sábado, 6 de abril de 2024

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura. 

Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía cedo para o trabalho. Ele não – ficava em casa o dia inteiro. Às vezes saía, tinha reuniões de trabalho, coisas a resolver. Mas gostava mesmo era do fundo da rede. A sesta depois do almoço era sagrada. 
– “Meu trabalho é em casa, meu amor”, dizia. “É home office” ... 
Ela não se conformava. Diferente dele, saía diariamente para o emprego e voltava para casa no começo da noite. Nem o fato de ele cuidar da casa como um serviçal amenizava a frustração de ver seu homem em casa a maior parte do tempo. Cuidava do jardim, varria a calçada, limpava a piscina... E ela: – “Onde já se viu? Não faz nada! Absurdo”! E a coisa foi piorando entre ela e ele. 
Não deu outra – a separação resolveria tudo. 
“Gostamos um do outro, mas não dá mais”, disse ele a um amigo. E completou – “Mulher chata, bicho... um pé no saco”! E ainda: – “Gente boa... mas um pé no saco”. 
De fato, seria a segunda tentativa de separação, já que em vez anterior até fechara um contrato de aluguel de um apartamento onde moraria, mas acabou por rescindi-lo. O amor falou mais alto para, em seguida, a vontade de dela se afastar tornar-se insuperável. Nem pelo mais robusto amor ficaria um dia a mais naquela casa na companhia da mulher.

                                                                         ***

                Alugou um apartamentinho pequeno no Meireles, bairro nobre, a duas quadras da praia, da Avenida Beira-Mar. Podia não ter nada no cubículo, mas tinha a varanda virada para a praia. Não consta ter vista mar, já que outros prédios na frente bem podiam atrapalhar a vista. Porém, a tal varanda dava para a vastidão dos céus, dos ventos, das nuvens, do sol e da lua. Já bastava. E tinha os armadores de rede. Em suma – alugara um espaço no Céu, utilizando uma figura de linguagem bem aquém do real. 
            Não podia faltar o som. Sim, punha ali na saleta que dava para a varanda as caixas de som da radiola. Apreciava os velhos e bons toca-discos de vinil. Frequentava sebos e neles adquiria antigos e bons LP’s do tempo da adolescência. E gostava tanto de raridades que comprara recentemente de um amigo o “THE DARK SIDE OF THE MOON”, em sua posse desde os anos ’70. A bem da verdade, adquirira dois exemplares do referido LP, uma delas colocada em moldura refinadíssima como a de um NARCISO pendurada na parede para sua eterna admiração. 
            Da rede ficava a apreciar o valoroso quadro enquanto se deliciava ouvindo Clare Torry em “THE GREAT GIG IN THE SKY”... 
            –“Me arrepio todo, bicho”!, dizia ao descrever sua cena.

                                                                            ***

           Tempos depois uma loira cinquentona e exuberante engraçou-se dele. Conheceram-se na Beira-Mar, sei lá. Não demorou muito a se engalfinharem em prazeres quase diários. Descobriu nela orgasmos múltiplos e infindáveis. 
          -“Gozou trinta e três vezes, bicho! Uma loucura”! Dir-se-ia estar em transe, possuída por entidades. E, depois do episódio, saiu a falar como o Cebolinha do Maurício: tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês... Mais – fazia pilhéria do pedido do esculápio ao enfermo: – “Diga trinta e três”! 
            Estava todo faceiro até perceber nela certas inconveniências.
            - “É louca, bicho. Quer saber detalhes do passado de minha vida amorosa” ... 
            Perguntava de tudo e de todas. E quando bebia era o diabo – demonstrava um ciúme desproporcional ao envolvimento recente. A coisa foi tão impactante que ele resolveu dar-lhe um gelo. Dava desculpas para não a encontrar. 
      A pressão alta e o diabetes mereciam cuidados. Afinal, já tinha até passado por procedimento para desentupir as coronárias. Queria mais aquilo, não. Todo cuidado é pouco, dizia. Não convinha estresses desnecessários com outro convívio improdutivo. E descia três – ou seriam tlês? – a quatro vezes na semana a uma farmácia vizinha ao condomínio para verificar se suas mazelas estavam sob controle. 
          De tanto lá ir tornou-se conhecido dos funcionários, notadamente das farmacêuticas que lá faziam o trabalho de atender os que queriam medir a pressão e verificar a glicose no sangue

                                                                            ***
 – “Senhor Amorim, o senhor está muito bem”, disse a farmacêutica certo dia e a certa altura do atendimento. 
– “Suas mãos são macias e o senhor tem uma áurea intensamente positiva. É um homem muito interessante” ..., continuou. 
– “Lembro de o senhor ter dito que não costuma beber, não é isso”? 
Ele, que já tinha notado e observado as formas da doutora, não hesitou. Respondeu: – “Não bebo, mas posso perfeitamente acompanhar amigos num drinque”. Era noite. Ele continuou: – “A que horas você está livre? Tenho lá em cima, em casa, um delicioso reserva francês tinto... Posso acompanhá-la, se quiser. Que tal”? 
Ela respondeu balançando positivamente a cabeça e mordendo safadamente o lábio inferior.
           O que Amorim não quis me confessar até hoje foi se o pessoal do Parque Manibura ainda tem ido vê-lo com a mesma regularidade após a separação e vice-versa. Afinal, a farmácia é colada no prédio do homem. 

4 comentários:

  1. Esse tal de "amorim" vugo kbça branca é um verdadeiro galanteador de stem habilidades especiais pra conquistar senhoras, sentimentalmente, vulneráveis, acima de 50 anos, mas não descartaria uma idosa acima dos 65. Me arriscaria dizer que de aparecer uma acima dos 80' ele não perdoaria. Como costuma dizer na Bahia: o cara é um "asilado"

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    1. Esse "Amorim" é, como diria meu avô, um cabra "senvergóin"!

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  2. Caro Da Gata, amigo velho dos bons tempos, diz o grande escritor peruano Mario Vargas Llosa (outro senvergóinzin) que "somente a literatura dispõe de poderes para destilar este delicado elixir da vida, a verdade escondida no coração das mentiras humanas", de modo que por traz desse tal de Amorim percebe-se claramente traços fortíssimos da nossa geração, de modo especial do bem viver de quem o criou. Bora tomar uma?

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  3. Esse Amorim é um porreta!!!

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