sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

UMA AJUDA PRO POBRE INCAPAZ...?


Outro dia me ligou o Padilha. Estava desaparecido há um tempo, muito tempo. Talvez fosse o contrário. Talvez eu estivesse desaparecido há um tempão para ele. Ora, morremos todo dia para alguém. Em vida tenho sido defunto de muita gente faz tempo.
Pois o Padilha me liga pedindo uma ajuda. A ajuda era a seguinte: queria que eu guardasse em casa um sofá velho que lhe pertencera até então. Foi o seguinte: o homem comprou um novo sofá e não queria se desfazer do velho. Aqui vale uma explicação. Padilha é daquelas pessoas que se apegam às coisas. Sim, não se desfaz de nada antes de... se acostumar com o fato de que precisam se desfazer de algo.
Deixemos de fazer críticas subliminares ao amigo e vamos direto ao ponto: o homem queria, precisava, anelava a ajuda de alguém que guardasse seu velho e felpudo sofá. Afinal, várias garotas haviam sentado naquele baluarte. Quantas vezes fizera amor deitado com algumas delas naquela peça confortável e rechonchuda?... O Padilha era um safardana incorrigível... Dos outros pensava que ninguém presta; de si que, exceto ele... mais ninguém.
Ainda não é essa a questão que desejo abordar. O que quero é falar da ajuda. Sim, da ajuda que o amigo queria. Bem, comecemos por definir o que é uma AJUDA. Fui aqui ao pai de todos os burros e descobri, no melhor que pude julgar: ajuda é o contribuir para que outrem faça alguma coisa. Outras definições dão conta de favorecer, facilitar... e por aí vai.
Pois resolvi ajudar o Padilha: acolhi em meu lar seu bendito e confortável sofá depois de ter doado o meu para alguém que necessitava. Em suma, o dele tomou o lugar do que doei. Vejam que, doando o meu, a ninguém ajudei, já que não contribuí para que alguém fizesse alguma coisa. E contribuí: ajudei a alguém a ter onde sentar. Minha ajuda só foi possível por uma questão física que obedecia ao princípio de Arquimedes: “Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”.
Fiz todo esse introito por uma única razão, e vou lhes contar. Foi o seguinte. Saí a beber um café com velhos e amados amigos. E eis que vinha dinheiro de cá, ia dinheiro de lá... o dinheiro atravessava a mesa daqui pra lá, de lá pra cá, e eu me via excluído desse trade fraternal. Depois de umas poucas perguntas e respostas incompletas, tudo se fez claro: estavam recolhendo recursos para ajudar um amigo comum. Resumamos a que não haja dúvida.
O amigo e sua família haviam sido vítimas de um assalto em que os bandidos “rasparam” tudo o de valor que havia em seu lar. A sorte foi a manutenção da integridade física de todos. (Antes de arrematar devo dizer que a vítima se considera o maior vendedor do planeta, o fodão, o cara, enfim...) De fato, o homem tem intacto seu cérebro de maior vendedor, seu físico perfeito, dois braços, duas pernas, visão e audição perfeitas... enfim: o amigo comum, vítima do assalto, perdeu apenas e tão somente a matéria. E os amigos ajudando o homem a... não fazer coisa nenhuma diferente do que ele já tem feito e que não está funcionando...
Ao me ver esclarecido de tudo, queriam saber: – “Queres participar?”. Respondi, incontinenti: –“Nem de brincadeira! Vai contra tudo aquilo em que acredito...!”
E assim continuamos... O sofá do Padilha está aqui comigo até hoje.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

MENINOS SEM SAUDADE, MENINOS SEM PAIXÃO


           Será que o Fábio Motta se agastou comigo após o que escrevi ontem? Era o que me perguntava hoje, logo após acordar de um sono reparador. Resposta: – de maneira nenhuma. Com efeito, o amigo adora que escreva sobre ele. Diria até que se comporta como se comporta exatamente para me provocar, o safado. Em outras palavras, seu comportamento é inteiramente promocional. Seria isso como que a marca registrada do homem: entende de alguma forma se promover ao se tornar objeto de minha pena. E ai de quem criticá-lo por isso! Meneia a cabeça passando a mão nos ralos cabelos como a endireitá-los no sentido correto, ao mesmo tempo que sorri um sorriso discreto e silencioso. Seria como se estivesse a dizer: “não enche, meu chapa”...
                Comecei assim só para lembrar o que dizia o Nelson sobre a amizade: a amizade é o grande acontecimento. E, assim, pegam-se os verdadeiros e amados amigos em gozações e pilhérias intermináveis.  O que a outros pode parecer uma espécie de bullying, aos verdadeiros amigos nada mais é do que a demonstração de seu amor perene e incondicional. Digo isso oportunamente, uma vez que tenho visto amizades que não suportam um eventual desencontro na cafeteria. Sim, há amigos e amigos. E, tanto é verdade, que estamos aí até hoje a nos suportar.
                Contudo, devo acrescentar, também comecei assim a fim de trazer à baila uma reflexão incômoda. Eu disse que o Fábio Motta meneia a cabeça. Pois, pasmem – não vi, de fato, o homem menear a cabeça. Explico – eu não estava na presença do amigo. Serei mais claro, visto que, aos dias de hoje, a realidade virtual é mais realidade que a própria realidade. Quero dizer que o menear da cabeça do amigo foi uma visão irreal ou, melhor dizendo, foi uma suposição baseada no comportamento usual do amado amigo. Sim, o Motta não estava ali, à minha frente, balançando a cabeça. Meu amado amigo estava... sei lá onde. Tudo que fiz foi imaginar a reação do amigo baseado em experiência passada. E por quê?
                Outro dia me esvaía em saudades. A pergunta que me fazia era precisamente a seguinte: aos dias de hoje, têm os seres humanos saudade? Percebo, só agora percebo, que envelheci. Direi de outra forma. Não envelheci – de fato, tudo mudou. Antigamente sentíamos saudade. Ainda hoje, ainda agora, sentimos. Olhando os meninos de hoje, me pergunto: têm esses meninos paixão? A resposta é fácil: não há mais saudade, não há mais paixão.
                Outro dia, não sei porquê, liguei para o meu amado e querido Mestre e Amigo, Doutor Lino Antônio Cavalcante Holanda. Viúvo recente, da quase extinta espécie de eternos viúvos que não esquecem o amor a quem juraram amor eterno, ouviu-me parcimoniosamente. E, ao ouvir-lhe a voz, lembrei-me do Doutor Lino de antes, dos tempos da residência médica, a me ensinar, a me orientar, a me indicar o caminho do médico de branco. (Antigamente o médico era de branco.) E senti saudades dele, Doutor Lino Antônio Cavalcante Holanda. Ele estava ali, à mão, na linha telefônica. Por um segundo pensei que ele estava distante. O Amado de antes estava longe, de alguma forma estava longe... mas, não sei se me faço entender, estava, de fato, ali, pertinho de mim... como antes. Se lhe dissesse ali, na bucha, ao telefone: – “Preciso vê-lo, meu Mestre!”, ele teria dito, incontinenti: – “Venha agora, querido discípulo, sem demora”! Falou comigo com aquele amor de antes, amor do Mestre por seu discípulo... E assim desligamos.
                Ao terminar a chamada, seguiu-se o vazio, porque voltei à realidade do hospital onde estava, onde trabalho, um antro de ausência de mestres, um antro de ausência de exemplos... Percebi ali, naquele instante, que meu Doutor Lino estava longe no tempo, mas não em distância. (Einstein ter-me-ia dito que eu entendera perfeitamente o que ele disse sobre a imaginação ser mais importante que o conhecimento.) 
                No fim das contas, misturei tudo o de minha infância, na figura do Fábio Motta, com tudo o de minha essência, na figura do doutor Lino Antônio Cavalcante Holanda, para me conceder a pecha de homem feliz e privilegiado. Sem falsa modéstia, por favor.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O ZUMBI

