domingo, 26 de abril de 2015

PARA BELLA

Bella,
          Quando te vi, te enxerguei.
         Os olhos raramente vão além do tangível, exceto àqueles a quem é permitido ver a glória dos seres que habitam na morada do Senhor.
      A nós, caídos mas não esquecidos, é permitido muito pouco ver. Quando distanciamos o coração do bem e das coisas superiores, menos ainda nos é permitido ver, de modo que estamos permanentemente cegos. O cego que vê e não enxerga é o pior que existe, porquanto só vê visões comuns, e visões sem cor, e só vê o superficial, ao passo que o cego sem olhos aprende a ver com o coração e com os olhos com que nos olha o Senhor.
       Pois quando te vi, te enxerguei. E por que te enxerguei? Porque me ensinaste a ver com teus olhos, teus puros olhos. Sim,os teus olhos viam o que os meus próprios não viam. E ao me ver nu diante de ti, te amei profundamente. Minha nudez me expôs como jamais me expus.
       Você, sem querer, derribou meus muros e desvendou meus olhos. E depois disso eu soube que te queria ao meu lado.
      Ao meu lado, vi em você a fragilidade poderosa e a força que faz ceder a mais robusta estrutura; a delicadeza que dobra joelhos e a meiga rudeza que repreende com amor; vi tua recalcitração diante da objeção e do obstáculo que a vida insiste em te trazer; enfim, vi em você não a perfeição, mas a obstinação de sua busca e a vontade de ser sempre melhor.
      Não se encontram facilmente seres humanos tenazes e equilibrados. A tenacidade não é fácil, equilíbrio idem. Tomar decisões que envolvem mudança no rumo previamente e noutro tempo traçado, e seguir realizando o que precisa ser realizado para se lograr o novo objetivo não é tarefa fácil. A maioria das pessoas que quer mudar suas vidas não decide ou decide mas sequer começa; as que decidem que irão mudar esquecem que após a decisão impõe-se uma mudança de atitude; e a grande parte que muda a atitude não o faz com a consistência e a persistência necessárias. Um ou outro, de fato, muda seu destino, como você.
       Você é um desses raríssimos seres que irá aonde bem quiser e fará o que bem entender porque “esbanja” as qualidades necessárias sem as quais não se vai a lugar algum.
        Por tudo isso estou... ou melhor, sou orgulhoso de você. Estou com você pro que der e o que não der, pro que vier e o que não vier. Novos desafios virão e tenho plena certeza que você há de vencê-los. Parabéns pela expressiva vitória. Bem sei o quanto te custou.
          Amo você.

Eu.

sábado, 25 de abril de 2015

A MORTE DE AMORIM

Quiseram matar o Amorim. É certo e sabido que Amorim não é lá flor que se cheire, mas não chega a ser um mau caráter. Óbvio é que, na vida, quem não é mau caráter uma ou outra vez? Na vida há que se aproveitar tudo e de (quase) tudo. E, mesmo que não se seja mau caráter segundo seus próprios olhos, eventualmente o será aos olhos de alguém. O que se pode fazer quando alguém resolve pensar que você é um mau caráter? Nada, eis a verdade. Portanto, a princípio não haveria justificativa para alguém querer matar Amorim.
É também sabido que os boatos correm. E os boatos nunca falam de bem. Sempre falam para denegrir, para deturpar, para exagerar, para desqualificar, para o mal de alguém. O boato serve à nossa ânsia de realizar a falência alheia. O boato é nossa maldade coletiva, sem rosto, sem início, sem fim, com alvo certo. O que fazer quando vítima de boato? Nada. Não há nada a fazer ante um boato. Dou exemplo. Amorim estava em casa, tranquilo, quando toca-lhe o telefone. Era um amigo dando-lhe conta de seu infarto. Um boato havia “enfartado” o Amorim. Não se entrou nos detalhes do boato, mas seguramente ele estaria no CTI, com tubos e soros em todas as veias e buracos de seu corpo. O laudo eletrocardiográfico não seria esquecido: uma taquicardia ventricular prenunciando a fibrilação fatal. E, se sobrevivesse, a angiografia coronariana seria das piores: uma oclusão de noventa por cento na origem da coronária esquerda. As enzimas seriam elevadíssimas, dando conta do dano ao músculo.
Repito: o que fazer ante um boato tão bem engendrado, repleto de sentido e possibilidades? O amigo sentiu desanuviar-se a tragédia ao ouvir a voz de Amorim, cheia de vigor e gargalhadas abjetas. Pôs-se, então, Amorim a explicar-lhe ter sido vítima de alterações pressóricas. Nada mais. E entraram a falar da inevitabilidade e do determinismo genético. O amigo o confortou confessando seus próprios e semelhantes distúrbios. E concluíram que a idade era a grande culpada de tudo. Estava encerrado, assim, um boato. Para o referido amigo. Outros estarão recebendo ainda agora, no momento em que escrevo, as más novas sobre Amorim. Não há dúvida de que estas serão bem piores. É possível até que Amorim já tenha sido inumado. Iniciará a semana andando qual zumbi pelos corredores da repartição.
Conclui-se, então, que não há nada mesmo a se fazer ante um boato. Até porque ele, repentinamente, deixa de ser boato e entra para a lista de tragédias da vida de cada um de nós. O melhor seria responder, a quem interessar e indagar, para a decepção dos arautos do holocausto: -“Calma... Ainda não foi agora!”

