terça-feira, 25 de junho de 2019

A MORTE COMO A GOTA D'ÁGUA

Por sorte encontrei hoje, ao almoço, o meu amigo Monteiro. Não devem conhecê-lo. Não estava a sós. Fazia-se acompanhar do Campos, outro querido amigo, imigrante temporário vindo das bandas do Piauí.
            Não sei se perceberam, mas está a ocorrer no Ceará uma invasão. Digo logo de cara e sem rodeios – o Piauí está invadindo o Ceará! Não sei se é o caso de avisar às autoridades do estado, mas quem não ainda percebeu, acautele-se.
Estamos diante de uma invasão maciça, dessas em que os invasores trazem toda a tralha e santos de pau oco. Não há um único dia em que não tropece em alguém do Piauí. E nem falo dos desconhecidos com quem cruzo nas ruas e esquinas da cidade. Cheguei a pensar que vieram resolver a questão do litígio que há sobre a divisa, mas lembrei que, após mais de cento e quarenta anos, os governos dos dois magníficos estados chegaram a um acordo há mais de dois anos. Não é, portanto, a divisa a causa da invasão.
Seria talvez o meu hábito de transeunte? (Sou um transeunte. Quem de vocês aí é transeunte? Ninguém, com certeza. Transeuntes andam a pé. Esse é dos pleonasmos mais necessários que conheço. Não se contam como transeuntes os que atravessam a rua para entrar no carro.) O hábito de se misturar ao povo impõe encontros inusitados. Bem poderia ser daí minha percepção dos invasores do Piauí.
Não seria por ser transeunte. Não ando por aí falando com quem não conheço. Só posso supor que haja milhares de piauienses entre meus companheiros transeuntes. Ademais, lembremos que no Piauí não há sotaque. Nem no Maranhão. Sejamos honestos: não há sotaque no Piauí nem no Maranhão. Se houvesse eu reconheceria um invasor do Piauí a quilômetros de distância. Ao contrário, se estiver na Cochinchina reconheço um cearense. Basta que ele emita um som, uma única vogal que seja. Portanto, não saberia dizer, dentre os transeuntes que não conheço e com quem cruzo diariamente, quem é ou não é do Piauí.
É nos hospitais onde encontro o maior número de invasores. Eis aí a verdade. São médicos, médicos residentes, enfermeiras, serviçais, etc. etc. etc. Antes da invasão piauiense, as maiores diásporas conhecidas eram a dos judeus e a dos sobralenses. Sim, o povo de Sobral espalha-se pelo mundo como formigas. De lá saíram o Renato Aragão, o Belchior, os Ferreira Gomes, os Lustosa da Costa, os Paula Pessoa, e outros, e outros, e outros. Depois veio o Casoba, o Pedro Olímpio, cujo nome foi uma homenagem a outro ilustre sobralense, o Domingos Olímpio, o Olimar, e o meu querido César Augusto Ferreira Gomes de Andrade, o “Sobral”. Seu primeiro destino foi Fortaleza. Depois invadiram o mundo. Agora o pessoal do Piauí, dentre eles o meu amigo Campos. Abster-me-ei de enumerar os invasores piauienses conhecidos, visto que, ao que parece, ainda outros virão.
Eu ia falar do Monteiro. Falemos do Monteiro. Durante o almoço me dizia ter tomado uma decisão sobre o trabalho. Queria ter uma boa qualidade de vida. Por isso recusara uma oferta de emprego, mais um emprego. E contou-me que tomara essa decisão há uma semana no cemitério, durante os funerais de alguém. Foi no São João Batista. Enquanto caminhava entre lajes e túmulos, lia os epitáfios e as datas de nascimento e morte. E pensava que estes ex-vivos tiveram uma curta vida, cheia de dissabores, esforços inúteis, sofrimentos desnecessários, alegrias efêmeras. Estava em dúvida sobre mais um emprego. Com efeito, já antes do cemitério não via com bons olhos a ideia.
Eis então que ali, entre os que já viveram e não vivem mais, seguindo o cortejo fúnebre, decidiu: -“Não vou aceitar.” E de lá saiu como se houvera tirado de sobre os ombros um peso enorme que quase o esmaga.
É sempre muito bom olhar nos olhos daqueles que estão felizes por saber o que querem na vida e da vida. Despediu-se ao final com um forte aperto de mão, como se eu tivesse contribuído de alguma forma para sua escolha.

Fernando Cavalcanti, 15.12.2010 

TEORIA DO MARICAS

Sempre lembro um conto do Nelson Rodrigues cujo título, se não me trai a memória, seria “Vestido de noiva”. Em resumo, é o seguinte. Eusebiozinho é um garoto que cresce e é criado à sombra de três tias velhas que lhe enchem de mimos e satisfazem todas as suas vontades. Um dia um tio, único homem adulto da família, repreende as tias alertando-as para o risco de o transformarem num maricas. A solução era arranjar-lhe, com a máxima urgência, uma noiva e, em seguida e sem delongas, um casamento.
Noiva providenciada, começam os preparativos para o casório dentre os quais a confecção do vestido para a nubente. Resultado da ópera – Eusebiozinho encanta-se com o vestido e seus adornos, sem dar a mínima para a noiva. Então, no clímax do enredo, uma de suas tias o encontra enforcado em seu quarto usando o vestido. O rapazola era efeminadíssimo, como bem se pode depreender.
Eu mesmo, primogênito e premiadíssimo com os zelos e cuidados de minha mãe e uma tia-avó que vivia conosco, fui fonte de preocupação por parte de meu pai que temia desfecho semelhante, ainda que usasse fraldas. Destarte, tratou de pejar minha mãe na maior brevidade de tempo a fim de desviar sua atenção de mim evitando, assim, meu "efeminamento". Já crescido, o velho me tratava na disciplina da palmatória. Resultado: nunca anelei me travestir. E mais: tudo que consegui foi com esforço pessoal, disciplina, abnegação e ajuda e perdão do Senhor.
Por tudo isso e algo mais é que muito me irritam os mimos e as deferências excessivas a quem quer que seja; é uma coisa odiosa e perniciosa, sem dúvida. Às crianças pode-se até entender, ainda que o sinal de alerta esteja sempre a relampejar e o tempo ainda permita as necessárias correções. Porém, mimos e cuidados excessivos a um adulto, macaco velho, cabelos em falta e de barriga saliente são algo detestável e abominável. Imaginem aí o cabra velho que ninguém tem coragem de contrariar. Vale ressaltar que não se trata do chefe da empresa nem do fiscal de rendas – é apenas e tão-somente um homem maduro e, usando uma do Casoba, quase podre.
Uma característica desses tipos (ainda bem!) singulares é o seu caráter manipulador e sedutor. Seu poder de atrair e de subjugar o coração do desavisado é a sua marca registrada. Não há quem resista ao seu brilho. É uma estrela de primeira grandeza cujo núcleo é tão quente quanto consumidor e destruidor. Uma vez cativo o coração de sua vítima, é capaz de manipulá-la a seu bel-prazer. Quem jamais foi atraído por um desses espécimes? É um amigo, um colega de trabalho, um vizinho, um vendedor, um familiar. Com a mesma facilidade com que tece, destece; com a mesma rapidez com que constrói, destrói. Aos atentos sucumbe. Aos desatentos subjuga.
Assim como me embrulha o estômago o existir desses espécimes, causa-me náusea a persistência do desavisado que de desavisado nada tem. O desavisado que não é desavisado é, antes de tudo, um medroso, um pusilânime, um fraco e – pior! – um anti-amigo. Lembremos: anti-amigo é aquele cuja amizade nada me acrescenta; é aquele que perdeu as potencialidades de uma rica amizade; é aquele que deixou por tanto tempo na geladeira a amizade que ela acaba por apodrecer ou se fossilizar.
Temos no maricas mimado com seu(s) anti-amigo(s) a amizade que Cícero classificou como a amizade por interesse onde um dos componentes é, em última análise, um bajulador que teme contrariar o outro. Esse cenário é impróprio ao vicejar da verdadeira amizade, e seus ditames estão longe dos bons princípios desta. Eles se mantêm unidos por fracos elos de conduta e princípios e seu destino é a cristalização sem vida daquilo que, de fato, nunca existiu.