Dizia o poeta que “morrer é apenas não ser visto”.
Se atalharmos pela ideia, há uma penca de zumbis a perambular por aí, mortos que estão para mim. A contrapartida é que, também eu, hei de ser um zumbi para alguém, para vários dos que há tempos não me veem.
Pois, pasmem. Morreu o meu querido e amado amigo Amorim. Sim, sim, acreditem. Mas, calma! Não há de ter sido vítima da morte física, que esta não passa despercebida de todos. Ao se morrer de fato, fisicamente falando, morre-se para todos. A morte física tem data e hora, ao passo que a morte metafórica, à qual o poeta se refere, é imprecisa no espaço e no tempo. Não sei se me entendem... Dirá alguém que qualquer um pode, sim, morrer fisicamente e eu não tomar conhecimento, e estaria certo. Por exemplo, morreu o meu amigo Jussier Figueiredo e só agora fiquei sabendo...
Pois Amorim está vivinho da silva. Se sacar de meu telefone portátil, falo com ele em menos de trinta segundos, acreditem. Apenas sumiu, como se há de concluir após todo esse desastrado introito. E seu sumiço tem muito a ver com um sentimento absolutamente inusitado: o medo. Não há de ser um desses medinhos que se tem... de barata, por exemplo; ou medo de lagartixa ou qualquer outro bichinho inofensivo cuja paga é a repulsa por sua feiura anatômica e/ou estética. O caso de meu amigo é um pavor específico e absolutamente explicável – o homem adquiriu um horror patológico pela vida. Vejam que coisa absurda... É provável que me digam mentiroso ou exagerado, mas, tenham certeza, não é o caso. Diria até que o amigo nutre hoje pela vida uma dessas fobias ferozes e incoercíveis. Podem acreditar, repito... Foi o seguinte.
Há cerca de 3 anos o amigo foi submetido a uma cirurgia cardíaca. O evento prodrômico foi a vetusta e já quase hoje inexistente angina do peito. Quem dela já foi vítima, assegura: é uma dor que se faz acompanhar de sensação de morte iminente com profunda angústia. O amigo foi operado e deu tudo certo. Restou-lhe, de toda essa experiência única e indesejável, o terror.
Ocorre que, depois desta terrível experiência, o amigo não mais sai de casa, não come, não bebe, não namora, não se diverte, não visita a família, não sai com amigos, não viaja, não vai à praia... Diria que só respira. Desde então o amigo tem recusado todos os convites que lhe fizeram para conversas amenas, festas, e tudo que represente a vida em sociedade. Consta que não está trabalhando, ou não estava e, se estava, se encontra presentemente afastado por motivo de doença, um problema no joelho consequência de sua vida de atleta na adolescência. Há apenas um único grupo de coisas que ele se permite fazer: ir a médicos, tomar uma lista enorme de remédios, fazer exames, e falar de doenças e planos de saúde com os eventuais poucos interlocutores com quem fala ao telefone, e apenas ao telefone.
Encurtemos a história que há nela muitas brechas a levar a incertezas. O fato é que há cerca de 3 dias o homem me envia uma mensagem, a qual veio justamente atestar de sua vida biológica. Dizia ela precisamente o seguinte: “Irmão, estou precisando de apoio para o meu candidato estadual. É ele quem está me ajudando... Se puder me dar uma força, ficarei muito grato. Obrigado, Tin Gomes 12600”.
  Estupefato, e desejando que a terra se abrisse num enorme buraco, respondi, hora e meia depois: “É mesmo, meu Irmão? E em que este Tin está te ajudando”?
      Ele respondeu que o tal candidato estaria ajudando com o plano de saúde. Devo enfatizar que o homem saiu ileso de sua grave condição, sem nenhuma sequela, com dano mínimo a seu músculo principal. Não se tornou, portanto, um incapaz, um dependente, um inválido... em que pese o fato de ter tido sua moléstia tratada em hospital público. (Bem se vê que o hospital público tem suas inegáveis qualidades e poder de resolução.)
Minha demora deveu-se única e exclusivamente à minha indignação. Em pleno século XXI, o mundo repleto de oportunidades e de viço econômico, a educação emocional e o preparo disponível para as pessoas se libertarem desse tipo de relação com políticos que nada mais fazem senão cuidar de seus próprios interesses, e um amigo chegado me sai com essa pérola... 
Resolvi ajudá-lo, sim, contribuir para que o amigo não seja tragado pela mesmice do mesmo, pela dependência do voto, pela via mais fácil que de fácil nada tem – não votei em quem me pediu e ainda fiz campanha contra seu patético candidato. Alimento a serôdia esperança de que ele volte à vida... Se fizesse o que me pediu, estaria dando mais uma contribuição para sua auto comiseração e auto piedade.
A propósito, alguém aí poderia me dizer se o tal Tin foi eleito? Detestaria saber que foi...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