Fernando Cavalcanti, 12.10.2008

terça-feira, 21 de abril de 2015

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES FUTEBOLÍSTICAS

Já nem queria mais discorrer sobre futebol ou assuntos a ele relacionados, ainda que muito me divirta com os cenários descritos de seres humanos completamente alucinados por este esporte tão comum e popular. Todavia, escreveu-me o Gaudêncio, amigo imensamente amado e lúcido, discordando de minhas palavras e idéias expostas nos textos anteriores. Longe de mim pretender angariar seguidores ou discípulos, até porque para os ter seria necessário tornar-me mestre ou coisa que o valha, coisa que não sou. Ainda bem que existem os que discordam, os teimosos e os burros.
A discordância de meu amigo é basicamente a seguinte. A felicidade da torcida do Ceará no circo do futebol vem a bem de sua saúde. Em outras palavras – quem é feliz tem saúde, como ele, que é Ceará; e quem é infeliz é doente, como o Sérgio Moura ou o Luís Junior, que torcem pelo Fortaleza. Diz mais – que todos podem escolher se querem ser feliz ou não, arbitrando torcer pelo time que lhes traz alegria ou tristeza. Em suma, meu amigo sugere, com a cara mais deslavada do mundo, que os torcedores que estejam a sofrer em demasia virem a casaca. Admitem-se, pela sua lógica, os que são indiferentes: ou torçam pelo Icasa ou pelo Ferroviário. Esquece o amigo que o futebol, como qualquer esporte, ou até mesmo a vida, é como a cópula - uma hora se está por cima, noutra se está por baixo, o que permite concluir que um dia se é triste noutro se é feliz, ou que um dia se é o touro noutro se é a vaca.
Ele discorda que todos os torcedores sejam apaixonados ou baderneiros. Só uma parte o é. De fato, só alguns torcedores saem a quebrar objetos ou agredir pessoas. Com efeito, só alguns torcedores isolam-se à distância a se fazerem inacessíveis à galhofa alheia.
A classificação do Ceará tem tido um impacto tão grande na capital que hoje à tarde, na 87ª sessão legislativa da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, o deputado Dedé Teixeira do PT, do púlpito tendo ao fundo uma enorme bandeira do Ceará, discursou sobre o feito. Até então julgava eu que ali se debatiam assuntos de elevado teor para os cidadãos cearenses. Não parece ser esse o caso.
Resta-nos agora aguardar o dia da troca – quem ficará por cima e quem ficará por baixo. Ou quantos ficarão por cima e quantos ficarão por baixo. Todas as combinações são possíveis. Nada dura para sempre. Nem as estrelas.

