escrever crônicas, se não adquiri um heart’s core feeling que me impele à lonjura das histórias femininas. Gato escaldado tem medo de água fria. Mas, se fico exclusivamente em território masculino perco as miríades de possibilidades do universo feminino. Vejam que o Amorim nunca me chamou às conversas por sequer uma linha que tenha escrito sobre ele e seus inúmeros causos. E assim também o Padilha, o Chico, o Pinto, o Mesquita. Não quero concluir que as mulheres perderam seu apurado senso de humor. Não. Fica aqui registrada minha recusa em acreditar nesta possibilidade.

Se pensarmos melhor, não é que escreva sobre histórias onde os homens sejam os principais protagonistas. A verdade verdadeira é que por detrás de toda boa história “masculina” há sempre uma mulher - ou mais de uma! – a protagonizá-la. Se não, vejamos.

Tomemos o Padilha como exemplo. Nem é preciso dele contar uma história. Coloquemos como pano de fundo de qualquer de suas histórias algumas características únicas do homem. Observem que a expressão “características únicas” é um deslavado pleonasmo que me vem em socorro apenas para enfatizar o meu discurso. Já verão o que digo.

Há uma noção entre as mulheres cearenses de que o homem da terra é mal-educado e pouco ou nada cavalheiro. E – pior! – que o interesse maior do cearense com uma mulher é ir direto ao “ato”. E não há um único e solitário conterrâneo que escape a essa condenação sumária. Desde o governador até o catador de lixo passando pela elite pensante e educante, toda nossa população masculina é de trogloditas. Eles não voltam para casa – voltam para suas cavernas após o trabalho. Eu disse que há uma noção? Minto: - é uma dessas certezas que se equiparam à da morte.

Digamos, então, que todas as mulheres cearenses são, desde já e sem direito à recusa, protagonistas de qualquer história do Padilha. Por quê? Simples: o Padilha é a exceção. Ele é dessas raridades que nos envergonham e deixam a rosnar os vermes das grutas. O Padilha abre portas, puxa cadeiras, beija na mão, sorri olhando no olho, enfim, é um lord refinadíssimo. Aos que se estão roendo de inveja e procurando uma brecha para desmascarar o homem, aviso: impossível. Padilha é cavalheiro com uma mulher que conquiste desde o primeiro dia até sua morte. O problema está em provar a matéria. Padilha já casou uma penca de vezes e não parece que dará chance a provar a tese: - separou-se de todas elas. A única vingança possível é que o Padilha é nordestino, mas não é cearense.

Termino concluindo o que me parece o mais lógico. Padilha tinha de ser cearense ou as mulheres não gostam de tanto cavalheirismo assim. Essa é uma história de mulheres. Se não fosse por elas não existiria um Padilha. Perceberam?

 

Fernando Cavalcanti, 10.12.2010

UMA DO CHICOTE

 Dizes que sou o indivíduo que mais amigos de infância tem. Pois queres saber? É a mais pura verdade, e ainda sinto aquela vaidade pueril em tê-los. O que é a amizade nesses tempos difíceis? Diria ser algo quase impossível, algo que não tem preço. E bem sei que conheces alguns de meus amigos do tempo das fraldas e da merendeira, o Amorim, o Motta, o Baxim, o Mesquita, o Bacana, e outros, e outros, e outros. São tantos que às vezes não percebo quão rico sou.

            O que não sei é se conheces o Chicote. Conheces o Chicote? Isso mesmo: Chicote. Não, não o chamam assim por ser ele um Francisco pequeno, miúdo, raquítico, um Chico anão. Recebeu esse epíteto por ser um sujeito mordacíssimo, quase intolerável. Sua mordacidade atingia a vítima como uma chicotada. Daí o apelido. O tempo só serviu a aperfeiçoá-lo em sua habilidade maior: as chicotadas.

            Sujeito inteligente, leitor voraz, cultivou um bigode lustroso que cobria dentes incrivelmente brancos quando de uma de suas comedidas gargalhadas. É mulato, do tipo dado à pândega. Formou-se médico e tornou-se conceituadíssimo entre seus pares e pacientes. Competentíssimo em seu mister, cultiva amizades ecléticas que inclui o vigia do prédio onde mora a figuras do high society. Para falar a verdade, tudo no Chicote é de um ecletismo abissal, as mulheres que conquistou aí incluídas. Na literatura lê rótulo de raticida; na música ouve até o João do Pífaro. 