DANAÇÕES DO BAXIN

Não sei se sabem, mas o amigo Gaudêncio inventou outra viagem, um cruzeiro. Digo cruzeiro, mas poderia dizer um stopover múltiplo com cruzeiro misturado, ou coisa que o valha. O fato é que pegaram o avião em São Paulo e desceram em Dubai 14 horas depois. Passados alguns dias, embarcaram no navio rumo ao extremo oriente. Lá de Xangai, na China, outro avião, dessa vez de volta. Foi mais ou menos isso. Se foi mais, acrescentem; se foi menos, subtraiam. Mas que o esticão foi esticado, isso foi.
Uma penca de gente, mais de oitenta viajantes, só no grupo do Gaudêncio. Pois foram aí incluídos o Mesquita, sua mulher e o filho; o Baxin e a mulher, além do próprio “anfitrião” com a mulher e os filhos. O Mesquita, ressalte-se, diminuiu em muito os acompanhantes, já que o homem até há pouco só viajava levando os parentes de primeiro, segundo e terceiro graus, além dos aderentes. Dessa vez até o cachorro ficou. Uma coisa inusitadíssima! ...
O Baxin... bem, o Baxin merece um comentário à parte. A propósito, não sei se conhecem o Baxin. Ele é meu compadre. Isso bem diz da nossa amizade. Direi que o Baxin também tem seus cachorros. Deixou-os aos cuidados da sogra. O cachorro do Mesquita, digo, o bichinho de estimação do Mesquita ficou aos cuidados do Serjão, que, atualmente, dirige um pet hotel. Assim, o Mesquita gastou um dinheirinho com seu pet, ao passo que o Baxin não fez despesas com os seus, a menos que a sogra lhe tenha cobrado os serviços prestados. Ora, se o negócio do Serjão é hospedar e cuidar dos bichos alheios, que bem receba por isso. Amigos, amigos, negócios à parte, é bom lembrar.
Voltemos ao Baxin.
O Baxin é... digamos... o Baxin é do mato. Dito de outra forma, Baxin é um sujeito simples, que se contenta com pouco, gosta do Roberto Carlos e detesta o Wilson Simonal, aprecia a serra, o interior e a praia, enfim, gosta das coisas comuns do dia-a-dia. Diria que gosta de tudo o que está mais à mão. Um exemplo para demonstrar o que digo é o seguinte – o homem estava em Hong-Kong e sentia saudades escorchantes de Ceará-Mirim. Dias antes de viajar havia estado lá e fizera fotografias e filminhos da procissão comemorativa da padroeira do município seguida por duas dezenas de nativos contritos. Ato contínuo, fez mais filminhos e fotografias do mercado municipal repleto da gente simples a dançar e se divertir ao som de “Eu Não Sou Cachorro, Não”, do saudoso Waldick Soriano. Inclua-se aí uma penca de contumazes e ferozes paus-d’água a contribuir com a algazarra... Percebem o que digo?
Mas há mais sobre o amado amigo. Como direi...? Bem... o amigo gosta de “se danar” ou, de outra forma, ele é um “menino danado”. Ocorre que ele não é mais menino – tem 57 – e, como não é mais menino, a danação que ele faz é aquela que fazem os varões vigorosos. Pois, digamos logo de uma vez, o Baxin resolveu, poucos dias antes do embarque rumo à lonjura do oriente, “se danar”. O diabo é que a mulher o flagrou em suas traquinagens e prometeu, irredutível: – “Com você num viajo mais!”
Devo dizer que há uma opaca nuvem a encobrir os detalhes desses lamentáveis fatos, os quais em breve elucidar-se-ão com o dispersar dessa escuridão temporária, mas o que se sabe é que a mulher do Baxin acabou viajando com a promessa de que não arredaria pé do navio, e que não desceria em nenhuma das cidades programadas a serem visitadas. Ele que se virasse sozinho, ora essa...
Aos dias de hoje, tudo se sabe, tudo se vê, tudo se constata, e o que se constata nas fotografias retiradas durante o périplo é que o casal lá estava juntinho, fazendo fotos de rostinho colado e tudo mais. Ao que parecia, Baxin havia conseguido ser perdoado pelo que quer que tenha feito de danações. Na rede social deixou escapar o mote, numa de suas inúmeras queixas sobre os gastos que estaria tendo: – “Dei-lhe um colarzinho de ouro...” O homem saiu daqui já antevendo a necessidade da recorrência ao vil metal para a solução desse incômodo vacilo – dispunha de quinze mil dólares a entupir-lhe os bolsos.
O que estou sem entender até agora são as queixas revoltadas do homem sobre o preço da cerveja: –“Dez dólares uma long neck!” E emendava colérico: – “Um absurdo! Um absurdo!” Também, pudera... Eita cervejinha cara da muléstia!

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A INEXISTENTE ALEGRE E LINDA MÚSICA

  • O amigo é aquele que diz na cara aquilo que o inimigo também o diria. Eis aí a dificuldade de se distinguir quem é quem. Desde que seja a verdade, que venha de lá o que lhes pareça ser a verdade. A verdade é, ao que parece, uma variável, um xis; não é, de modo algum, aquela coisa absoluta, existente por si mesma. Pois que cada um diga o que bem lhes parecer, desde que sejam francos.
                O amigo fuzilou: -“Minha filha ficaria triste ao ler teus textos.” Perguntei: -“E por quê?” Respondeu: -“Muitas críticas e muita coisa ruim!” Quis dizer ruim o assunto que com freqüência abordo como decepções, tristezas, chifres, a politicalha, a ladroagem vicejante, etc. etc. etc. Sem mais perguntas, o assunto morreu. Passou a falar de um desafeto. Falar de desafeto não é lá uma coisa muito boa. Fazer o quê! Ele podia falar de seu desafeto e eu, que ao vivo sou pior do que on line, tinha de ouvir. Paciência.
                Por isso resolvi: - não falo mais de desafetos, ou melhor, de coisa ruim. Esqueçam o questionador que fui um dia. E, para ser sincero, deve ser mesmo um pé no saco ler sempre uma temática recidivante. Fim. Parei. Enchi. Eu mesmo admito.
                Levantei-me e fui ao toillete. De frente pro espelho, exclamei em silêncio: -“Você é mesmo uma besta! Vá encher o cão com reza!” E fiz força pro xixi sair rápido, respingando em tudo. Toda violência requer um certo comedimento. Afinal, meu objeto de ira era eu mesmo. Saí de lá respingado de xixi. Não sei se alguém me percebeu o perfume a ser vencido por outro olor. “Vá encher o cão com reza”, teria dito a quem me acusasse do perfume derrotado.
                O amigo ainda falava do desafeto. Não comigo, com outra pessoa. Eu merecia mesmo era que ele me puxasse ao canto e me infernizasse, como o fiz a ele com meus textos. Que falasse do desafeto, da escravidão do trabalho, da ex-mulher implacável, e de tudo o que se conversa de ruim quando se quer azucrinar o juízo de um cristão.
                Não foi também à toa que ouvi de uma amiga a confissão de seu temor: - que eu escrevesse qualquer dia sobre ela. Ou que eu pudesse lhe fazer uma crítica num texto “coisa ruim”. Concluí, ao ouvir do fantasma que a assombra, que também sou objeto do medo de algumas pessoas.
                Após um breve lapso – dessa vez não fui ao toillete – concluí também que, ora essa, paro já, já de escrever. Sim, porque tudo o que se escreve, e mesmo a poesia, envolve a vida, as pessoas, as angústias, as tristezas, enfim, uma “coisa ruim”. Daqui a pouco vou ser obrigado a dizer que toda forma de arte é uma purgação e uma terapia. Só se purifica e se trata alguma “coisa ruim”. A música que chora o amor perdido é mais bonita que a do não-amor, ou a da ausência de amor, e mesmo a que declama do amor que deu certo. Estou agora mesmo, neste exato instante, a procurar em meus arquivos uma música bonita que fale de alegria.
                Música alegre não é arte. Vejam, por exemplo, esse forró que não é forró que invadiu o nordeste brasiliano. Ainda que alguns falem de “coisas ruins”, seu ritmo lembra o sujeito que, doido varrido por um amor frustrado, sorrindo sai a destruir tudo numa sanha incontrolável. Não combina com o que disse o Nelson Rodrigues quando perguntava: por que toda grande dor tem de ser sempre ridícula? Donde concluímos que a dor ridícula é a de sofrer chorando na mansidão. Quando o sujeito sofre com estardalhaço e freneticamente lhe damos outro nome à dor – será uma neurose histérica. Eis o que traduz esse “forró” que não é forró: - uma cultura social de neurose histérica. Não há aqui arte. Não há aqui o ridículo e a beleza da grande e sofrida dor.
                Fui pegar uma cerveja. Voltei à amiga sorrindo e aliviado. E já sabia: com essa alegria toda não me sairia nada de bom para escrever. Espero languidamente alguma “coisa ruim” que me venha inspirar com a dor rodriguiana, a doer como a adaga cravada ao peito até que me abrace a morte em seu suave e sem onirismo sono.
                Ainda agora não achei em meus arquivos a alegre e linda música. Ela simplesmente não existe.