Fernando Cavalcanti, 18.12.2010

UMA AGNÓSTICO ATEU

Estive hoje lendo umas crônicas do reconhecido escritor cearense Lira Neto. O homem não é pouca coisa. Biografou a Maysa, o Castelo Branco, o José de Alencar, o Padre Cícero e, neste exato momento, está em campo escarafunchando a vida do Getúlio Vargas a fim de escrever-lhe a biografia. Por todas elas foi muitíssimo elogiado pela crítica. Confesso: não li (ainda!) qualquer um deles.
Mas gosto de suas crônicas. E muito me chamou a atenção e intrigou uma intitulada “Anotações de um pai agnóstico”, onde ele externa seu parecer de que não saberia dizer se existe ou não existe Deus e o reflexo dessa sua visão na educação de sua filha. Prefere que ela escolha sua religião quando adquirir discernimento, sem imposições e pressões. O problema é que, ao final do texto – na última frase do texto - o homem diz: “Deus pode não ter criado o homem, mas o homem sentiu uma necessidade imensa de criar Deus.” (Como ontem, ou antes de ontem, fiz um comentário sobre a matéria de capa da revista Veja desta semana relacionada ao tema, senti-me mais uma vez impelido a novo comentário.)
De agnóstico ao início do texto foi a ateu ao final. É isso ou está mais inclinado a referendar a inexistência do Criador. De qualquer modo, não batizou a filha no catolicismo, uma prática secular. Nem a batizou em “igreja” alguma. Ela decidirá.
Se o homem é agnóstico, terá procurado as respostas? Vejamos o que é o agnosticismo, segundo o pai dos burros: “pode-se dizer que o agnosticismo, como atitude intelectual, tem duas vertentes. No terreno filosófico, consiste em negar qualquer possibilidade de conhecimento fora do terreno da ciência e do pensamento racional. No terreno religioso, consiste não em negar a fé ou as afirmações nela baseadas, mas em negar que essa fé e essas afirmações tenham ou possam ter suporte racional. Em ambos o casos, o pensamento agnóstico se baseia na razão, na racionalidade e no conhecimento científico. No segundo caso, ao não negar a metafísica, a fé e os fenômenos supranaturais, está, racionalmente, deixando aberta a possibilidade de aceitá-los, se e quando explicáveis pela razão.”
O problema é a ciência! Não sei se lembrarão do princípio da dualidade do elétron. O elétron às vezes se comporta como partícula, ou matéria, e às vezes como onda. Onda é energia a se propagar em meio material ou não material (Estamos esperando se resolver a estória da matéria escura e da energia negra. A luz, que é uma onda eletromagnética, a princípio não necessitaria de um meio material para se propagar. Com a matéria escura aí a vir a existir, não haveria vácuo. Uma confusão!) Então o elétron é matéria e energia. NÓS somos matéria e energia. TUDO é matéria e energia! (Evitemos escrever a famosa equação do Albert.) Imagino que o Criador sabe fazer com as duas muitos e muitos “fenômenos supranaturais”.
(Por que foi mesmo que eu escrevi o que escrevi no parágrafo anterior? Ah! Lembrei!) Existe um enorme grupo de cientistas renomados e sérios que fundaram o Criacionismo Científico. Seus poderosíssimos argumentos – todos baseados no que a ciência do homem tem de melhor – refutam elegantemente (o Richard Dawkins adora chamar a evolução de “elegante”) TODOS os postulados amplamente aceitos atualmente para assuntos da máxima importância como a origem do universo, a evolução neo-darwiniana e o universo em expansão. Não vou me deter nos vários temas, pois há farta literatura a respeito escrita por respeitados cientistas para leigos como nós. Faço esse comentário an passant apenas para sugerir ao querido Lira Neto que não há mais, hoje em dia, razão nenhuma para se dizer agnóstico por uma simples mas não menos espetacular razão: a ciência está apontando para a existência de Deus. Estou aqui agarrado com “O relojoeiro cego” do senhor Dawkins, e digo: nunca vi tanta lingüiça enfiada num só barbante. Desculpem, é muita petulância de minha parte. Não sou eu quem diz, é a ciência, a ciência que não se está ensinando nas escolas e na mídia.
Sei que o Lira está empenhado em árduo trabalho, o de escrever a biografia de ninguém menos que o Getúlio Vargas, mas essas são questões sérias que não podem esperar. Quando terminar de ler o Dawkins (tenho de ir até o fim: custou-me cinqüenta e oito reais!) prometo iniciar o Padre Cícero, um conterrâneo que conheço quase nada.

Fernando Cavalcanti, 21.12.2010 

REPENSAR: UMA SUGESTÃO PARA O ANO

 Médico e paciente são uma unidade indissociável. A razão do médico é o paciente. Sem paciente não há médico. Se não houvesse doença a afligir o ser humano não haveria médico. Assim, os médicos são seres humanos que aprendem sobre doenças e seus tratamentos para beneficiar seres humanos vítimas delas. Então, temos seres humanos tratando e seres humanos tratados.
            Aprendemos cedo. A entrevista com o paciente ao momento do primeiro encontro serve a dois propósitos, ambos de importância vital para o paciente: elaborar um raciocínio diagnóstico e estabelecer uma relação entre ambos. A consulta não é de interesse do médico – é de total interesse do paciente. É ele quem está doente; é ele quem está temeroso de um tratamento doloroso e às vezes indignante; é ele quem está apreensivo sobre o prognóstico de sua doença; é ele quem sofre ante as incertezas que se lhe apresentam; é ele quem teme a mutilação, a dor, a morte; é ele quem se preocupa sobre o futuro de sua família no caso de sua falta.
Se o paciente, e somente ele, sofre com tudo isso, que interesse vital sobra ao médico durante essa consulta ou entrevista? Nenhum no que tange a ele próprio; sua preocupação é, toda ela, voltada a todos os interesses do paciente. Se assim for, e o paciente assim perceber, estará em vigor uma forte relação de confiança.
Nada mudou em relação às doenças. Em tese elas continuam existindo e afligindo os seres humanos. Mudaram os médicos? Não sei. Não vivi ao tempo dos médicos de família. Dizem que eram tempos de bons médicos. Eram tempos em que os médicos conheciam a família e seus problemas diversos mais até que o padre. Os médicos eram psicólogos e outras coisas mais. Eram confidentes. Eram ouvintes. A entrevista era demorada, o exame físico detalhado, meticuloso e cuidadoso. O médico ficava hora e meia duas horas com seu paciente ao primeiro encontro. E por que ficavam tanto tempo? A entrevista com o exame físico é, de fato, uma ampla coleta de informações para a construção do diagnóstico. E mais: é o momento de o paciente sentir que o médico está transmitindo a mensagem “estou aqui com você e, aconteça o que acontecer, ainda aqui estarei e não te abandonarei, e tudo farei para aliviar teu sofrimento”. O médico não sabe tudo, nunca saberá; mas estar com o paciente neste momento difícil é parte do alívio de que ele necessita. O médico não existe para curar, mas para aliviar  – “curar, às vezes; confortar, sempre”.
Mudaram os médicos? Se foi assim em passado recente – o que são quarenta, cinqüenta anos? – mudaram muito, e para pior. Os recursos tecnológicos para diagnóstico cresceram assustadoramente; os recursos terapêuticos idem. Máquinas maravilhosas dão diagnósticos fantásticos. (Quanto mais fantástico um diagnóstico, pior para o paciente: é quase sempre uma doença “ruim”.) Drogas outrora inexistentes curam ou controlam doenças antigamente devastadoras. No tempo do médico de família só existiam alguns exames de sangue, exame de urina e radiografias. (Até hoje não sei como os médicos conseguiam ver alguma coisa nas abreugrafias, radiografias do tamanho do papel de enrolar bombom. Grassava a mortal tuberculose.) Tudo isso, as melhoras tecnológicas e farmacológicas, veio melhorar a sobrevida de muita gente. Em contrapartida, ficou o vazio da má qualidade de vida. Uma consulta médica de hoje entrou para o rol daquelas coisas que compõe um todo que se chama “má qualidade de vida”. A morte, antes natural e parte da vida, tornou-se algo abominável e até fonte de preconceito. Veio com isto a obstinação terapêutica e a distanásia. (Conhecem o vice José Alencar?) Em suma, hoje os pacientes são extremadamente carentes de seus médicos. Dispõem de excelentes operadores, por exemplo, verdadeiros artífices do bisturi, mas que são um poço de insensibilidade, desumanidade, frieza e avareza. Apareceram os mega-congressos médicos, verdadeiros mega-shows de estrelismo de supostas sumidades imbatíveis. (A Madonna morreria de inveja.) Desapareceram a humildade e o senso do limite nos corações de muitos desses respeitáveis senhores engravatados. Nos congressos discutem o que hoje está nos livros e na rede mundial de computadores. Ainda que a informação seja facilmente acessível, barata e fácil, os médicos se reúnem nesses colóquios intermináveis e na volta ainda têm seus nomes alardeados em colunas de jornal de nosso míope e superficial high society.  
Mas, o pior reside no ferir da mais elementar lição dada na faculdade de medicina: a clínica não mais é soberana. De fato, e para falar a verdade, há até, entre os médicos, quem faça troça do velho adágio e quero presumir que haja acadêmicos que se espantem ante o contraste do que dizem os livros e o que se faz na prática. Isso seria o pior do que se faz – ou melhor, do que se não faz – na prática. Há ainda o pior por parte de quem deveria fiscalizar a prática – a omissão dos conselhos regionais. Pretendem fiscalizar e promover a boa prática, mas na verdade são omissos.
Tomemos como exemplo o famigerado Instituto Doutor José Frota para provar o que digo. Como explicar e justificar os disparates que repetidamente ali ocorrem? Óbvio é que hospital cuja demanda ultrapassa os limites de si mesmo penalizará seus doentes com a má prática. E, se há má prática, onde está o conselho? O aumento da demanda para atendimento põe em risco a boa prática. Doentes, ainda que sejam vítimas de lesões e ferimentos graves, necessitam, em algum momento, de uma boa consulta/entrevista médica. Pois lhes digo: isso quase não existe no Instituto Doutor José Frota. Erram os médicos quando são passivos diante desse estado de coisas. Erra o conselho ao se omitir fragorosamente. O conselho tem o dever de confrontar os gestores públicos e, com sua autoridade, exigir deles que façam o que têm se omitido de fazer. Não será um favor que se estará a pedir – será a cobrança legítima de uma obrigação não cumprida. Os médicos, ao invés de criar organizações para defender seus interesses salariais, deveriam primeiramente criar organizações para defender os interesses dos doentes. Deveriam criar e difundir numa base contínua, diante da demanda de guerra que não cessa, algoritmos para uma consulta minimamente informativa e que ajude a estabelecer o elo da boa relação entre todos os médicos que entram em contato com determinado paciente e este mesmo paciente e seus familiares. Salários melhores não vão resolver, como não têm resolvido, a angústia contínua que assola o corpo clínico daquele hospital. Criatividade e humildade para se reconhecer incapazes de resolver sozinhos o que lá acontece seriam um excelente começo. Espírito de corpo que una o médico do plantão ao que está na enfermaria viria selar a união necessária.  Egos feridos e ultrajados de nada servem. Humildade diante do ultraje é a receita para a grandeza que falta. Os médicos devem sair em defesa dos pacientes, e não de si mesmos. Vitimizar-se como classe não resolve. Esperar que a sociedade nos veja como pobres coitados e pobres vítimas dos maus gestores da saúde é um erro tão repetido quanto inútil. Urge repensar tudo. Urge buscar na sabedoria das lições deixadas ao largo e na ensinadora experiência do passado a orientação do caminho a seguir. Ninguém neste universo ou em qualquer outro ousaria se posicionar contra uma classe que defende a razão de sua existência. O mesmo vale para os que têm clínica privada. Seu caminho caminha em direção aos médicos do serviço público como duas paralelas a se encontrar no horizonte infinito. Por tudo isso, dever-se-ia estabelecer um seminário contínuo envolvendo todos os funcionários do hospital a fim de envolver a todos num mutirão em favor da boa prática e da excelência da gestão. Cobrar o que é legítimo foge ao lugar comum das greves e movimentos por salários.    
Caso contrário, é melhor sair, negociar as dívidas, chamar a família e dizer que já não é mais possível continuar. Uma bodega na esquina dá melhor sustento. Os médicos de fato não deveriam tirar seu sustento do que fazem. Médicos tratam doentes. Doentes são em sua maioria pobres. Pobres não têm dinheiro. Médicos não deveriam ter dinheiro nem posição social. Esse é o maior equívoco a se dirimir.