            Dirás que supervalorizo o amigo, já que não lhe atribuo defeitos. Ora, o defeito é universal ao passo que a qualidade é individual e única, quando muito, parcamente alastrada. Diria até que sua mordacidade se lhe incrustou como uma virtude singular.

            Vamos aos fatos sobre o Chicote.

Certo dia ele sentia-se mal, enfraquecido, cansado. Emagrecia a olhos vistos e um dia de labuta era para ele como os doze trabalhos de Hércules. Diagnóstico: hepatite. Os olhos amarelaram, a urina escureceu, a barriga doía. Prescreveram-lhe repouso, boa alimentação, nenhum medicamento e abstenção do álcool.

            Aqui paro para dizer que Chicote e eu éramos dados a uns tragos bem ali no Cais Bar. Não sei se lembram do Cais Bar. Freqüentávamos o Cais Bar como de ordinário, coisa bastante comum entre os fortalezenses aquinhoados com a oportunidade de ter vivido época tão romântica e bucólica. Nem me delongo a fazer tais considerações sob pena de me perder naquela Fortaleza minúscula e apaixonante. Direi apenas que bem ali no Cais Bar íamos Chicote e eu, no tête-à-tête, bebericar e paquerar as meninas.

            Com o diagnóstico caiu sobre o amigo uma desolação tocante. Um fígado viral é algo preocupante. E se a coisa fica crônica? Quanto tempo se fica de molho sob a ameaça do vírus indestrutível e à mercê de vida regrada e insossa? Sabia lá o especialista. E eu? Beber sozinho? Um saco!  Acreditávamos que tudo se resolveria no devido tempo e que era preciso seguir a prescrição à risca.

            Quando o amigo melhorou da indisposição seu médico lhe autorizou a trabalhar e sair, mas as restrições alcoólicas foram mantidas. Assim, íamos ao Cais Bar, mas só eu bebia. Chicote ficava só na soda e na água. Olhava para mim e dizia, triste como um bicho preguiça: -“A vida sem álcool é uma merda.” O médico lhe dissera que não lhe seria permitido beber ainda após seis meses da normalização das enzimas.

            O diabo é que passava o tempo e as malditas enzimas continuavam lá em cima. Já dera o tempo de elas caírem e nada. Aquele era um caso diferente. Parecia que o Chicote ia ter uma hepatite crônica, cujo desfecho final é uma cirrose e possivelmente um hepatoma, um câncer de fígado. Que coisa! Seria possível?, era o que nos perguntávamos em silêncio mútuo.

            Chicote não queria morrer de véspera e continuava trabalhando e me acompanhando ao Cais Bar, eu na cerveja, ele na soda limonada. Até que chegou o dia em que ele me bate o telefone e fuzila: -“Fiz novos exames. As enzimas normalizaram.” Fomos ao Cais Bar comemorar. Nada de olhos amarelos, urina preta, enzimas altas, vírus presentes. Tudo coisa do passado, recente é verdade, mas passado. Ah, o Chicote queria uma dose do destilado, sem pedra de gelo nenhuma! Veio de lá o Chagas com uma dose dupla, dessas que se derramam pelas beiradas. O amigo nem deixaria passar os seis meses. Entornou de uma lapada só, como se fosse morrer a seguir. Dir-se-ia a cicuta socrática. Lambia os beiços como se acabasse de degustar um crêpe Suzette.

            Olhou-me nos olhos e confessou: -“Eu pedia ao Chagas pra derramar metade da soda e completar com vodka. Pensei que ia morrer.” Fiz cara de terror e ele completou: -“Se eu te contasse tu irias me repreender.” Continuei calado como uma múmia. Ele finalizou: -“Matei o vírus com vodka.”

            Ele está vivinho da silva até hoje. O Cais Bar já morreu faz tempo.

 

Fernando Cavalcanti, 03.02.2011

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

A ÚLTIMA SOBRE ELOGIOS

          Eu poderia jurar que meu amigo Siqueira está a me perseguir. Vou por uma rua, lá ele está. Vou por outra, idem. Estou em determinado hospital, o homem me aparece. Contudo, muito me alegro ao vê-lo pois já antevejo uns bons dois dedos de prosa. Pois foi o que aconteceu outro dia desses, há três dias. 