    Fernando Cavalcanti, 07.08.2010

     

FUTEBOL COM ESPARTILHOS E CORPETES

Pedro, por acaso sabes quando o Ferrim jogou pela última vez? Acho que foi sexta. Ou terá sido na quinta? Foi um dia qualquer na semana passada. Não sei se voltou a jogar no fim de semana. O que sei é que o Ferrim, que proporciona a seus torcedores emoções equivalentes às de uma partida de paciência, está a inovar. Não sei se viste ou se soubeste – o Ferrim contratou novo profissional para o departamento médico. Dito assim parece que estou a encher lingüiça, já que isso não despertará nenhuma curiosidade em alguém. A curiosidade está no fato de o Ferrim ter contratado uma mulher para ser a médica do time. Aí está a nova.
Acho que era um jogo contra o Horizonte no estádio do próprio Ferrim, cujo nome agora me escapa. Um dos jogadores caiu em campo após um lance violento e eis que, de repente, entra em campo, de salto alto e jeans desbotado, a doutora. Os apupos da torcida foram inevitáveis, com assobios e tudo. Não era para menos - a doutora é esguia e tem as formas curvas, delicadas e rechonchudas. Para chegar ao local onde caíra o contundido foi uma novela medonha. Os sapatos dificultavam, mas o pior era o jeans apertado - quase não a permitia sair do lugar. Não sei como respirava: - os seios eram tão rijos e eretos que imaginei uma dessas peças íntimas a lhe moldar o tronco. Não creio que usasse salto agulha, porque não ficou atolada no gramado, para o bem do lesionado e para a tristeza dos torcedores, que dariam tudo para vê-la desfilar um pouco mais. De fato, ficaria entalada em algum ponto do campo tentando se soltar, enquanto a torcida lhe apreciasse as belas e voluptuosas formas. O espetáculo seria, no mínimo, inusitado.
No lance seguinte, quando foi novamente necessária sua intervenção, a doutora já calçava chuteiras, mais adequadas à ocasião. Ainda continuava imprensada naquele jeans esticado, cujo fecho-ecler estava a ponto de partir-se em dois. Sentava-se ao banco de reservas, em meio aos varões comportados. Olhares furtivos pelo rabo do olho a escrutinavam, na tentativa de se manter a postura de cavalheiros diante de uma dama.
Mas, Pedro, vem cá - com um jeans daquele não há cristão que agüente! Vamos e venhamos – a doutora bem que poderia ter evitado tudo isso. Usasse uma túnica, um hábito, uma burca, santo Deus! Não sejamos tão rígidos – usasse um jaleco, e estaria resolvido o problema. E não houve uma única pessoa que a alertasse quanto aos sapatos? O fato é que ela causou sensação, e estimulou emoções. Nem mais posso afirmar das poucas emoções de se torcer pelo Ferrim. As emoções, doravante, serão de tirar o fôlego. O diabo é ficar a esperar um sopapo ou uma botinada às canelas para se poder apreciar o excitante andar da potranca coral.
Fico me perguntando, caro Pedro, quem terá sido o autor de idéia tão original. Até então víramos juízas, bandeirinhas e até presidentes de clube a embelezar o futebol masculino. Ter uma doutora para cuidar de um plantel de marmanjos é algo realmente novo. O que quero dizer é que o futebol ganha uma nova e extraordinária dimensão quando há mulheres no campo. Os americanos têm lá suas cheerleaders, umas mocinhas pouquinhas, magrinhas, insossinhas. Aqui o pessoal bota para tirar do ramo – a brasileira tem o corpanzil da negra africana, com suas mais evidentes proeminências e reentrâncias. Resultado: - entram pelo campo e acabam na revista “Playboy”, nuas em pêlo. Não digo que será esse o destino da doutora coral – até porque o Ferrim continua a ser o time do “quase” – mas quem sabe não a convidam a posar na coluna do Claudio Cabral? Ou não a entrevistam no Programa do João Inácio Júnior, ela em trajes adequados às suas dançarinas? Só o tempo dirá.
No mais é torcer para que ela faça um bom trabalho como profissional de saúde a bem dos atletas do Ferroviário. Afinal, foi para isso que a contrataram. Depois, que ela finalmente aprenda a se portar em campo. As americanas ficam quase nuas como líderes de torcida, mas isso não chega a causar um alvoroço. Como já disse, faltam-lhes as carnes nos lugares apropriados e com a devida dureza. Já aqui, quanto mais se tenta cobrir, mais a imaginação devaneia e sonha. Isso, evidentemente, não seria da responsabilidade da doutora. Ninguém tem culpa de nascer rechonchudo. Mas que se deve pelo menos passar a impressão de que estão cuidando para evitar suspiros em demasia durante o jogo, isso se deve, sim. Que achas Pedro?

Fernando Cavalcanti, 09.03.2010
    

UMA MÁ NOTÍCIA

Na última sexta-feira o meu amigo Amorim foi assaltado por dos mais atrozes temores que um ser humano possa suportar. Todos sabem que ele é daqueles sujeitos cuja irresponsabilidade e leveza no viver são características redundantes. Não dá muita bola a preocupações e problemas. O que tira o sono do mais simples mortal não faz o menor efeito no dileto amigo. De fato, chega a ser irritante o descompromisso e descaso com que ele nos ouve as queixas e lamentos. Muitos já o descartaram como confidente, sendo a única vantagem de tê-lo como tal a notória discrição do homem. Se resolver confidenciar-lhe um segredo, dorme-se tranqüilo.
            Pois, como já disse, toda essa ginga comportamental sumiu antes de ontem e deu lugar a intensas lucubrações e preocupações. Não é pra menos. Não me lembra agora exatamente se o homem corria risco de ser engaiolado ou se, além disso, viria a perder muito dinheiro. Ainda que muito aprecie o vil metal, não se importa de perdê-lo, desde que não lhe toquem a liberdade. Com efeito, temia ser preso.
            O caso é o seguinte. Na última sexta saiu no jornal a notícia de que um determinado cidadão foi condenado a pagar dez mil reais à ex-sua noiva. Ele a abandonou há doze anos na porta do cartório alegando que não mais casaria. Motivo: ela não mais seria virgem. A estória ganhou a pequena cidade do interior e ela se viu difamada. Não ficou claro se o processo foi por difamação e calúnia, ou se pelo abandono em si.
            Eu sei, eu sei, não dá pra adivinhar onde entra o Amorim nessa estória. O que alguns não sabem é que ele, Amorim, protagonizou uma semelhante. Há não sei exatamente quanto tempo nosso querido amigo abandonou a noiva ao relento, tendo antes o cuidado de pejá-la. Convites enviados, buffet contratado, vestidos e figurinos prontos, imóvel mobiliado à espera dos enamorados, lua-de-mel preparada - tudo em vão. Desde então ela nutre por ele, ao que consta de seu próprio relato, um ódio e um amargor apimentados. O veneno é tanto que serviu também a nutrir a filha, banhada no ventre materno durante quase toda sua formação, da química maligna do ranço e da decepção, tendo continuado a receber outras cavalares doses já a partir da luz do nascimento.
            Temia agora o Amorim um processo igual. Em que pese a lonjura do tempo, passou-lhe pela cabeça a assustadora possibilidade. Não pensou que pudesse prescrever a desfeita. É bem verdade que não a difamou, como fez o outro. Nem sequer lhe deu explicações, se bem me lembro. Sabia que a submetera à vergonha do abandono, e horrorizava-se com uma possível intervenção judicial que o obrigasse a reparar o erro. A notícia do jornal abria um precedente perigoso.
            O homem da notícia era humilde, do interior; Amorim era bem mais abastado, tem posses, vive de renda. Imaginava quanto seria a sua multa, perdendo a eventual causa. Corrigidos os juros e atualizado o valor, supunha a sua pena uma pequena fortuna. Desde sexta ele esfrega as mãos e tenta disfarçar a apreensão.
            Os amigos servem para quê, afinal? Disse-lhe que o visitaria sempre, se preso fosse, mas que não teria dinheiro para emprestá-lo se fosse condenado a pagar qualquer quantia. Além do mais, ele bem podia vender alguns bens para quitar sua eventual dívida. Sobre isso não quer nem ouvir falar, e lembrou o que diz o Falcão: dinheiro não é tudo, mas é cem por cento.