Fernando Cavalcanti, 25.11.2009

TORCEDOR SEM-VERGONHA

Eu até que tentei. Nem que fosse para ter depois sobre o que falar, tentei ver o jogo. Só consegui por quinze minutos, interrompidos constantemente por outros afazeres que julgava importantes. No frigir dos ovos, se se somassem os verdadeiros minutos que me prendi à tela não dariam nem cinco. Então, fui ler minhas correspondências.
Sou do tempo das cartas, que chegavam em envelopes brancos de beirada verde-amarela trazidas pelo carteiro. Hoje as cartas que se escrevem e se enviam desta maneira entraram para o rol das coisas que não mais existem, como os sapatos Conga, ou o Ford Galaxie. Não se vê mais nada disso. As correspondências chegam hoje via computador pessoal, através de um endereço eletrônico. Nosso endereço residencial, hoje em dia, serve apenas à entrega das contas a pagar e das cobranças do imposto de renda. Serve também para que se comprove onde se mora na hora de abrir um crediário. Com efeito, até o crediário está agonizando. Fora isso, desconheço qualquer outra utilidade de se ter um endereço residencial.
Antigamente sabia-se se o sujeito era importante pelo volume de cartas que lhe enviavam. Nas festas de fim de ano media-se a importância de alguém pelo número de cartões de boas festas que recebia. E eram todos, os cartões, colocados sob a copa da árvore de Natal, junto dos presentes. Hoje qualquer borra-botas recebe uma enxurrada de correspondência em seu endereço eletrônico, a maioria, quase todas, de utilidade nula ou superficial. E – o pior! – sabe-se de antemão que aquela correspondência não é pessoal, que é coletiva.
Vejam vocês. Eu aqui sentando a pua na correspondência eletrônica e é justamente ela que me permite enviar o que escrevo para uma penca de amigos e leitores. Pois era aí onde queria chegar: o que faz rir, faz também chorar. Tudo tem seus prós e seus contras. E é bem provável que haja alguém que ache o que escrevo justamente de utilidade zero e tão profundo que, usando uma do Nelson, uma formiguinha atravessaria andando com água pelas canelas. Ainda que escreva essas coisas que me servem de catarse e onde demonstre quão infeliz estou quanto a meu país, há sempre alguém, uma multidão, que não se importa com nada disso, que não dá a mínima. Talvez essa multidão esteja justamente no estádio de futebol vendo o jogo e torcendo por seu time.
Ora, é precisamente isso o que não entendo. O sujeito não torce por si mesmo, mas torce por um time de futebol. Aqui devo fazer uma ressalva a evitar ser mal interpretado. O sujeito, qualquer sujeito, pode torcer por um time de futebol, mas não sem antes torcer por si mesmo. Eu diria que o torcedor inglês, por exemplo, pode se esgoelar, pular, apupar o juiz e o adversário. O torcedor inglês adquiriu esse direito posto que já construiu o seu país. Torceu primeiro por si mesmo ao erguer suas fortes e robustas instituições. Já o brasileiro...
Vamos lembrar o que houve comigo em Sobral, quando me hospedei no hotel do padre. Simplesmente fecharam o restaurante do hotel a todos os hóspedes para dá-lo em exclusividade a um time de futebol. Eis aqui o brasileiro a torcer pelo seu time e a apupar-se a si mesmo. (Devo ser um sujeito corajoso por me aventurar a falar contra o futebol justamente no dito país do futebol.)
Para minha felicidade de Robson Crusoé, recebi de meu amigo Lineu Jucá a prova que me faltava para demonstrar quão pouco torce o brasileiro por si mesmo e pelos seus. Enviou-me o Lineu a tabela do Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS). (Devo ser também um sujeito importante para ser contemplado com o envio de documento tão esclarecedor e prova documental da total e completa idiotice e estultice do brasileiro.) O documento mostra os valores que o Sistema (entenda-se o governo) paga ao médico cirurgião, seu auxiliar, anestesiologista e hospital conveniado em alguns – apenas alguns – procedimentos cirúrgicos comumente realizados em pacientes que não têm plano de saúde. Ela também mostra os valores que os planos de saúde pagam aos médicos credenciados nos mesmos procedimentos, discriminando se o paciente paga um plano mais barato ou mais caro (enfermaria ou apartamento), segundo a tabela da Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM).
Tomemos a operação para a correção de uma hérnia inguinal. Na tabela do SUS o cirurgião ganha R$ 74,00 (setenta e quatro reais), o anestesiologista R$ 44,00 (quarenta a quatro reais), o auxiliar R$ 30,00 (trinta reais) e o hospital particular conveniado ao SUS ganha R$ 298,00 (duzentos e noventa e oito reais) para cobrir despesas diárias, alimentação, medicação, drogas anestésicas, etc., ou sejam elas quais forem (é um valor fixo). Um plano de saúde privado paga os seguintes valores à equipe cirúrgica, para o caso de um paciente portador de hérnia inguinal com plano de enfermaria: R$ 308,00 (trezentos e oito reais) para o cirurgião, R$ 100,00 (cem reais) para o anestesiologista, R$ 277,00 (duzentos e setenta e sete reais) para o auxiliar, e os custos hospitalares serão pagos segundo a conta apresentada pelo hospital.
Não há necessidade de comentário.
É uma vergonha. Ambas as tabelas. Só está verdadeiramente livre para cobrar o que quiser o hospital particular não credenciado ao SUS.