            Para os que não o conhecem, o Siqueira é dos cirurgiões renomados desta geração. Médico de branco, eterno servo de seus mestres, e saudoso aluno do Marista cearense. E escritor de pena hábil. Autor de livro. Repito: o homem não é pouca coisa, meus caros. Há alguns anos eu dizia numa crônica ao meu querido amigo Casoba que o sujeito mais famoso que eu conhecia era ele, Casoba. E, se bem me lembro, já profetizava a fama de meu amigo Siqueira. O destino me foi generoso: acertei em cheio. Doutor Fernando Siqueira, meu xará, vive o auge de sua carreira profissional e sua fama corre solta à sua frente. Por isso aceitei de bom grado a crítica que me fez nesse nosso encontro. Disse ele que não se conformava por eu não aceitar elogios. Que eu não devia fazer assim. E disse mais: que eu estava muito negativo em meus escritos. Que eu deveria contar fatos pitorescos que, segundo ele tem certeza, eu conheço muito bem.

                De fato conheço muitos e muitos fatos ímpares. São fatos da tragicomédia da vida. Não existe fato sem tragédia. O que para um dá para sorrir, para outro dá para chorar. Nós, os expectadores, preferimos o riso ao choro. Quem quiser que vá chorar bem longe. E assim a coisa vai indo. Entretanto, creio que ele talvez tenha ficado impressionado porque andei falando sobre perdas, que na vida tudo perdemos, inclusive a própria. Ora, o discurso foi proferido em momento doloroso para um amigo que perdeu o pai. Os miasmas que me envolviam não me permitiriam chacotas e folguedos. Neste momento não havia comédia, mas dor. E os elogios? Por que não os permitir? Parece que escrevi para cegos: o elogio é a véspera da decepção! E acho que por agora ambos os assuntos estão encerrados. Desculpe-me lá o Siqueirinha, mas abandonemos essa léria.

                Ele queria que eu escrevesse sobre os bons tempos do ginásio, no marista. Em particular ele queria que eu lembrasse a zoeira que os alunos maristas faziam no ônibus de volta para casa. Sim, o lotação vinha repleto de maristas que quase saíam pelas janelas. E gritavam a não mais poder. Faziam batucada e pediam em coro para o motorista correr ao cruzar Aguanambi com Treze de Maio, porque lá havia uma lombada no asfalto e o ônibus pulava como uma bola saltitante quando passava em velocidade. Nós adorávamos aquele salto. E vaiávamos. Gritávamos: -“Motorista, cooooooorra!” As pessoas pensavam que íamos xingar o motorista, chamá-lo de “coooooooorno”... Alguém veria graça nisso hoje em dia? Naquele tempo a maioria dos motoristas gostava. Não se importava com a brincadeira. Um ou outro se enfurecia e punha-nos para fora do ônibus. Certa vez um parou o carro e veio de lá para nos pegar. Saltamos porta traseira afora como doidos. Uma jovem que subia abraçada a meia dúzia de livros e cadernos foi literalmente atropelada por nós, caindo sentada à entrada do ônibus com seu material escolar espalhado no asfalto. Voltamos para casa a pé, rindo à beça. A comédia era nossa; a tragédia dos motoristas. Não sei, não, mas hoje não vejo nenhuma graça nisso. Será que eu estou ficando caduco? Responda lá o Siqueira...

O INCOMPETENTE

                       Chamou-se o sujeito de incompetente.

                É verdade que ele não tinha nem tem as qualificações necessárias às funções que exerce. Não tem educação em gestão de pessoas, nem em administração de empresas, nem em recursos humanos, nem em nada semelhante. Seria como o sujeito dizer-se engenheiro civil e tentar construir um edifício de dois andares.

                Eu mesmo sou um incompetente para construir tal edifício ou mesmo uma casa. Não saberia erguer uma parede, a bem da verdade. Um muro de meio metro de altura feito por mim, baseado em meus cálculos, não se sustentaria por dois minutos. Então, sou de fato um incompetente neste mister. Sou um incompetente para pilotar aviões. Se me dessem a pilotar um ultra-leve, seria um desastre. Literalmente. Sou um incompetente para pilotar ultra-leves. E para tocar oboé? A mesma coisa. Sou um incompetente.