Fernando Cavalcanti, 27.12.2010  

O PRIMEIRO ANO DO RESTO DE NOSSAS VIDAS

 Esse ano, em maio, fazemos cinqüenta. Somos o Baixim, o Bacana e eu. E, vocês sabem, quando se completa um ano estamos de fato iniciando a viver o seguinte. Então, ao completar cinqüenta, estamos começando ao dia seguinte a viver o qüinquagésimo primeiro. E o qüinquagésimo primeiro ano de qualquer coisa não é coisa que se despreze, inda mais em se tratando de dias de vida.
            Não sejamos pretensiosos de ter esse marco como uma metade. Há muito a vida humana deixou de ser longa. Cem anos é um feito e tanto, em que pesem as técnicas, os medicamentos modernos, o controle das pragas, e tantas outras “melhorias” da medicina. A expectativa de vida no Brasil é de 73,8 anos. No Ceará, 71. Na melhor das hipóteses temos aí mais 23,8 anos pela frente. Já passamos da metade.
            Combinamos o seguinte: esse ano será todo ele de comemorações. Afinal nos conhecemos quando ainda usávamos fraldas. Nascemos ao mesmo mês, uma diferença de dias. Estudamos juntos na escola e hoje – já se vão mais de quarenta anos – ainda estamos aqui como amigos. Sabemos tudo da trajetória da vida do outro. Estivemos juntos em quase todos os bons momentos e, mais importante, em todos os maus momentos de nossas vidas. Não são muitas as pessoas que guardam um tesouro como esse. Se computarmos outros amigos que aniversariam esse ano fazendo cinqüenta e que conhecemos a esse tanto de tempo, junte-se aí mais uma penca de malandros, bons malandros. Mas escolhi a nós três porque somos do mesmo mês.
            Em maio de 1961 nascíamos. Lembro de meu jardim de infância e de quando me vesti ao primeiro dia para a alfabetização. Lembro de meu pai, alta madrugada, pondo sob a rede onde eu dormia o triciclo – um trator de brinquedo – que eu pedira numa carta escrita por minha mãe ao Papai Noel. Ele veio de pijamas segurando aquele troço então enorme para mim. Foi assim que fiquei sabendo da verdade sobre Papai Noel. Dali em diante aprendi como as insônias são dos males mais cruéis que existem. Nesse caso em particular creio que acordei por algum barulho que ele deva ter feito em sua peregrinação noturna sob os leitos dos filhos. Deve ter sido um esforço e tanto para ele. De qualquer forma jamais fui a um psicólogo por isso, nem por qualquer outra coisa. Não fui criado para ser nada; não depositaram em mim nenhuma missão onerosa para a vida, nem fui a remediação da frustração de ninguém. Em mim não se depositaram expectativas, exceto uma: a de que fosse gente. Tive infância. Só infância. Naquele tempo ser criança era brincar, comer e dormir. Mais tarde a infância compreendia também o cumprimento das obrigações escolares, e paulatinamente crescíamos e virávamos adultos. Tudo numa assustadora naturalidade.
            Compreende-se resignadamente que nem tudo é perfeito para todos, razão pela qual se deve comemorar ainda mais e com mais regozijo. Saúde mental e afetiva não é lá algo fácil aos dias de hoje, e esta é a razão pela qual os jovens de hoje deveriam ouvir pessoas como nós. Outro dia li sobre a geração “moderna”, que teria algumas características peculiares entre elas a impaciência, a inconstância e a “perfeita noção” de seus objetivos e metas. Em suma, só ouvem o que querem. Também se estimula muito o homem técnico, a perfeição profissional e intelectual, os currículos e línguas. O intento? Estimula-se o ter. Fala-se “fulano está muito bem” quando se está referindo ao que o fulano conseguiu de posses. Não se sabe bulhufas sobre se fulano está bem. Fulano está um trapo, uma confusão metal, afetiva e espiritual, mas está “bem”.  
            Sei, sei. Alguém dirá que essa lengalenga de que o ontem foi melhor que o hoje é sempre assim. Talvez. Mas, o que se vê? Não são fatos? Nós, que vivemos as duas épocas que se seguem, vemos ou não vemos o que nelas se passou? É possível que estejamos cegos para as coisas novas, que não compreendamos as alternâncias do modo de viver das pessoas, que não captemos o que o meio está a nos dizer com seus sinais mais gritantes. É possível. Mas há épocas sabidamente difíceis, como a época das guerras gerais. Há de também ter havido época de júbilo e sensação coletiva de felicidade em algum lugar neste mundo. Há, assim, épocas melhores e épocas piores, não necessariamente as mais antigas sempre melhores que as que se lhe seguem. Não parece ser assim. Então, seria essa uma época de dificuldades?
            Freqüentemente as épocas difíceis se associam ao obscurantismo e à falta de conhecimento. Como seria possível que esta seja uma época difícil se o conhecimento abunda de forma barata e fácil? Nunca em todos os tempos parece ter havido tanta facilidade para se obter conhecimento e, no entanto, as aflições estão aí a nos incomodar e a nos evidenciar que, sim, esses são dias difíceis. Por quê? Aventuremo-nos a supor que haja um obscurantismo dentro do conhecimento ou um obscurantismo do conhecimento.  A rejeição da verdade e de seus frutos e a adoção da mentira com suas ervas daninhas é a resposta mais completa que me vem a princípio.
            Então – deixemos de filosofar – aos cinqüenta chegamos da forma mais amena que se possa imaginar. Os companheiros de jornada – não usemos a palavra “companheiro” que ela carrega uma péssima reputação – os amigos de jornada seguiram seus caminhos em suas vidas, mas nossas vidas estavam sempre a se bater, a se cruzar, a se misturar, quando não por acaso, muitas vezes por obra de nossa vontade. E quantas e quantas vezes a vontade nos incitou à busca da companhia dos amigos! Hoje, mais ainda que antes, essa vontade se acentua, se enovela e avoluma, de sorte que ainda mais juntos ficamos. Fizemo-nos até parentes a fim de ratificar e referendar a irmandade. Apadrinhamos os filhos uns dos outros para garantir o sustento de quem necessitar.
            Por tudo isso – a data marcante e a longa amizade e cumplicidade – é que será o ano para comemorar e celebrar. A festa vai ser de arromba. É só aguardar.