Fernando Cavalcanti, 18.01.2011

O TERROR DA REALIDADE

Em outubro tomei uma decisão: não mais leria revistas nem jornais. Certa vez, há algum tempo, jurei que não lia jornais. Lia revistas até então; doravante nem um nem outro. Não há temor da ignorância. Felizmente a desprezo. O ônus do conhecimento ou a paz da ignorância? Fico com a segunda. Na verdade a decisão tem maior alcance: nenhum noticiário que seja em qualquer que seja a mídia.
Hoje, entretanto, – a curiosidade matou o gato – abri um jornal local. Notícia da capa: cem assassinatos em Fortaleza nos primeiros dezesseis dias do ano; média por dia, seis e uma fração. A continuar assim, serão mais de dois mil ao final. Dizia também a matéria de um certo “território da paz” onde, no último fim de semana, duas pessoas foram mortas. Se lá é assim, tire-se como é alhures.
Resultado de minha curiosidade: morri. Tal qual o gato curioso, morri. Troquei, por motivo de um fugaz momento de vontade de saber o que se passa, minha paz da ignorância pelo ônus de saber que estamos no meio de uma guerra da qual todos são potenciais vítimas. Pior do que o tomar conhecimento do que ocorre em bairros da periferia seria lá ir para verificar se é assim mesmo. Se o fizesse correria sério risco de morrer de verdade. Aqui, da lonjura de meu lar em relação ao epicentro do bombardeio, morro por dentro.
E, já que tomei atitude contrária a uma decisão transitada em julgado, falemos um pouco do que trazem os jornais. Não; não falemos das outras más notícias. Falemos daqueles que as protagonizam, os humanos. O que os conduz?
Quatro são os instintos dos humanos: a fome, o medo da morte, o impulso sexual e a defesa ferrenha da prole. Bem se vê que na lista não consta o assassinato. Exceto quando está a sua vida e a da prole em risco, não há instinto nos humanos para matar. Se não há, por que matam? Dirá alguém que há o crime famélico, e direi que os nobres causídicos e magistrados estão aí para assim julgá-lo. Portanto, é provável que o matar esteja mais para a inteligência do que para o impensado e, como diria o Kiyosaki – ou terá sido o Convey? –, a inteligência não é santa.
Mata-se desde os primórdios. Nas guerras mata-se para conquistar povos e territórios, e para se defender no caso dos ameaçados. Mata-se por ciúme ou inveja, e mata-se para obter vantagens materiais. Caim, o primeiro assassino, matou por ciúmes e inveja de seu irmão, que oferecia bons sacrifícios a Deus, ao passo que seus sacrifícios eram quase nada, uma má vontade enorme. Mata-se por acidente, imperícia ou imprudência. Nem diríamos que no acidente se mata, mas que no acidente se morre.
E em nossa manchete? Por que se mata? É a história das drogas e das dívidas de drogas, os tais acertos de contas. O endividado do crack é pobre. O rico pode usar a velha e conhecida cocaína e pagar bem por ela; e pode também usar um crackzinho de vez em quando, que ninguém é de ferro.
Se só morrem os pobres da droga barata que incapacita, quando virá a solução? A quem interessa a solução? Colocando de outra forma, a quem não interessa a solução? Os jornais adoram: vendem-se mais. Quem mais adora? Ora, os que movimentam o negócio das drogas. E quem movimenta o negócio das drogas?
Continuo preferindo a paz da ignorância. Viram como não vale a pena ter certas informações? Não percam seu tempo. É melhor um bom livro ou um bom filme, de preferência um de terror, já que esses são inverossímeis. O terror de nossa realidade não; esse é tão terrível que causa câncer, aterosclerose e uma bala no peito.

Fernando Cavalcanti, 18.01.2011 

CARNAVAL E LATRINAS

Ouvi, durante muito tempo, desde a mais tenra idade até a adolescência, que eu era um tolo, um besta, um bobão. E sabem por quê? Porque não delirava com o carnaval. Se a regra era - e ainda é – delirar com o carnaval, era um imbecil quem a ela fugia. Era, e ainda é, assim. A diferença é que hoje não sou adolescente. Acolhe-se com naturalidade a frieza e compostura do homem maduro.
            Nos tempos da verdura dos anos, vigia o que dizia o samba sobre o samba: “quem não gosta de samba, bom sujeito não é...” Dir-se-ia haver um certo exagero em querer que os mais novos, todos os mais novos sem exceção, fossem vítimas do vaticínio do Caymmi. Eu estava incluído. Não gostava de samba. Paciência. Nas artérias e veias deveria correr o sangue africano. Se não, morte ao homem branco!
            Não é qualquer um que ouve essa cantilena desde muito cedo e sai mentalmente ileso. Contudo, sobrevivi. E sem seqüelas, o mais importante. Quiseram até me subtrair a nacionalidade. Diziam que brasileiro que é brasileiro gosta de samba e de carnaval. Tinham-se sérias dúvidas sobre minha nacionalidade. Se não fosse brasileiro, seria o quê? Saí voando a ver se a Casa de Saúde César Cals ainda repousava em solo nacional. Para minha tranqüilidade ela ainda estava ali, próxima à Praça da Lagoinha, na Avenida do Imperador.
            Entretanto, é bom aproveitar para desfazer essa confusão. De fato gosto de carnaval, das marchinhas, do bom e pacífico carnaval tradicional. Já estou aqui aguardando o Carnaval da Saudade do Clube Náutico com as marchinhas clássicas que nos levam a viajar no tempo; e detesto o “novo” carnaval, com aquele negócio de axé, pagode e outras invenções sem pé nem cabeça. Carnaval e samba são coisas distintas. Aí se deu a confusão que ora se desfaz.
            Para provar o que digo, fui ao Paracuru logo após a adolescência. Era um carnaval de rua, desses em que nos lambuzamos de tudo. A convite de um amigo, fui. Alugaram a casa de um pescador e lá fomos nós. Depois, mais tarde, descobri que a casa abrigava mais de quarenta pessoas quando ali não caberia dez. Cheguei pela manhã e fomos à praia. A cidade fervilhava e a canícula era insuportável. Começamos a bebericar e em pouco tempo eu estava bêbado. Saímos dali direto para a praça principal onde acontecia o famoso mela-mela.
            À meia-noite voltamos para a casa. Todos estavam num pileque de dar dó. Eu era uma mistura de cachaça, suor, maizena, areia e xixi. Não dormi – desmaiei numa das várias e incontáveis redes que estenderam na casa, entre os quartos e as varandas. Não se via muito, seja devido a embriaguez, seja devido a escuridão.
            Acordei por volta das três da manhã com uma sede de maratonista. Estava imundo e desejava desesperadamente tomar um banho. A cachaça era boa e não sentia dor de cabeça. Dali a pouco veio uma vontade enorme de “ir ao banheiro”. Levantei-me da rede e saí em busca da geladeira, pisando em gente que dormia ao chão. Na geladeira a decepção e o infortúnio – estava vazia. Nada para comer ou beber. Avancei na torneira do banheiro em busca de beber e me molhar. O exaspero tomou conta de mim – nenhuma gota d’água. A sede era descomunal e minha saliva era espessa e rala. Os lábios secos rachavam. A vontade de “ir ao banheiro” era quase incontrolável e levantei a tampa do reservado.  
            O reservado estava cheio até a tampa de... deixemos assim mesmo. Não poderia ser diferente. Uma legião de bêbados sem água não pode gerar uma privada que não aquela.
            Desde tal estripulia brinquei muitos e muitos carnavais, e hoje o faço com uma única e importante ressalva: além de um confortável lugar para dormir, um bom banheiro e água em abundância, exijo um quarto confortável e escuro com condicionador de ar para uma boa noite de sono. Sem tudo isso me é impossível permanecer no recinto. Faço como fiz no Paracuru – dou o fora.