                A bem da honestidade, todos nós indistintamente somos incompetentes para muitas e muitas coisas. É normal. Não estamos habilitados a realizar todas as tarefas e funções especializadas dentre as ocupações humanas. Onde está a razão para se sentir magoado ou melindrado com a pecha de incompetente? Não há razão, eis a verdade. Eu poderia enumerar mais de uma centena de atividades para as quais sou um completo incompetente.

                O problema começa quando o sujeito começa a achar possível exercer determinada função ou executar determinada tarefa para a qual não foi treinado. E geralmente ele o faz porque a princípio a função lhe parece fácil ou possível, ou parece-lhe que os danos advindos do mau exercício desta não seriam tão evidentes ou tão impactantes. Então, cresce no indivíduo em questão uma falsa auto-estima às avessas: sente-se perfeitamente capacitado e ninguém pode questionar ou duvidar disso. Esse indivíduo só chega a esta função em duas situações: em empresas familiares ou no serviço público brasileiro. Na empresa familiar ele exerce cargos por ser parente do dono da bola; no serviço público porque a empresa pública no Brasil é objeto de loteamento político por apadrinhamento de correligionários e aliados. O indivíduo não tem competência para exercer a função mas lá é colocado de forma a que o partido político do poder possa manipular a empresa ao seu bel-prazer. Trocando-se o partido do poder na próxima eleição, troca-se a “panela”.

                Este é o caso com o sujeito de quem falo. Está lá por apadrinhamento político. É bem verdade que os partidos poderiam selecionar eminências técnicas para exercer cargos com funções especializadas, mas não o fazem, na maioria das vezes. Colocam lá o incompetente. Seu currículo profissional não é considerado na escolha. Considera-se apenas o partido ao qual está afiliado.

                Contudo, haverá sempre quem defenda que as coisas podem dar certo mesmo feitas à margem da ciência e das boas normas. Para estes temos que lembrar-lhes que nada pode falar contra a evidência implacável dos resultados. Os resultados são fatos, e contra fatos não há argumentos. Portanto, há sempre como demonstrar que um incompetente curricular é um incompetente de fato: através de seu resultado.

                Se eu fosse construir um muro, ou uma parede, ou um edifício eu chamaria o meu querido amigo Alex Matos. Ele é engenheiro e atua no ramo. Eu posso construir um muro, se quiser. Contrataria o expertise de meu amigo. O muro seria meu mas a obra seria de meu assessor. É uma maneira de exercer uma função para a qual sou incompetente. Mas nem isso fazem os incompetentes do serviço público. O incompetente traz outro incompetente para lhe assessorar. Imaginem qual será o resultado. Então, não pode se melindrar o incompetente gestor do serviço público por ser chamado de incompetente. Não há aqui sentido pejorativo no uso do termo. São os resultados a aparecer. Seria o óbvio ululante de Nelson Rodrigues.

CABAÇO DE FILHA

            Meu amigo Amorim estava um misto de irônico e melancólico, alegre e mordaz, gordo e magro. Sim, apesar de estar imensamente gordo, era um misto com a magreza. Seu ventre abaulado insistia em esconder toda sua magreza. E ele, por sua vez, procurava disfarçar sua frustração. Súbito, passou a falar abertamente sobre o que o atormentava.

            Não se conformava com o noivado da filha. O noivo era garoto bom, estudioso e, ao que parecia, de boa índole. Estudava engenharia e dali a poucos meses, formado, estaria pronto a constituir família. Mas Amorim não se conformava. Sentia-se derrotado. Não se entendia o porquê. Nem ele sabia explicar. Só sentia. Era um poço de sentimentos, de sensações.

            A jovem não estava inadvertidamente grávida. O casamento estava sendo planejado, estudado, calculado. Que diabo incomodava o Amorim? Lembrava a festa em que fora com toda a família e, com eles, o noivo. Via-o abraçar e beijar a filha e pensava: -“Esse filho da puta vai comer a minha menina...!” Isso o deixava louco, mas nada podia fazer. O que fazer? Nada podia fazer. Eram noivos. Mas ele iria comê-la, que diachos! Era o defloramento autorizado, institucionalizado, permitido aos olhos de todos. Amorim estava de mãos atadas. Era notória a obsessão. Estava cego e inconsolável. A filha comida o levava à loucura e ao delírio. Relacionava-se bem com o futuro genro, mas... “esse filho da puta vai comer a minha filha!” As regras e normas diziam que ele nada devia fazer. A filha seria comida respeitosamente. Assim funcionam as coisas, ora essa!