Fernando Cavalcanti, 03.01.2011

UMA PROMESSA DE CASAMENTO

uma amiga, com sua mais recente dúvida sobre se casa ou se não casa, fiz uma promessa de casamento. Vamos com calma que o assunto é muitíssimo espinhoso.
Tranqüilizo àqueles que já me imaginam contraindo novo enlace que o caso não me envolve. A promessa que fiz à amiga não inclui desposá-la, mas escrever algo sobre o casamento. O título ficaria enorme – uma promessa de escrever sobre casamento – e por isso o abreviei. Dele amputei as palavras escrever sobre e então ficou uma promessa de casamento. De qualquer forma, como é ela a “vítima” de uma promessa de casamento por parte de certo varão vigoroso, o cabeçalho acabou por adequar-se ao conteúdo.
Um latagão das bandas do sul, em viagem por essas paragens, conheceu minha amiga. De fato encantou-se primeiramente com outra amiga, ou encantou-se com ambas, já que estavam juntas à hora das apresentações. Apressadinho, já dava piruetas na pista de dança abraçadinho à primeira. Quero crer que já também trocavam selinhos e dali a pouco uns ferozes beijos de língua. No tempo da vovó a cena seria descrita como “uma pouca vergonha!”. Hoje não existe mais essa pouca vergonha e o resultado é a evolução rápida de tudo quanto se arrastava, no passado, para acontecer.
Confesso que sou desconhecedor dos detalhes mais recônditos da permuta do interesse por parte deste rapaz, mas o fato é que se desinteressou da primeira e interessou-se na outra, justamente a amiga da promessa. Tudo na paz das pessoas civilizadas, com a anuência de todos após consulta prévia.
Resumamos a prosa que há gente que já desiste de ler à metade da matéria. Minha amiga e seu novo namorado estão a cruzar os céus do país a todo fim de semana para namorar. Eis aí tudo. E mais: consta que o varão está doidinho da silva para casar. Ao que se sabe, seria sua primeira vez, mesmo sendo ele já homem maduro, quase podre. (Aqui no Ceará há um adjetivo bem apropriado para esse tipo maduro que nunca casou, e que foneticamente deve ter sua pronúncia respeitada: rapaz “véi”.) Pois bem: o noivo (noivo?) de minha amiga é rapaz “véi”. Nunca casou. Não tem filhos. Está “encalhado”.
O que importa é que o casal está, como já disse, cruzando os céus do país para namorar. Voam todo fim de semana para se encontrar. Quando não é ele, é ela; quando não é ela, é ele. Tanto romantismo e sacrifício suscitam invejas e ciúmes mil.          
Sabe-se que quando há que se propagandear uma coisa, qualquer coisa, basta que se ponha alguém influente a dizê-la. Dou um exemplo. Há algum tempo, numa propaganda de um produto, puseram o Pelé a dizer: “É o povo quem diz, e vocês sabem – a voz do povo é a voz de Deus.” Ficou, então, como a quarta lei de Newton que a voz do povo é a voz de Deus.
A caterva não perdoa. (A caterva é o povo.) A falação, nesses casos, ganha ares de certezas e julgamentos sumários. O que diz a caterva? Diz de tudo um pouco. Diz que o homem é doido; diz que o homem é pederasta; diz que o homem é de difícil trato; diz mais um monte de coisa que nem vale a pena comentar, só porque aos quarenta e poucos anos nunca foi casado. O que a caterva não diz é justamente de seus ciúmes e suas invejas. A caterva não confessa seu pecado. E com isso a caterva prova que sua voz nem de longe é a de Deus. (O povo dizia: -“Crucifica-o, crucifica-o!”)
Deixemos de lado o que diz a súcia mal intencionada e passemos ao objeto desta prosa, a de escrever sobre o casamento.  
Dirão – a súcia é fogo! – que ao que muito casa falta algo ou é problemático tanto quanto o que nunca casou. Eu direi apenas que hoje se casa mais vezes por uma permissividade perigosa, e antigamente se casava uma só vez sob a crucifixão da mulher. E por quê? Simples. O casamento é uma instituição do Senhor, não do homem. É uma instituição sagrada e criada por Ele. Na medida em que se o “humanizou”, se o fez menor e propenso ao fracasso.
Vejamos. O casamento requer submissão, mansidão, resignação, renúncia e doação que geram felicidade e realização. Nada disso á possível ao homem sem a benção e a presença do Senhor. A instituição requer o homem e a mulher renovados e em íntima comunhão com a divindade. Deixados à própria sorte – humanos, egoístas e perversos - fracassam. Não há possibilidade humana na instituição divina. Eis aí a explicação de tudo.
À amada amiga um alerta: se não for no Senhor, melhor continuar o namoro. Caso contrário, o resultado é previsível. Vai precisar mesmo é de grana a financiar o luxo de se namorar à distância.

Fernando Cavalcanti, 04.01.2011

O LAR DOS PERTURBADOS

Devem ter percebido aqueles que já me lêem a algum tempo que Amorim anda sumido de minhas crônicas. De fato, o homem anda sumido de minha vida ou, melhor, andava. Eis que hoje o encontrei no almoço que combinamos.
Vinha ao almoço almoçar, mas não almoçou. Já havia almoçado. Perguntava-lhe como se almoça antes do almoço. Segundo as explicações, hoje seria o dia em que almoça com os pais. Como faltara ao almoço familiar há uma semana, faltou-lhe coragem à nova falta. Fiquei achando que este seria o único dia que seus pais almoçam, já que não se dispunha a ir noutro dia da semana. Poderia ir amanhã, por exemplo. Ou na sexta, ou no sábado, ou qualquer outro dia, bolas!
Sei, sei. Dirá ele que às quartas se reúne toda a família, os irmãos, os netos, os bisnetos, os genros, as noras. Pareceu-me também que o almoço obedece à lei do tudo-ou-nada: ou vêm todos ou ninguém. Os pais do Amorim me ficaram na mente quais dois generais carrancudos e implacáveis, ao passo que seu almoço um compromisso seriíssimo e não um momento de lazer. Paciência. Nosso almoço de hoje foi um compromisso bissexto.
Então, não almoçou conosco o Amorim. E, diga-se de passagem, raro é que ele sente à mesa e em nada toque. O homem é garfo dos bons. Come que nem um cavalo no pasto. Já o surpreendi almoçando duas vezes seguidas no mesmo dia. Seu apetite é voraz. Dir-se-ia padecer das verminoses intestinais, de uma tênia caso único em que não haveria um mas dois vermes. Se hoje foi diferente, das duas uma: ou há consumpção ou o homem acabara de sair da mesa paterna direto para a mesa de nosso encontro. Prefiro crer na segunda e benigna hipótese, já que nem a Magaly do Maurício de Sousa comeria tanto assim.
De qualquer modo, não se esquivou do compromisso conosco. Veio como combinado, ainda que atrasadíssimo. Demonstrou zelo para com os amigos. Esse seria um bom motivo para olvidar-lhe a desfeita de não comer. Estava quase perdoado quando cometeu uma segunda e imperdoável gafe – precisava ausentar-se imediatamente. Um compromisso inadiável o pressionava - levar o filho de sete anos à psicóloga.
Não é segredo que Amorim e a mulher adoram fazer psicoterapia. Fazem psicoterapia há sabe-se lá quanto tempo. Estão plenamente convictos de que se aprende a viver fazendo psicoterapia. Farão psicoterapia até morrer, já decretaram. Não passam sem a psicoterapia. Sua psicoterapia tornou-se o comprimido sem o qual não é possível a vida. Estou certo que levarão a psicóloga em suas próximas viagens. É elemento indispensável. Seguramente, comprimidos e tratamentos de uso contínuo são indicados para doenças crônicas. Conclusão: Amorim e a mulher têm doença crônica e incurável.
Que tenham sua doença a perdurar até o fim de seus dias, vá lá. O problema é que o casal pôs o pequeno filho, ainda quase de fraldas, a tratar doença que seguramente não tem. Ao pequeno estão a imputar desequilíbrios inexistentes. Ou supõem ser seu distúrbio hereditário e assim agem no intuito de prevenir.
Fiz ao Amorim uma sugestão: levar seu cachorro ao psicólogo. Sim, hoje os cães são também vítimas do estresse e distúrbios da adaptabilidade. Eles fazem, sim, psicoterapia. Não se sabe como, mas fazem. E fiz ainda outra sugestão ao amigo: que leve a Maria, sua secretária do lar, à psicoterapia. Concluí, quase sem querer, que quem convive com Amorim e a mulher necessitam fazer psicoterapia. O casal, doido de pedra, tem doença muito contagiosa que a ninguém poupa. Acabei, assim, por ficar feliz de minha pequeníssima convivência com o homem. Caso contrário teria que começar a pensar em também contratar uma psicóloga.