Fernando Cavalcanti, 03.03.2011

POBRE FUTEBOL CEARENSE...!

Comentar o jogo Ferrim e Fortaleza? Ora, outra pelada. E Guarany e Horizonte? Nem se fala. O Ferrim está em que divisão do Campeonato Brasileiro? E os outros, Guarany e Horizonte? Bem, o Fortaleza está na terceira. Resumindo: todos os semifinalistas do campeonato cearense são da escória do Brasileirão. O Ceará, que está na elite, não figurou nas semifinais.
Decepcionou? Óbvio que não. Já era esperado. Todos sabem que os times da casa impressionam, ou melhor, não impressionam por sua irregularidade. Na primeira divisão do Brasileirão veremos um Ceará indo para cima, indo para baixo, para cima, para baixo, para cima, para baixo... Dirão: -“Não há dinheiro.” Sim, é verdade. Comparados aos times do sudeste e do sul, os nordestinos são uma penúria da falta de recursos. Assim como os melhores jogadores brasileiros vão à Europa ganhar milhões de euros em salários e outros contratos de negócios, ficam os “menos melhores” no sul e sudeste a ganhar milhares de reais. No nordeste ficam esses aí. E, mesmo que uma partida de futebol esteja sujeita ao acaso, o acaso sempre dá mais resultados aos melhores.
Mas, se o Ceará é a elite do estado em matéria de futebol, por que não chegou nem às semifinais? Sabe-se lá. Obra do acaso, mais uma vez. Outro dia vi meu amigo Evandro Leitão dizer que já sabia dos cofres vazios e das dificuldades que o time enfrentaria na primeira divisão do Brasileirão. Ele, que não é besta, tratava de lembrar a todos que têm mania de primeiro mundo que não há primeiro mundo sem dinheiro. Sim, é preciso de dinheiro, capital, moeda, bufunfa.
E o Horizonte? Ora, se o Ceará não tinha dinheiro, o Horizonte havia de ter menos ainda. E se tinha menos, como conseguiu chegar às semifinais? Deve ser novamente o acaso do senhor Mlodinow. Lembrei-me agora de uma frase que ouço desde que era menino: futebol não tem lógica. Vai ver é isso. Não há, no mundo do raciocínio lógico, nada que possa responder a tais questionamentos. Digo, há, sim: justamente a falta de lógica. A falta de explicação lógica é o bálsamo do futebol em se tratando de nossos times pobretões.
Falemos do Ferrim. Tenho uma penca de amados amigos torcedores do Ferrim. Quando lhes pergunto por que torcem por time tão sem expressão, tão medíocre, a explicação justifica, mas não explica. Quero uma que explique. Sou forçado a reconhecer que nenhum deles ainda entendeu a minha pergunta. Serão burros? Não acredito. Dizem eles, por exemplo, que a maior torcida do estado é a deles. Diante da obviedade da falsidade desta assertiva, eles alegam que quando jogam contra o Fortaleza, como ontem, recebem apoio da torcida do Ceará e vice-versa. O diabo é que precisamente ontem havia meio estádio vazio. Sim, o paredão de arquibancadas oposto às cabines de imprensa do estádio Castelão estava virtualmente despovoado. Presumi que seria lá onde deveria estar a torcida do Ceará e, por conseguinte, a grande torcida coral.
Resultado: a explicação de meus amigos quanto à maior torcida não se sustenta no mundo real. Que digam que torcem Ferrim por influência de seus pais até se admite, mas não a ponto de preservarem essa influência até a sepultura. Onde estão sua autenticidade e liberdade de escolha? Conheci amigos que torciam Ceará e viraram casaca, mesmo sob a forte e contínua pressão de seus pais. E assim por diante, têm os torcedores do Ferroviário inúmeras explicações anedóticas para seu perene sofrimento e para sua vida futebolística tão emocionante quanto uma partida de paciência. O fato é que ontem os torcedores corais foram largados à própria sorte pela torcida do Ceará e o time rendeu aquilo que se esperava, ou seja, nada.
Eis, então, que no próximo domingo jogam Fortaleza e Guarany de Sobral decidindo o primeiro turno do campeonato cearense. Os torcedores do Ferrim bem que podiam dar uma força ao Fortaleza, e os do Ceará ao Guarany e sua pequeníssima torcida que certamente virá “em massa” prestigiar seu clube. A casa cheia seria o espetáculo grandioso e apoteótico que a mídia local tanto espera para elevar o moral do pobre e pífio futebol cearense.