            Os amigos que com ele estavam tentaram lhe dizer tudo isso, mas ele não dava a mínima. Achei que estava louco, mas dei o desconto. Nunca ouvira de um pai tais confidências. Por isso levei na gozação. Pensam que se chateou com isso? Não deu a menor importância! “Esses bostas não entendem, não é a pele deles! Ou melhor, a filha.”

            O dono do carro estacionado à nossa frente deu a partida no motor. O veículo estava imundo. Uma poeira barrenta o cobria. Amorim, mordaz, perguntou se o bicho estivera enterrado. Todos caíram na gargalhada. Depois voltou ao assunto da filha prestes a perder o cabaço. Fomos saindo um a um, aos poucos, e ele ficou com aquele olhar de lunático, perdido em si mesmo. Não via a filha mulher, mas a criança.

02.01.2010

SOBRE BURACOS

         Tenho vivido dias de reflexão sobre o meu trabalho. O que me trouxe a esse tema nesses dias foram acontecimentos ilustrativos. O ser humano tem tendência a se acomodar onde está. Muitos se acomodam ainda que a posição seja desconfortável. Acha-se conforto no desconforto, como se ao se mover passasse a doer o que já estava indolor de tanto doer. Como uma terminação nervosa em longo período refratário de tanto ser estimulada, a dor aquiesce e se esvai, só sendo lembrada quando se tenta mover da posição. Não mais dói o desconforto, mas o esforço para dali sair.

Somente reavaliações freqüentes sobre a vida, e em particular sobre o trabalho, podem nos sinalizar sobre o rumo que nossos resultados tomaram. Nada controlamos. Ainda que tenhamos chegado ao nosso objetivo inicialmente traçado, perdemos rapidamente e tanto mais o controle quanto mais esforço tenhamos empregado na tarefa de conseguir a meta. É fácil explicar: – julgamos cumprida a missão. Acabamos. Nada mais a fazer. Esquecemos que nada controlamos e que onde chegamos é onde verdadeiramente começam os desafios.

As novelas e os filmes geralmente acabam onde de fato deveriam começar. Como o casal de mocinhos que finalmente sobe ao altar no final feliz, é justamente ali naquele momento que se inicia a maior batalha; quando devem ficar mais alertas e mais esforços devem empregar para manter viva a energia que ali os fez chegar. O que se faz é precisamente o oposto.

Deita-se. Relaxa-se. Esmorece-se. Começam, então, os problemas. O mesmo ocorre no trabalho. Lutamos com unhas, dentes, canhões e bazucas para consegui-lo, e quando isso acontece esquecemos que começa, naquele momento, o maior desafio. Perdemos o controle porque abdicamos da parte que nos toca.

Parece que todas as nossas “realizações” são profundos buracos que cavamos a fim de lá nos enfiar para nunca mais sair. O casamento, um buraco; o trabalho, um buraco; o mestrado, um buraco; o doutorado, outro buraco; o consultório, as noites de domingo, e tantos outros buracos que cavamos. Nossos buracos nos envolvem como uma rede aconchegante, onde nos sentimos letárgicos e preguiçosos.

Estive, nesses dias, olhando as paredes de meu buraco de trabalho. Ainda sobre os buracos, vejam que queremos permanecer trinta e cinco anos no buraco do trabalho para de lá sair, velhos e doentes, para a aposentadoria. De tanto lá ficar, sem luz e sem espaço, quando saímos estamos cegos e encurtados em todos os aspectos. Nossos tendões estão encurtados, nosso corpo está encurtado, nosso salário está encurtado, nosso cabelo de tão curto não mais o vemos, nosso mundo está encurtado, nosso ânimo encurtado, nossa vida está encurtada, enfim. Só então descobrimos o mais triste: nossos princípios e valores encurtaram de há muito, desde quando entramos no buraco do trabalho e esquecemos, por anos a fio, de reavaliá-lo. Será, então, tarde demais. Teremos sido tragados pelo buraco. Já não sabemos viver fora dele.