Fernando Cavalcanti, 05.01.2011

O OBSTINADO DO PEITO

Mesmo o coração humano, um órgão engenhosamente projetado e incansável, está sujeito a irregularidades em sua atividade diária. Pode ter, aqui e ali, sobressaltos, distúrbios raríssimos do ritmo que chamamos extra-sístoles. Dentro de sua espantosa regularidade e normalidade de sua cadência ele pode ser foco desses eventos sem significado clínico.
Dir-se-ia ser o coração um obstinado. Em operações durante as quais se o pára, percebe-se sua “vontade” de voltar a bater; suas fibras continuam sua atividade contrátil, até que os métodos e manobras responsáveis por sua parada temporária como um todo sejam interrompidos e ele volte a bater forte no peito.
Em resumo, o coração é persistente, mas se dá, vez ou outra, o direito de sair do ritmo, ainda que por uma fração de segundo. Falamos do coração normal.
Observe-se que não podemos dizer ser o coração um obsessivo. Ainda que tivesse uma mind of its own, não poderíamos afirmar que seu comportamento seria obsessivo. Em doenças graves à distância, quando a vida já não é mais possível, ele pára. Deve ocorrer algo em tais casos, uma parada respiratória, por exemplo, que o leve a parar de bater. É necessário um muito grande insulto para tal. O mecanismo da morte é o “desligamento” da respiração pulmonar. Para ser obsessivo ele precisaria continuar funcionando sem oxigênio, como no corpo de um daqueles mortos-vivos do cinema. Isso não existe. Isso não ocorre.
Ser regular dá ao coração a competência que precisa ter para sua importantíssima função: enviar sangue a todo o corpo. Se seu ritmo não fosse regular ele não se encheria o bastante para realizar sua tarefa. Seria um incompetente. Daí sua constância. Seus sobressaltos raríssimos não comprometem.
Então, a competência vem da regularidade ou constância e de sua obstinação. (Óbvio é que não me aventuro nos meandros do inotropismo, já que a constância se deve às suas outras propriedades fundamentais.)
Outro dia, a propósito do quase-infarto de um amigo – se não me engano o Amorim – fiz uma analogia entre o coração e seu suprimento sangüíneo e o provedor. (Diz o Casoba que hoje não mais se infarta, visto que o avanço tecnológico chegou para abortar tais eventos indesejáveis. Daí o quase-infarto do Amorim.) Agora, deu-me na telha fazer uma entre a obstinação e a obsessão.
Obstinação, como se pode bem depreender, é uma característica benigna, não patológica. Óbvio é, no que se refere ao coração, que o órgão foi desenhado para tal. Suas propriedades básicas são as responsáveis por essa sua excelente e notável característica. Só mesmo o Gênio do universo seria capaz de obra tão primorosa. O Richard Dawkins e seus asseclas naturalistas aceitam que tudo o que há não tem necessariamente uma razão de ser, um propósito. Tudo existe porque existe e pronto final. O mais gritante é que tudo o que existe tem, de fato, uma razão de ser e um propósito. Aí está a engenhoca que é o coração humano que não me deixa mentir. E não esqueçamos os corações de outros seres. (O da jubarte é do tamanho de um Fusca.) Não seria uma doidice pensar que o coração existe com o propósito de irrigar o corpo com o sangue que dá vida se a vida não tivesse algum sentido? Se assim fosse, seria o caso de um propósito a servir a um despropósito. Se há falta de sentido em tudo, por que cada peça da vida, cada molécula, cada enzima, cada proteína, cada códon, tem uma função, um propósito, uma razão de ser? Por que há um primoroso e sofisticado código de informação no centro das células que comanda todo o processo da vida? Sabe-se que toda informação tem uma intenção e uma função. Em havendo intenção, não haveria uma inteligência por trás? Há intenção sem inteligência? Então, a obstinação, que é uma intenção e um querer persistente, serve a um propósito.
Devaneei. Voltemos à analogia.
Se a obstinação é uma virtude, a obsessão é um vício. É ela que nos castiga com a cegueira das falsas importâncias e das falsas verdades; é ela cuja medida é desmedida e cujos propósitos servem apenas a aplacar uma ânsia pessoal brotada de um nonsense idílico e onírico. Mal comparando, a obsessão assemelha-se a um tumor maligno que a tudo invade consumindo a energia, os nutrientes, o oxigênio, e tudo o que útil à vida com propósito. Cresce tanto o tumor maligno da obsessão que, qual o tumor maligno biológico, acaba por se autodestruir por se tornar maior do que seu suporte de vida. O tumor maligno é o despropósito a provar o sentido da vida. A obsessão é o despropósito que invadiu a intenção, o objetivo, o juízo e o tino; é a perda da lucidez e da prudência; é o gasto energético das forças derradeiras na busca do objeto fugidio e a se tornar etéreo.
Não há inteligência na obsessão. Há apenas a existência sem sentido tal como apregoa o senhor Dawkins. É um tumor na alma.