Fernando Cavalcanti, 24.01.2011

NITERÓI E DE VOLTA AO RIO

Nunca se vem – ainda cá estou – a Niterói. Sempre se vem ao Rio. O diabo é que o estado tem o mesmo nome da cidade, já que se chamou o lugar de Rio de Janeiro porque era janeiro e parecia ser a foz de um rio.
            No tempo da Guanabara, o estado, quando se dizia “Vou ao Rio!” estava-se querendo dizer que se ia à cidade (então) maravilhosa. Hoje ainda é assim, mas não tanto assim; há metáforas e outras figuras de linguagem a nos confundir. (O avião taxia.)
            Tenho parentes em Petrópolis, amigos em Itaperuna e Niterói, conhecidos em Campos, sócios em Macaé, e todos dizem:- “Moro no Rio.” Ninguém está mentindo, mas também ninguém está falando a verdade. Antes todos vinham ou iam (o avião já está a voar) ao Rio.
            Pasmem, então: vim a Niterói. Antes de embarcar, na vinda, meu filho me ligou e eu lhe disse: -“Vou ao Rio.” Ele certamente está crente que vim ao Rio que era a antiga Guanabara. Esqueci de lhe detalhar meu destino final. Aliás, não se vai a Niterói pelo ar (o avião já voa há 20 minutos) sem ir ao Rio da ex-Guanabara. Estou certo de que ao desembarcar de volta em cerca de duas horas e meia o porei a par de tudo. Há de se admirar, é provável; dirá estupefato: -“Niterói?” Tudo faz parte da posição secundária a que se relegou a cidade diante da atual capital.
            Mas, afinal, que mal há em vir do Ceará a Niterói? Antiga capital do estado, Niterói tem belezas naturais que imitam as belezas cariocas. (Lembre-se que carioca é adjetivo exclusivo para o que se origina na cidade do Rio de Janeiro). Em Niterói o sotaque é indistinto daquele do outro lado da baía; o trânsito é igualmente infernal; as praias também são lotadas; o calor no verão não fica atrás; as mulheres são tão belas quanto; as favelas imitam suas correspondentes vizinhas; e, pra falar a verdade, estar em Niterói é como estar no Rio do Pão de Açúcar e do Morro da Urca. O que separa as duas cidades é uma pouca quantidade de água, quase um temporal fortalezense, desses que dissolvem nosso asfalto.
            Tanto é assim que ontem quando visitava a Fortaleza de Santa Cruz me bate o telefone o Chico e eu lhe digo: -“Estou no Rio.” Há de ter contaminado a alma do brasileiro vivo e o ainda por viver a noção inamovível de que o Rio da Prado Júnior e da Praça Mauá é o Rio de todas as cidades do estado. Imediatamente corrigi, tentando me livrar do vírus congênito: -“Vim a Niterói.” Para minha surpresa ele nada perguntou. Não quis saber o que aqui vim fazer. (As excentricidades são sempre motivo de indignação e admiração pejorativa.) Combinamos uma cerveja para a volta, quando seguramente – aí, sim! – fará inúmeras perguntas.
            Já mato a curiosidade dos amigos dizendo que vim a Niterói – já estou voando de volta neste exato momento – ver amigos e passear, se possível, como de fato foi. Tendo amigos também no Rio da Quinta da Boa Vista, lá – o avião já sobrevoa a Bahia – fui tomar um chope com eles, jogar conversa fora, saber dos de outras cidades, quem morreu, quem separou, quem levou chifres. No cômputo geral tivemos bom saldo; ninguém morreu, muitos separaram, alguns levaram chifres. E assim nos despedimos sob o imenso desejo e a promessa de reencontro em breve, quem sabe, lá no Ceará.
            O fato é que passar uns dias em Niterói em casa de Cacau – aquela que interpelou o paciente diabético queixoso da mulher – foi ainda mais deslumbrante do que me hospedar no Barão de Tefé ao lado do hospital onde estagiei em cirurgia vascular. Andando por Icaraí, São Francisco, Charitas e Jurujuba, as praias da baía, tinha sempre à minha frente o Rio de Janeiro-cidade, com a rocha do Pão de Açúcar e sua dureza pétrea perceptível e fixa, a dominar a paisagem com o Corcovado mais ao fundo. Do lado das praias oceânicas ainda lá estava, majestosa e imponente, a rocha da entrada da baía tendo ao fundo a Pedra da Gávea e os diminutos prédios de Copacabana. E por onde andássemos lá estava o Rio, como uma pintura de fundo, ora refulgente com os cálidos raios do sol causticante de seu verão implacável, ora nebuloso, evanescente e opaco, quase indiscernível dentro daquela bruma ígnea e leitosa, ensaiando um alívio na canícula infernal. Foi tentando escapar daquela imagem engolfante e persistente, subindo os morros niteroienses em busca de suas incontáveis fortalezas militares, que nos deparávamos novamente com aquele Rio obstinado em sua exuberante beleza. Finalmente, para minha surpresa e fôlego entrecortado, avistei a Niterói de Araribóia, a região das águas escondidas, repletas de imagens semelhantes e recortes belíssimos. Para fora, no oceano, barcos que vão e vêm.
            Como me ensinou o meu querido amigo Ítalo Rachid, decolar é uma opção; pousar uma necessidade. O avião já está descendo.

Fernando Cavalcanti, 31.01.2011

"MULHER É PRA GENTE COMER MESMO!"