Há quase vinte anos estou no buraco. Ocorrências recentes me chamaram à responsabilidade. Estou a um angstrom do fim de minha dignidade. Senti uma onda de frio perpassar meu corpo quando vi diante de mim, cara a cara, bem perto, o monstro da pusilanimidade repleto de complacência e condescendência. Olhei em volta e não vi os meus valores, as minhas razões, os meus princípios. Eles estavam guardados em algum lugar e há tempos eu não os revisitava, presumindo estarem eles sempre comigo. As coisas mudam. Nada controlamos. Só controlamos a nós mesmos. Sem minhas razões, sem meus princípios, sem meus valores nem a mim mesmo controlo; estou sujeito à ação do terrível monstro. Se não os revisito perco o foco dos meus porquês e me embrenho no lugar-comum das razões menores que não se justificam. Quando perguntam a minha idade, respondo: vinte e quatro anos. A expectativa de vida em meu país é de setenta e três anos. Vinte e quatro anos é o que me resta. O que estou tentando salvar? Minha vida ou minha memória? Em breve direi. Não tenho muito tempo.

 

03.11.2010    

terça-feira, 8 de agosto de 2023

MODORRA

        Hoje é domingo. A modorra, após uns dias débeis e insensatos, me envolveu. 

        Os dias débeis são sempre fruto de noites vazias, onde nada se encontra além das mais estúpidas e insossas ideias que pululam nas mentes mais estúpidas e insossas. A solitude tem sido minha mais fiel companheira desde o último dia treze, mês passado, quando minha mãe partiu. Sua presença teima em aqui permanecer comigo, desafiando a realidade. Vinha vê-la pouco nos últimos tempos, mas sua intensa e densa vida me tranquilizava: ela estava lá, vivendo sua vida densa e intensa. Eu sabia. Para mim, ela estaria lá para sempre. 

Pouco antes nos falávamos mais amiúde. Ouvíamos música e ressuscitávamos nossos mortos. Eram – são – muitos os nossos mortos. Ela me contava a história de cada um, a parte que eu desconhecia. Eram tios, primos, avós, amigos. Gente do século anterior, gente do século passado. Ela os amava. Era sempre um prazer reanimá-los, fazê-los viver. Para ela porque tivera com eles tivera uma boa convivência; para mim porque eu sentia um enorme prazer em suas deliciosas memórias. Ela era o elo que estabeleci com umas poucas lembranças da infância. Agora não há mais elo, nem há mais mortos a ressuscitar. Nela eles viviam. Com sua partida a réstia de vida que neles habitava virou um minúsculo, quase imperceptível fio em minha memória. Com efeito, anseio mantê-la viva nas lembranças de tantos, e tantos, e tantos momentos, às vezes longos, às vezes curtos, que me estarão encravados na eternidade do que chamam alma. Percebo, agora, que de fato morremos completamente quando também morrem os outros que conosco conviveram, ou que de alguma forma nos conheceram. Mesmo os filhos ou os netos que se geram permitirão que a memória de seus antepassados se dilua e se perca na imensidão do tempo. A transcendência é apenas de natureza biológica. Eis o que está a ocorrer com meus mortos. 

        A percepção da evanescência de tudo causa essa sensação de fraqueza e impotência que humilha e esmaga a ilusão da vida. Nossas perguntas soam como ecos distantes, ressonantes num abismo profundo e frio. A impostura da vida só não dói mais do que a indiferença da natureza ante esse vai e vem da morte. Por mais que tente, jamais serei capaz de deitar às letras minha indignação ante o absurdo da aniquilação. Eis o que sinto, eis como estou. 
        
        Julgo não mais ser quem fui. Impossível persistir na unidade de mim mesmo quando percebo a amputação no cerne de meu ser. Dizem que será assim por um tempo, não para sempre. Dizem que o bálsamo do tempo demora, mais sempre cura. Eu, que amputo membros de carne e osso, bem sei que curam. Mas também sei que seguem como cotos, resquícios, partes incompletas, que assim permanecem indefinidamente. Há de também ser assim o coto da alma, do cerne, da essência: - onde havia algo que não impede a existência perdura o vazio de algo que se vai daquele âmago. É uma essência mutilada, incompleta, indignada, aviltada, ferida de morte.