Fernando Cavalcanti, 14.01.2011

DESCONSTRUÇÃO

Cresci e aprendi tendo o medo como chicote. Bem cedo usaram em mim a força do medo. Meu medo maior era o da reprovação, da fúria das palavras, da arma do escárnio. A dor física era melhor tolerada, se fosse desacompanhada das veemências da repreensão. Nunca uma surra era silenciosa. Vinha sempre repleta de manipulações verbais. E isso me matava um pouco. Comecei a morrer bem cedo.
Esse medo me destruiu parte da inteligência, quero crer. Ele me fazia prestar mais atenção à liturgia e aos cerimoniais, às regras e submissões do que ao conteúdo da matéria. Ainda que tivesse facilidade em aprender, muito me suprimiu o medo. Ele me paralisava. A inteligência exige liberdade, mas o medo impõe limites, e destrói a inteligência. Algo atrofia no ser que tem medo. Não há inteligência sem liberdade. Causa em mim uma surpresa enorme por ainda ter aprendido algo.
Em adolescente me cresceu na alma a vontade de não ter medo, de ser livre, de aprender sem amarras, de ousar debochar da ordem vigente. A primeira vítima foi a religião, a fôrma e a moldura da religião. Seiscentos séculos pesam como um buraco negro sobre qualquer um. Não é fácil renegar tudo isso. Foi quando minha inteligência recuperou parte, não tudo, do tempo perdido a obedecer aos rituais pela força do medo. A segunda vítima, já mais velho, foi a moral, a ética e a honra tal como me tinham ensinado. Todas juntas. Ficou bastante claro para mim que todas estavam embrulhadas no manto da hipocrisia, e que a moral,  a ética e a honra estavam sendo usadas para me manipular. E então, a terceira vítima: o ser humano. Tive de me libertar do ser humano. Descobri que ele criara o medo que me detinha, que me atrofiara, que me segurava. A religião, a moral, a ética e a honra eram todas falsas. Eram todas armas de tortura contra mim e contra minha liberdade, que o ser humano criara.
Em sua sanha manipuladora, o ser humano devora bilhões de mentes. Todos em algum momento são vítimas. A maioria fenece com a mente atrofiada, sem nunca ter logrado a libertação. Poucos se tornam livres. Menos ainda são livres já bem cedo, de tão inteligentes que são. Esses já nascem sem medo e nada há que lhes detenha. Os que têm medo os chamam de loucos, já bem cedo. Suas excentricidades atestam que, em verdade, já são livres. Por isso aprendem mais e mais facilmente. São gênios. Não têm medo. Perdi muitos anos de vida para me desfazer desse medo. Ainda hoje me querem manipular pelo medo. Creio não ser mais possível.
Em breve ficarei louco, como um gênio.  Em pouco tempo me despirei ainda mais das grades da adaptação. Entrarei para um dos extremos da  curva de Gauss. Ter medo e estar adaptado não me fez melhor. Nem a ninguém agradei. Nem aos pais fui bom o bastante. Nem aos filhos fui idolatrado. Às mulheres me tornei um pulha. Aos amigos me tornei um fardo pesado demais para se levar. Já não há razão para ter medo. Tudo o que temia perder, por ter medo, perdi. O que me resta? A liberdade dos gênios e a descompensação dos desadaptados, tomara. Se em nada creio, se só vislumbro a hipocrisia do outro, serei eu a escarnecer de tudo e todos. Se até sobre a morte me quiseram enganar, já descoberta sua cruel e fria realidade, nem a ela temerei. Sobre o amor tirei-lhe a máscara do caráter: a mais forte arma de manipulação, persuasão e chantagem.
Ah! Quisera eu ter nascido gênio! É duro, longo e tortuoso o caminho quando não se nasce com a graça. Contudo, menos mal saber que pode-se criar a própria genialidade a partir de algum momento na vida. Os inatos sentem-na como um tédio. Os que lhe são obrigados a construir a têm como um exuberante e rico tesouro.

Fernando Cavalcanti, 03.02.2009

UMA HISTÓRIA PARA O PEDRO

Eis que recebo uma mensagem – nos tempos machadianos se mandavam cartas por um escravo ou um preto velho já liberto – de meu querido amigo, e principal provocador, Pedro Olímpio Aguiar. Quem não o conhece, acautele-se: ele é um dos sujeitos mais mordazes, gozadores e, como já disse, provocadores que conheço. Olhem lá se não for o mais! Pedro é desses sujeitos expansivos com os amigos; quem não se habitua, acaba lhe tendo reservas. Eu, que já o conheço de muitos e muitos carnavais, já – e ainda! - me eriço os pelos quando ele vem de lá com suas chacotas e folguedos. Para terem uma ideia, Pedro é dado a reescrever meus textos, dando-lhe outros matizes e invertendo o tema central. Em outras palavras, o sacana é um plagiador barato. Outro dia desses, aproveitou-se de um conto que escrevi baseado em fatos da vida real, em que o sujeito se convence de que não há por que ser cavalheiro com as mulheres, e puxou o saco de sua gentil senhora trocando tudo ao inverso. E ainda me admoestou por ter sido indelicado com minha mãe, uma mulher. Ora, um conto é um conto. Não traduz necessariamente a opinião do autor. Ocorre que ele sabe disso, sim. Mas não deixa passar a oportunidade de querer me enfronhar em celeumas.
Pois bem. Ele acha que hoje o dia está propício para escrever. Não tenho a menor noção de onde ele tirou essa ideia, mas é o que acha. Terá sido a chuva? Estará entediado e quer me botar pilha para ver aonde vou? O dia foi particularmente modorrento, é verdade. A cidade virou um caos. Deve estar o Pedro em seu ninho familiar, olhando para o céu encoberto por cumulo nimbos escuros e densos, e pensando em mim. Lá no fundo de su’alma acalentou o desejo de me instigar. Ele adora, eu bem sei. Mas – coisa curiosa – pediu expressamente que não escrevesse nada conflituoso; pediu-me algo “plácido sem, contudo, fugir às suas (minhas, quero crer) conotações apocalípticas”. Caíram-me os queixais. Estou numa sinuca de bico. Que me socorra o Rui Chapéu. Que diabos quer o Pedro? Dias como o de hoje têm sido raros em nossa terra. A canícula é nossa companheira habitual. Os fortalezenses deveríamos andar seminus no dia-a-dia. Nosso transporte haveria de ser a bicicleta. Hoje amainou. E com o sereno veio o Pedro. Sempre pensei que as altas temperaturas são a causa de alguns desvarios. Vai ver teve o Pedro um choque térmico.
Por outro lado chamou-me a atenção sua percepção de que escrevo peças que encerram algo de “vital”, profundo, essencial; e que, hoje, ele não estaria disposto a encarar. Talvez quisesse algo superficial, tolo, sem pretensões. Ora, ele queria uma tolice com apelo apocalíptico? Bem, caro Pedro, a única coisa desse tipo que conheço é o choro feminino. O amigo há de me desculpar a obsessão. Sim, a mulher chora por coisas menores que um átomo, quebram-no ao meio e eis aí o estouro apocalíptico. Veja bem, e que não me interpretem mal: falo das zangas menores, as que não seriam para tanto. Há ou não dessas tempestades em copo d’água?
Então, aí está. Passo agora a debulhar minha memória e a dilacerar as fendas do tempo em busca de uma história sobre o tema. Tão logo a ache, deitá-la-ei ao pergaminho do presente em letras garrafais para satisfazer a ânsia incontida de meu querido Pedro Olímpio. E lembrem-se: “yo no creo em bruxas; pero que las hay, las hay”! 

Fernando Cavalcanti, 27.02.2009

O SUJO E O MAL LAVADO

A menos de um mês do dia da eleição da chapa que administrará a Unimed Fortaleza acirra-se a campanha. Contudo, é lamentável o modo como se faz esse acirramento. De lado a lado divulgam-se números, dados, estatísticas, cifras. Nós, que não temos acesso à verdade verdadeira, seguimos vitimados por tantas e tantas informações divergentes a atender ao interesse do autor do texto ou do panfleto. Se de autoria da situação, os números são o retrato de uma cooperativa saudável, viçosa, pujante. Se de autoria da oposição, os números mostram a incompetência, o desmando, a inflação do quadro de funcionários, o favorecimento, a cooptação de setores, os salários elevados e injustos.
            Por outro lado, sempre ouço comentários a denegrir este ou aquele componente de uma chapa e de outra. Um ou outro estará, neste exato momento, sofrendo a execração impiedosa e implacável por parte de alguém. Ninguém há de escapar a este crivo agudo e penetrante da opinião alheia. Boatos e verdades maquiadas são propalados e propagados aos quatro ventos sem o menor pudor. Na busca por um santo difama-se, acusa-se, aponta-se com a crítica maldosa e muita vez destituída de lastro e substrato no mundo real dos fatos. E não se acha o santo. Não há santo. Nem mesmo um candidato à espera da canonização papal. E nós, eu em primeiro lugar, a confessar a completa ignorância para entrever a verdade de todos os números e fatos e fotos e balanços.
            Diante de tantas dúvidas venho propor a nós, os ignorantes, os puros de coração, os que querem ser justos, os que já nada querem a mais da vida, nem nada querem de projetos que não nos pertencem, uma reflexão simples. Simplificar e sintetizar é a palavra de ordem do momento, posto que há que se ter muita calma nessa hora. Há momento para a análise e há momento para a síntese. Este é um momento para a síntese. A síntese é o corolário de todo um conhecimento, de toda uma impressão, de todos os sentimentos que nos invadem como um tsunami. Podemos até não saber a verdade dos fatos, mas somos capazes de farejar como um cão treinado os maus odores da decomposição de certas idéias.
            Se não há santos nem há quem preste segundo o julgamento daqueles que se pensam a fina flor da justiça, da equidade e da temperança, amparemos nossa ignorância em princípios e em idéias. Sim, porque se não há quem preste, é provável que também nós não sirvamos para julgar caracteres e reputações. Não estamos aptos. Nenhum de nós. E nesse instante, invoco a que nos socorramos nos princípios corretos e nas idéias que deles emanam, para que não nos deixemos contaminar por outras que exalam olores intragáveis. Se não podemos escolher entre seres tão imperfeitos, já que estamos à busca do santo que não existe, e se nosso parâmetro para embasar nossa escolha é movediço como a areia do pântano, seguremo-nos a uma idéia que nos aplaque a tormenta que assombra nossa consciência.   
            Assim, compete a cada um de nós identificarmos as idéias políticas nefastas que permeiam as discussões e textos e discursos. Compete a cada um de nós contrapormos tais idéias aos princípios corretos que regem as interações humanas e suas instituições. E compete a nós votarmos embasados nestes princípios. Caso contrário continuaremos a soçobrar no mar da insensatez e a fomentar o ranço que permeia uma classe médica já combalida e distante de si mesma.