O sobreaviso daquele fim de semana era de sua responsabilidade.  Sobreaviso é um plantão em que o médico não está presente, mas implica na mesma atenção e compromisso. Má sorte, já que a festa na casa do chefe prometia.
Entretanto, o próprio chefe deu-lhe o aval para comparecer, desde que fossem cumpridas todas as obrigações de praxe. Por outro lado, todos os doentes internados estavam bem, com exceção de um que estava morre-não-morre. E não havia mais o que fazer. Se morresse ele teria que vir de lá prescrever-lhe o atestado de óbito. Era parte da rotina. Defunto dali não saía sem atestado. Fosse de dia ou de noite, feriado ou dia útil, o defunto saía com o enterro desembargado.
               Passou, então, bem cedo na enfermaria e visitou todos os doentes. E ainda pôde contar com a ajuda de Dr. João Florêncio, decano do Serviço, rico em anos de vida de médico, mas jovial e sedento da companhia dos residentes da casa. O Parkinson já não mais lhe permitia o ato cirúrgico, mas seguia firme na clínica, nas sessões, juntas e visitas, emprestando sua magnífica experiência e elegante saber médico. Terminado o serviço lá pelas onze, seguiram de carro, ele e Dr. João, para a casa do chefe, para o churrasco.
                                                                                  ***   
           Demorou um tempo até sentir-se à vontade. Foi o chefe quem lhe deu a senha, servindo-lhe uma cerveja. E haja picanha. O mesmo chefe às vezes o servia dizendo:
                -“Essa é pra diretoria!” - e sacava do enorme espeto um naco da carne suculenta e gordurosa no prato à sua frente. Sendo assim, já se sentia em casa. Ou melhor, era membro da “diretoria”. Recusou a falsa modéstia dos boçais que não se agradam e já tirava uns dedos de prosa com um ou outro desconhecido. E dentro em pouco se sentava ao lado de Dr. João Florêncio que, apesar da idade e do tremor das mãos, esbanjava-se na cerveja.
Não sabia de onde saíra e repentinamente se viu com um violão ao colo, e a seu lado, o oposto de onde sentava Dr. João, uma bela loira olhos cor de esmeralda. Sussurrava-lhe ao ouvido, quase lhe mordendo a orelha:
                -“You are a very handsome man!”
 Percebeu, então, que a loira estava cuidando para que nada lhe faltasse. Da cerveja à mais exuberante picanha a loira lhe provia. Sem falar nos olhares fulminantes e nos sussurros libidinosos, entre uma e outra música. Quando voltava do toalete ela o abordou de frente e pulou-lhe ao pescoço num beijo quente e molhado. Ele cedeu, mas não se sentiu à vontade. Afinal, estava na casa do chefe flertando ou se deixando flertar pela atirada amiga gringa de sua filha. E o pior: todos sabiam que era casado. Sabiam também que seu casamento não era lá esses balaios todos, mas... E daí? Era casado e estava na casa do chefe com a língua metida na boca da amiga da filha, que diabos! Poria a culpa na cerveja. Os outros haviam de estar de tanque cheio também. “Fodam-se”, pensou. E desceu com a loira para a rua onde estariam mais à vontade. Caía a noite.

                                                                              ***
             Acordou na madrugada em seu quarto no hospital – morava no hospital - com a loira ao lado nua em pelo. Novamente as carícias, novamente o amor. E despachou a mulher num táxi meia hora depois.
                Pela manhã, na enfermaria, a ressaca da estripulia. Ainda bem que era domingo e não teria que se envergonhar diante de ninguém. Teria mais um dia para pensar em algo, ou esperar que a memória alheia falhasse sob o efeito de suas libações. Entregar-se ao trabalho naquele momento era a única opção.
                Só não contava novamente com a ajuda de Dr. João Florêncio, como no dia anterior. Cumprimentou-o meio sem graça e procurou não dar espaço para conversas. O decano, experiente também da vida leiga, percebendo-o arredio, perguntou:
                -“Ó, Fulano, que se passa contigo que estás tão triste hoje?”
                Ele, sem outra saída  e preocupado com os dias por vir, achou melhor desabafar:
                -“Ah, Dr. João... tô muito desgostoso com o que fiz ontem em casa de Dr. Beltrano... Peguei a amiga da filha do homem na frente de todo o mundo! E o pior: trouxe-a para cá e... bem, o senhor sabe, né?”
                Dr. João com as mãos enfiadas nos bolsos e o olhar reprovador do sentimento de culpa alheio atirou sem piedade, quase gritando:
                -“Então é isso? Besteira, rapaz! Mulher é pra gente comer mesmo!”

Fernando Cavalcanti, Rio, 1998

GOSTOSÃO

Passou a receber bilhetes, pedaços de papel inteiros de pequenos blocos ou rasgados de maiores cadernos. Diziam de paixão, de tesão, de todo tipo de safadeza. Quando entrava em sala de aula buscava com os olhos a autora. Nem mesmo uma mínima suposição seria possível. Podia ser uma das bonitas, mas também podia ser uma das feias. Começava a achar que eram os colegas a lhe pregar uma peça.
            Nunca soube como conseguira seu telefone. O fato é que certo dia recebeu o telefonema da pequena, dizendo que ao dia seguinte o procuraria pessoalmente depois das aulas.
            Dali a uns poucos dias ia saindo da sala quando alguém o puxou pelo braço. Virou-se e deu de cara com uma bonita moça. Ela disse: -“Sou a fulana.” Sentaram-se a conversar. Ela repetiu tudinho o dos bilhetes. Ele ouvia passivamente e ao final do relato foi taxativo: -“Tenho namorada.” E disse mais - que se topasse seria só sexo. Ela ficou calada; ergueu-se e saiu.
            Passava o tempo e não trocaram mais palavra. Os bilhetes cessaram. Nem para ele olhava. Julgava que havia desistido. Sua sinceridade fora contundente, um balde d’água fria. “Melhor”, pensou. Não queria trair a namorada, embora com ela não tivesse atrevimentos. Sexo com a namorada só depois do casamento. Um dia casaria com ela.
            Já iam quase três meses depois quando a bonitinha da sala lhe procurou novamente. Segurava um calhamaço de cor parda. Fez o gesto de entregá-lo e disse: -“Estou pronta. Fiz todos os exames. Está tudo aí.” Fizera um check-up para o sexo. Ele ficou de queixo caído. Precisava inventar, ali, de supetão, uma desculpa. O espectro da namorada pairava no ar. Tentou se sair com a da pindaíba: -“Não tenho dinheiro pro motel.” Ela já tinha tudo planejado: -“Então vai ser lá em casa.”
            Não teve jeito. Quando seus pais saíram certa noite, ela bateu o telefone para ele: -“Vem agora!” Ele saiu cambaleando na bicicleta, suando frio. Moravam próximos. A coisa era para ser rápida. O coração quase lhe saía pela boca.
            Despiram-se numa ligeireza colérica. Carícias lascivas, beijos molhados, mãos bobas se misturaram ao nervosismo recíproco. A coisa ia acontecer quando uma luz forte irrompeu pela janela do quarto: -“É meu pai! Corre!” Ele saiu como um raio. Teve que pular o muro carregando a magrela, a bicicleta. Depois se perguntava como conseguira tal proeza.
            Dias depois do fracasso inicial, bate o telefone e ele atende. Era ela: -“Vem!”
            Novamente as preliminares, a diaforese, o sentimento de culpa que já lhe crescia por dentro. Já não podia atribuir o que acontecesse ao atropelamento do acaso. Por isso saltou de cima dela com a respiração ofegante e bradando: -“Não posso! Não posso!” E correu para a saída quase caindo tamanha a pressa de vestir as calças.
            Dali em diante ela infernizava-lhe a vida em telefonemas diários: -“Tu és viado! Só pode ser!” Ameaçava: -“Vou contar pra todo mundo que tu és franga!” E acrescentava: -“Esse corpão de homem é só fachada!”
            Ele não se abalava. Estava tranqüilo. Não temeu pelos eventuais boatos, que nunca vieram, e o tempo tudo resolveu. Cessaram os telefonemas e as ameaças à sua virilidade. Algum tempo depois ficou sabendo: a fulana era maluca de tomar remédio controlado e tudo. Vez ou outra era internada em manicômio. E tudo depois de dar para o bairro inteiro.