        Dizem que tudo é química, que também é química o amor, a saudade, a dor, o prazer. Eu, que li sobre as prostaglandinas, encefalinas, e endorfinas, bem sei que são os mediadores. Mas também sei que se removendo a causa cessa o sinalizador; e que se administrando o sintomático aborta-se sua geração. Há de também ser assim na dor que dói na alma, quando se recorre ao lenitivo das crenças e fantasias.

        Ai de mim, que capitulei ante a demora do alívio dessas dores!... Quanto mais busquei menos achei, porque me neguei a violentar meu entendimento, ainda que procurasse na ânsia de encontrar. Eis a que leva a modorra, eis o que me causou a humildade de perguntar e buscar.

09.05.2010 

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

VISITAS

          Chego a qualquer hora. Ele dorme. 

        Lá fora, o sol escaldante anuncia que as chuvas intensas e frequentes recentes parecem ter-se ido. Seriam 10 da manhã. Adentro seu quarto, escuro na penumbra das cortinas cerradas. Sei que estão lá, nas prateleiras do guarda-roupas, as fotografias. Numa delas mamãe discursa num encontro de amigas, enfeitada em seu lindo estilo de mulher de família, à moda antiga, elegante, britânica. Nas brincadeiras chamavam-na "perua". 

        A cuidadora me cumprimenta, sentada à cadeira ao lado da cama dele. Pergunto sobre como ele passou a noite, se dormiu, se queixou-se de algo, enfim, uma espécie de relatório sobre seu bem ou mal estar. Hoje cheguei e ele estava sentado no vaso sanitário. Estava bem alerta. No último mês apresentou uma melhora substancial em todos os aspectos. Hoje, especificamente, havíamos combinado uma visita ao túmulo de mamãe. Semanas atrás sugeri o passeio. Ele topou na hora, mas, nos dias seguintes, a velha adinamia que até então se impunha parecia não arredar pé. Foi quando veio a melhora, insidiosamente, paulatinamente, surpreendentemente. "Vamos ao cemitério?", perguntou ele na última sexta. Acertamos para dali a dois dias, na segunda. 

        O trajeto foi tranquilo. O trânsito estava calmo por conta do feriado local. Ele entrou no carro abrindo a porta por conta própria. No percurso não falamos. A surdez sem a prótese tornou-o mais ensimesmado que o habitual. Como se diz com frequência, o valor de algo só se mede quando se o perde. No caso dele a audição faltava. Como travar um diálogo sem escutar? Melhor se recolher e nada dizer. Nem mesmo uma pergunta banal, dessas que se fazem apenas para matar o tempo, é possível nessas circunstâncias. Disse ao início que ele dormia quando cheguei. Faz parte desse recolhimento diário. E, como tudo o que não é usado atrofia ou desaparece, ele desaparecia em pleno dia.   

        No cemitério o silêncio imperava. Procuramos, durante alguns minutos, o sepulcro de mamãe. Uma pedra onde se escreveu seu nome o localizou. O resto era o gramado com inúmeras outras pedras equidistantes entre si, cada uma com um nome e as datas, o tempo de vida. Algumas carregavam fotografias do morto. O de mamãe é só a pedra e as datas. Ele parou diante da pedra e nada disse. Um sem-número de pensamentos me acudiram. Ele continuou em pé diante da pedra sem dizer palavra, expressar qualquer sentimento ou reação. Pouco tempo ali ficou. Ergueu os olhos em direção ao campo gramado em todas as direções e saiu a andar lentamente por entre as lápides, parando brevemente aqui e ali a ver se identificava algum conhecido. A poucos metros uma família parada defronte de outra pedra orava. Sentamos no banco de cimento ali perto.

        "Ave Maria, cheia de graça...", disseram eles mais de uma dezena de vezes antes de partirmos. Antes, porém, me veio uma lembrança de mamãe. Divertida, com apurado senso de humor, dizia sobre o que hipoteticamente falavam os habitantes dos cemitérios aos visitantes quando da morte de alguém conhecido: 

        - "Nós que aqui estamos um dia por vós esperamos!", e caía na gargalhada...

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...