Fernando Cavalcanti, 07.01.2010 

AS PAZES COM O SIQUEIRA

Estive em Maceió novembro passado. E encontrei leitor que foi sumário: - “Detesto quando escreves sobre a Unimed!” E eu, coçando a testa: - “Paciência...”
Ressalte-se o fato de ele não ser cooperado. Nem médico é. Daí ser compreensível esse ódio cooperativista. Deve ser mesmo um pé no saco ficar a ler sobre a luta por poder em universo tão microscópico e distante. E ainda destoante dos holofotes leigos que só enxergam médicos compenetrados e desapegados da matéria. Quanta pureza d’alma!
Tive ímpetos de tentar lhe explicar o tabuleiro do jogo e como se movem suas peças, mas desisti incontinênti. Foi apenas um relampejo de pensamento que tratei de esquecer com a mesma rapidez com que chegou. Não gostava dos textos porque não lhe apetecia o conteúdo. Nada mais óbvio.
Hoje no hospital dei de cara com meu querido Siqueira. Afora uma galhofa aqui e outra ali - e que nos levou a uma risadagem inconveniente ao ambiente hospitalar – conversamos sobre o tema Unimed. Foi apenas uma pincelada nesta pauta já combalida, mas que acabou por servir a dois propósitos. O primeiro a me merecer os parabéns de sua parte por estar a propalar aos cinco continentes minha intenção de voto. Alguém há de lembrar que o querido Siqueira me puxou as orelhas, noutra eleição para a mesma Unimed, por ter escondido o voto nas Fossas Marianas em baú de ferro trancado a sete chaves. Desta vez estava contentíssimo por esse voto tão declarado, tão esparramado, tão público como uma serenata à luz da lua.
O segundo propósito veio me constatar, finalmente, que acordamos de cara em determinado ponto – justamente a intenção do voto. Não houve meias palavras nem perambulagens de discurso. Numa concordância plácida, e sem meios termos e senões, fechamos a questão - tudo diferente do que nossos embates foram até então. E ainda outras anedotas e firulas ao final das quais nos despedimos. E ainda bem que foi assim. O tema já me invadira os ouvidos minutos antes noutro setor do hospital. Ninguém agüenta tanta Unimed!
Encerro rapidamente, que a vida me chama, dizendo que os argumentos de peso foram reduzidos a fuligem, e os que pareciam inteligentes desafiam justamente a aguçada inteligência desta “classe” tão argumentativa e difícil de ser levada a pensar. Oxalá passe o quatro de fevereiro, dia das eleições. Vamos ao carnaval e aí, sim, o ano finalmente começa.

Fernando Cavalcanti, 20.01.2010

O FRUTO DA ÁRVORE DA VIDA

“Este belíssimo sistema do sol, planetas e cometas poderia somente proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso.”  Sir Isaac Newton



“O fato mais incompreensível a respeito do universo é que ele é compreensível.” Albert Einstein  

Não é que outro dia meu querido amigo Amorim e eu entramos a discordar? É comum que acordemos em quase todas as coisas sobre as quais discutimos. Afinal, ele foi premiado com uma dessas inteligências únicas, e que pulsam com a força de seu gênio. Debater com ele causa daqueles deleites que nos enchem de empáfia. E mais ainda quando há discórdia. Não a discórdia que isola, que separa, que faz romper a amizade, mas a discórdia que leva ao crescimento, à busca da verdade, à pesquisa e, por fim, ao entendimento ou aceitação das diferenças. Aqui reside a verdadeira amizade, o amor entre os que se dizem amigos.
            O assunto da discórdia é considerado deveras espinhoso por grande maioria das gentes, tendo-se até dito que sobre ele não há que se discutir, posto que fosse uma questão de interpretação pessoal. Quanto mais se bate nesta tecla, mais discordo. O que vejo em verdade nessa argumentação é o indiscutível e facilmente reconhecido rosto da ignorância. Às vezes quero crer que vejo as opiniões pessoais a prevalecer. Diz o Robert Kiyosaki que, se não puder estabelecer que algo é um fato, então é uma opinião. É verdade, sem dúvida, que no assunto em questão, o mesmo debatido por Amorim e eu, as provas dos fatos são aparentemente difíceis de ser demonstradas.
            Contudo, nesta questão em particular, que está no bojo do assunto que não se discute, é fácil demonstrar a verdade. Se não, vejamos.
            Tudo começou quando entramos a falar da programação genética do ser humano para a morte. Ora, em nossos genes estão a tendência para a hipertensão, o diabetes, algumas formas de câncer, e outras coisinhas mais. O sinal verde para ao surgimento de tais afecções ocorre em algum momento, mormente à idade avançada. Em suma, o código genético inicia o processo de morte do indivíduo, por assim dizer. Concordamos em tudinho, e até lhe servi um cafezinho para amainar a tensão e estabelecer nossa resignação diante de tão definitiva constatação.
            Após o café fiz o seguinte comentário: -“Não há dúvida que no fruto da árvore da vida, que estava no jardim do Éden, estavam substâncias que evitam tudo isso e também o envelhecimento, levando o homem a viver eternamente!” Eis que Amorim me saiu com seguinte resposta: -“Deus é mentiroso! Proibiu Adão de comer deste fruto e de outro! O homem comeu do fruto e não morreu!” Lembrei-lhe que não, que Deus o proibiu de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, mas que lhe era permitido comer de todos os outros frutos das outras árvores, incluindo o fruto da árvore da vida.
            A coisa toda perdeu o controle. Amorim não só confirmava a suposta mentira de Deus – já que Adão continuou a viver após comer o fruto – como também não aceitava que eu interpretasse que Adão viveria eternamente se continuasse a comer do fruto da árvore da vida. Para ele, isso não estava lá escrito. Analisemos os textos.
            O homem foi formado ao sexto dia da Criação. Está escrito assim: “E o Senhor Deus lhe deu a seguinte ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” Ainda não existia a mulher, e não há nenhuma passagem que conte que Adão transmitiu a ordem de Deus a Eva. Sabemos que ela estava ciente da ordem quando ela diz ao tentador: “Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: ‘Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. ’” Há alguma dúvida de que ela era conhecedora da ordem de Deus? Há alguma dúvida de que ela foi informada em algum momento da ordem de Deus, embora a comunicação não venha explicitada no texto?
            Amorim chama Deus de mentiroso porque interpreta que o homem haveria de morrer tão logo comesse do fruto, como se este contivesse um veneno mortal de ação imediata. O que aconteceu foi o seguinte: “Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal.” Donde se conclui que as árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal estavam no meio do jardim, uma próxima à outra, talvez vizinhas. Conclui-se também – a menos que não se queira concluir por força de uma teimosia qualquer – que o homem tinha a liberdade de escolher entre viver eternamente, com livre acesso ao fruto da árvore da vida e às substâncias que ele continha, ou não mais viver eternamente tendo desobedecido a Deus. Seria impedido seu acesso ao fruto da árvore da vida se comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Não vejo como ter dúvida sobre este ponto.
            Amorim argumentava que não há passagem no texto que diga que o homem viveria eternamente se comesse do fruto. De fato não há tal passagem, mas há outra bem esclarecedora, após a desobediência do homem: “Então, disse o Senhor Deus: ‘Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente.” E mais: “O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden...” E, para garantir o impedimento do acesso do homem à árvore da vida onde estava o fruto que o faria viver eternamente se o comesse continuamente, “[Deus] colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida.” Eis aí bem explícita a intenção de Deus a que o mal não deva prevalecer, e que o homem ainda viveria por um tempo antes que lhe sobreviesse a morte. Tanto é que “os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta anos; e morreu.”
            Cumpriu-se, então, a profecia de Deus, feita pessoalmente a Adão, de que morreria se comesse do fruto da árvore da ciência do bem e do mal.
            Como estivemos a debater as propriedades do fruto da árvore da vida, e como Adão viveu ainda novecentos e trinta anos, só uma conclusão é possível à luz da inteligência: como era poderoso o fruto! Se, após dele comer a última vez Adão ainda viveu esse tempo todo – bem como vários de seus descendentes – não há como não concluir que uma degeneração passou a surgir e agir no DNA humano levando às doenças e estas à morte do homem. Com o passar do tempo, vivia cada vez menos o homem.
Só recentemente a ciência do homem passou a descobrir elementos que influenciam sua longevidade, e seu tempo de vida voltou a crescer. Mas nada que se compare à longevidade dos que tiveram acesso ao fruto da árvore da vida do jardim do Éden. Esse foi retirado de nós desde que Deus daqui o removeu.