Fernando Cavalcanti, 02.02.2011

CONTOS DE TERROR

I

            A senhora chegou ao setor de Emergência com profusa hemorragia. Dir-se-ia uma menstruação fora de época. Aos sessenta e cinco anos, há quase trinta não tinha fluxos. O que seria aquilo?
            O marido, aos seus já quase setenta, estava apreensivíssimo. Pudera! O sangue ensopara duas toalhas e ainda fluía aos borbotões e coágulos. Ambos suavam em abundância, ela em choque hemorrágico, ele em choque nervoso. “Por favor, acudam a minha mulherzinha que já, já ela morre!”, bradava ele inconsolável. Correndo chegaram médicos e enfermeiros.
            Entraram com ela para a sala de exames e ele ficou a sós. Andava de um lado ao outro esfregando as mãos, com a respiração entrecortada e suspirante. Demorava-se ao fitar o teto como a fazer uma prece muda. Como aquilo poderia estar acontecendo? Ela estava muito bem até aquela tarde. Saíra para fazer compras. Magalhães, o motorista, a levara. Houvesse ocorrido algo e ele lhe teria dito. Seria um câncer? Oh, Deus, não podia ser!
            Deitada na maca, estava calma. Uma enfermeira a colocou em posição e retirou-se. O médico aproximou-se e, antes de sentar-se para o exame, ela o interpelou: -“Doutor, foi depois de eu fazer sexo com meu motorista.” Abismado, o médico colocou-lhe o espéculo e pôde verificar a extensa laceração do fundo de saco vaginal.
            Lá fora Abílio, o marido, rezava.

                                                       II

            Lucimar e Albino se amavam. Pretendiam casar. Faziam planos.
            Mas o pai da garota tinha outros. Albino era um pé rapado, dizia. E resolveu tudo num piscar de olhos. Lucimar casaria com Jorge, que era um bom partido.
Era no tempo da jovem guarda.
            Ao pobre Albino restou a decepção. Casou mais tarde com outra pessoa, uma boa amiga. Seu grande amor morrera para si.
            Vinte anos depois – o destino não perdoa – Lucimar avista Albino. Foi no supermercado. Faziam compras. Aproximou-se num misto de surpresa e ansiedade. Temeu tomá-lo por outro. Mas eis que era ele mesmo.
            De parte a parte perguntou-se o de praxe, como vai a vida?, o trabalho?, onde está fulano?, e o casamento?... A intimidade com algumas pessoas não acaba ainda que passem cem anos. Ela confessou: passava por uma crise no casamento. Negócio sério. Por que não combinavam um almoço? Assim poderiam conversar melhor.
            O telefone tocou e Jorge, marido de Lucimar, atende. Do outro lado uma voz masculina foi confessando: -“Fomos ao motel, tua mulher e eu.” Antes de desligar identificou-se: -“Sou eu, o Albino. Lembra de mim?” O outro se lembrava. Ainda deu tempo expor suas razões: -“Não quero nada com ela. Era uma tara que guardei por vinte anos.”
            Chamou a mulher ali mesmo, na hora, o telefone já tocando o sinal de ocupado. Pediu a confirmação da história. Ela nada negou, antes teceu detalhes desde o inesperado encontro até a conflagração do ato. Ele retirou-se sem nada dizer. Sobre o outro ela pensava: “Cafajeste!”
Lá fora o sol brilhava.
            Os dois casais estão juntos até hoje.   

Fernando Cavalcanti, 04.02.2011

A MARCA DA DISSENSÃO GRATUITA


Uma amiga escreveu para me informar, de forma didática, e como se me fazendo um supremo favor, o seguinte: -"Mulheres não são escatológicas!"
         O caso é que escrevi um texto onde conto dos problemas digestórios de meu antigo amigo Amorim (http://umhomemdescarrado.blogspot.com/2011/11/peidorreiro.html). Sem usar da falsa modéstia, devo dizer que o episódio é por demais hilário para se o desprezar. E por que digo isso? Porque minha amiga, para completar, fuzilou: -"Não lerei!" Vejam que o título do texto, "Peidorreiro", dá bem uma noção de qual seja o mal digestivo a afligir meu querido e atribulado amigo. Alguém esperaria algo mais ou algo menos?
          Devo dizer, assumindo desde já minha colossal ignorância, que pensei a princípio que a amiga estivesse a se referir a um suposto fim próximo de meu amigo. Imaginei que quisesse externar, falando por todas as mulheres do mundo, o elevadíssimo senso de otimismo do mulherio quanto ao fim da vida. Foi somente no segundo seguinte, quando disparou a frase que denotava sua indignação, que percebi que ela se referia à escatologia sinônimo de coprologia, o estudo científico das fezes para fins diagnósticos.
         Ela, presumi, dizia que o mulherio não se presta a este estudo, ou a conversar sobre ele, ou a ler qualquer coisa que lhes faça lembrar minimamente a sebosa matéria. Quando têm filhos não mais lhes trocam as fraldas e cueiros (Sou do tempo dos cueiros). Os pequeninos são trocados pelas babás ou pelo pai. É provável que não haja, no mundo inteiro,  uma única e solitária mulher a trabalhar em laboratório de análises clínicas, a examinar material fecal de quem quer que seja. Presumo que só homens estejam sendo contratados para essa tão ignóbil função. Há uma abjeta escassez de mulheres no laboratório, e ainda mais – há uma escassez de mulheres na Proctologia, a área da medicina que trata das doenças da parte baixa do tubo digestivo. A bem da verdade, em toda a minha vida de médico só conheci três mulheres na área da especialidade. Duas conheci pessoalmente e a terceira é uma sumidade na matéria, a doutora Angelita Habr-Gama, conhecidíssima até em além-mar. E por que tudo isso? Porque as mulheres não são escatológicas, como fez questão de frisar minha amiga.
         O que é necessário que seja dito é de uma obviedade que beira o desnecessário, e que a amiga não percebeu: o texto não foi escrito para as mulheres. O texto foi escrito para quem tem senso de humor, para quem aprecia o riso e galhofa após uma boa história, para quem aprecia banhar-se em endorfinas e exorciza a carranca. Em suma, o texto não tem outra intenção que não seja o prazer do divertimento, para os se comprazem em se divertir com uma boa história. Acima de tudo, e numa única palavra – o texto foi escrito para o ser humano normal, sem distinção de raça, gênero, ou religião.
         O que é provável que tenha ocorrido é que o texto foi postado em página de rede social onde abundam mulheres. Minha amiga julgou, e talvez tentasse me dizer exatamente isso, que ele não convinha bem ao "lugar". Mas... Será que todas as mulheres que o leram – se é que houve alguma destoante – pensam também que as mulheres não são escatológicas? Se for o caso estaremos diante de uma rebelião de mulheres contra um reles texto de humor. Seria a primeira revolta contra a pilhéria de salão.
         Após sua intervenção, e ainda temendo ser mal interpretado, respondi-lhe com uma pergunta: "-E nem senso de humor têm as mulheres?" Dizem lá os entendidos da personalidade que o senso de humor é a marca de uma inteligência privilegiada. Não se fala do humor grotesco, do humor que humilha, do humor que constrange, mas do humor que se tira daquilo que de outra forma seria um fato ou um elemento natural ou até aborrecedor.  "Basta observar: quanto mais fino o humor, mais relações soube a pessoa captar entre os nomes e as coisas, os nomes e os outros nomes, as coisas e as demais coisas". Se assim for, que dizer de quem não o tem?
         Não é uma questão de gênero, minha amiga. É uma questão de cérebro.

Fernando Cavalcanti, 16.12.2011

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...