Fernando Cavalcanti, 28.08.2010 

BOM MOUCO, MAU CONSELHEIRO

Há uma surpresa em cada palavra tanto quanto em cada esquina. Nunca se sabe o que vem a seguir. E, como os discursos e as conversas são repletos de palavras, aí estarão as maiores das surpresas.
            Outro dia, no hospital, encontrei um querido amigo. Após as efusões iniciais, disse que eu deveria “investir mais” em meu blog. Vejam como são as coisas. Dali em diante a conversa se tornou para mim uma impossibilidade. Não que qualquer coisa me chateasse, não foi isso. Simplesmente ocorreu de eu ficar surdo. Sim, a pergunta que me fazia não parava de gritar ao meu ouvido: -“Investir mais? Investir mais? Investir mais?” Como a ecoar em minha pobre mente, me perguntava o que seria “investir mais em meu blog”.
Ainda outro dia, num encontro de ex-alunos maristas – notem que um ex-aluno marista é ex-aluno, nunca ex-marista – um amigo do tempo das fraldas fazia discursos eloqüentes, e dizia: -“Vamos pôr as fotos no blog do Fernando!” Todos sabem que no Ceará uma frase como esta suscita inúmeras e sérias implicações de dúbios, duplos e triplos sentidos. Escutava aquilo e não emitia um som. Nessas ocasiões quanto menos se fala, menos se complica. Mas, sejamos justos, o amigo tinha o firme propósito de “investir em meu blog”. Isso foi o que me pareceu.
Após tanta vontade e conselho para investir em meu blog, esclareço que o blog foi criado apenas para servir de arquivo virtual, por sugestão de uma amiga. Tanto é que, ao início, ao tentar “investir em meu blog” avisando aos amigos que não mais enviaria os textos que escrevo diretamente aos seus endereços eletrônicos, recebi uma carrada de correspondências dando conta de que preferiam recebê-los diretamente a lê-los no blog. Concluí que ninguém gosta de blog, inda mais do meu.
No hospital, o amigo que sugeria o investimento no blog falava, falava, falava, e eu ouvia bulhufas. E pensava como é interessante a constatação de que há sempre quem ache que não se está fazendo o suficiente. Para algumas pessoas, o que você está fazendo, ou fez, ainda não é, ou foi, o bastante, mesmo que disso não resulte nenhum mal a quem quer que seja. Medem tudo usando sua própria medida. Paciência.
Vejamos outros discursos. Há pouco mais de uma semana uma amiga me confidenciava sua incapacidade de levar adiante o namoro com certo varão vigoroso. “Não dá mais certo de jeito nenhum!”, dizia ela com uma daquelas convicções ferrenhas. Deu-me tantos e tantos argumentos que julguei líquido e certo o fim do romance, mesmo sabendo de outros tantos rompimentos irrevogáveis. Qual não foi minha surpresa ao dia seguinte quando vi o casal enfronhado em beijos e abraços escandalosos. E nem falemos nos cochichos e olhares enternecidos. Concluí que devo ter ouvidos que mais lembram lixeiras do que órgãos de comunicação. Caso contrário, não seriam usados para um propósito tão desnecessário e inútil. Ainda agora procuro para eles alguma utilidade. Ao contrário do blog, para o qual achei um fim bem a calhar, ainda não achei para meus ouvidos uma função apropriada.
É bem possível que alguém saia com o clássico discurso “para isso servem os amigos”. A pergunta que ainda ficaria a pairar no ar é “por quantas vezes e por quanto tempo?”. Suponho que o amigo deva ser obrigado a ouvir e ver repetirem-se os mesmos e renitentes problemas. Imaginem o sofrimento dos amigos que ouvem tamanhas torturas a apoquentar seus amados. É preciso enormes e infinitas resistência e frieza à visão do sofrimento alheio. O pior é que não se aceitam sugestões nem conselhos. E, para falar a verdade, conselhos são às vezes tão valiosos que se deveria por eles pagar.
Assim, de discursos em discursos, de argumentos em argumentos vamos vivendo a vida. Eu, que deveria “investir em meu blog”, insistindo em não “investir”; os amigos e amigas, que deveriam desmanchar relações de dependência, insistindo em depender. Há algo melhor a se fazer na vida?

Fernando Cavalcanti, 05.09.2010

UMA MATÉRIA LAMENTÁVEL

Repleta de equívocos está a matéria “A inspiração eterna dos anjos”, da edição 2196 da revista Veja. Seus autores, os jornalistas Bruno Méier e Jerônimo Teixeira, pretendem se aventurar na “história e razões da moderna devoção aos eternos mensageiros de Deus, cultuados por cristãos, judeus e mulçumanos”.
            A “história” que esses senhores levantaram não tem nada de história. Trata a matéria de como naturalistas, ateus e “religiosos” vêem e viram os anjos ao longo do tempo. Por isso, por uma visão míope e pretensamente lógica, incorre em inúmeros enganos. Tomarei apenas uma parte de um de seus parágrafos para demonstrar o que digo.
            “Mais grave ainda é que os anjos podem se converter em demônios. No cristianismo, em particular, consagrou-se a visão de que eles estão sujeitos a dar passos em falso. De acordo com essa tradição, Lúcifer, ou Satanás, teria sido um anjo que, por orgulho, se voltou contra Deus e teria sido expulso dos céus. Não existe, nos textos sagrados, um relato claro e detalhado da queda dos anjos maus. Quando os anjos caíram? Que pecado terão cometido para cair?”    
            É claro, no texto sagrado, que poderosos anjos de Deus caíram ao quebrar a Lei quando ela diz: “Não terás outros deuses diante de mim.” Não é uma tradição que diz que “Lúcifer, ou Satanás, teria sido um anjo que, por orgulho, se voltou contra Deus e teria sido expulso dos céus”, nem é isso uma visão do cristianismo. Está em Ezequiel (séc. VI a.C.), um livro do Velho Testamento, em seu capítulo 28, uma descrição do próprio Deus de quem foi Lúcifer, em que se tornou – qual o seu pecado - e o que lhe está reservado (suprimirei a ordenação em parágrafos do texto bíblico para uma melhor inserção no presente texto): “Assim diz O Senhor Deus: Tu és o sinete da perfeição, cheio de sabedoria e formosura. Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em foste criado foram eles preparados. Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se achou iniqüidade em ti. Na multiplicação do teu comércio se encheu o teu interior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei, profanado, fora do monte de Deus e te farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao brilho das pedras. Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; lancei-te por terra, diante dos reis te pus, para que te contemplem. Pela multidão das tuas iniqüidades, pela injustiça do teu comércio, profanaste os teus santuários; Eu, pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e te reduzi a cinzas sobre a terra, aos olhos de todos os que te contemplam. Todos os que te conhecem entre os povos estão espantados de ti; vens a ser objeto de espanto e jamais subsistirás.”
            Não há necessidade de comentário.
            Na mesma matéria, como legenda de uma pintura de Bruegel, o Velho, A Queda dos Anjos Rebeldes, lê-se o seguinte: “outrora um anjo das hostes divinas, Satanás se volta contra o Criador e é expulso pelos anjos bons - uma história poderosa da tradição cristã, mas que não é relatada na Bíblia”. Ora, vejamos o que diz o texto que os senhores autores dizem que não diz: “Houve peleja no céu. Miguel e seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos.” (Apoc. 12, verso 7 a 9) O detalhe assustador é a constatação de que quem lidera os exércitos celestiais é o próprio Cristo (Mi= Aquele; Ka=como; El=Deus).
            Quando, então, terão caído Satanás e seus anjos? Certamente em algum momento antes da queda do homem, já que no mesmo Apocalipse está escrito em seu capítulo 12, verso 12, tendo acabado a luta no céu: “Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu a vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta.” Chegando ele à terra, conhece-se a história da queda do homem.
            No mais, a matéria de Veja é repleta do misticismo  e esoterismo vulgar que ora viceja e que em muito contribui para a propagação da mentira, obra do grande enganador e “sedutor de todo o mundo”. Uma pena.

Fernando Cavalcanti, 20.12.2010  

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...