Fernando Cavalcanti, 22.02.2010

OUTRAS CONSIDERAÇÕES FUTEBOLÍSTICAS

Deram-me os nomes dos bois: Everaldo, Elton e Rogerinho. Esses senhores são os jogadores do rebaixado Fortaleza que, segundo os meus taxistas, farreavam todas as noites, exceção feita às noites que estavam fora do estado. Nestas, presume-se que farreavam alhures. Agora, já tarde, vem de lá o senhor Lúcio Bonfim anunciar que descobriu haver no plantel jogadores vagabundos. Pena ele não usar os serviços de meus taxistas. Se o fizesse, saberia tudo. Os taxistas tudo vêem, tudo sabem. Ontem um deles, ao ouvir de mim um hipotético salário desses senhores, fuzilou: -“Que nada, doutor! Um desses aí ganha seus 80 mil!” Bem se vê que está certo o ditado que diz: quem nunca come mel quando come se lambuza.
Ontem, tão logo recebeu meu texto, bateu-me o telefone o meu querido Pedro Olímpio. Alinhou-se comigo na ideia da estupidez futebolística. E municiou-me de mais dados e fatos.
Fiquei sabendo das casas, bares e restaurantes que só passam jogo do Ceará. Existem as que só passam os do Fortaleza. As razões são óbvias: os donos são seus torcedores. Só transmitem jogos do rival quando seu time não joga e única e exclusivamente para “secar” o outro. Concluo, então, que torcer vem acudir os que precisam, necessitam, têm ânsias de odiar ou de mal-querer. Não basta amar de paixão e perdidamente seu clube do coração. É preciso odiar visceralmente o adversário. A pergunta que faço é: e se morrer o adversário? E se deixar de existir? O que será de si mesmo?
Imaginemos que desapareça o Fortaleza em seu rebaixamento à terceira divisão. Que será do Ceará? A quem seus torcedores odiarão? Há algo de distúrbio afetivo nesse ódio escolhido a dedo. O clube rival é o repositório de uma tralha emocional basicamente podre. Em vez de se odiar a mulher, ou o chefe, ou o vizinho, odeia-se o clube rival. Então, os 60 mil torcedores convocados ao Castelão para o último jogo do Ceará, onde se espera aconteça a consagração final, devem todos marcar consulta com psicólogo já na segunda para esclarecer qual é o verdadeiro objeto de sua projeção.
É tão grave e notório o ódio que se tem que o objeto odiado foge a milhas de distância para não se ver vítima primeiro da angústia da derrota, segundo da execração pública pelo oponente. Foi o que ocorreu com meu querido e ausente amigo Luís Júnior que, antevendo a tragédia da queda do Fortaleza e a visão dolorosa da ascensão do Ceará, tomou um avião e foi refugiar-se em algum lugar da Flórida. Lá ficará até que se desanuvie a patuscada do Ceará e as humilhações do Fortaleza. Para ele, é “flórida” ver seu arquirrival no topo. É ferida mortal e dolorosa. Quando voltar já lhe terei marcado a consulta com profissional competente. Seu tratamento deve-se iniciar urgentemente, sob pena de ser vitimado de melancolia e depressões atrozes.  
Fiquei sabendo também, e por isso fui injusto em meu texto anterior, que os cearenses teremos, na segunda divisão do brasileiro, o time do Icasa, que ascende da terceira divisão, para onde foi o Fortaleza. Vejam que coisa interessante. Fica a sugestão aos amigos torcedores do Fortaleza: se não podem torcer pelo Ceará na primeira, já que seu ódio não permite, torçam pelo Icasa na segunda. Será um bálsamo a aliviar tamanha vicissitude. Sim, porque o torcedor cearense é tão besta, mas tão besta, que torce por um time no Rio, um em São Paulo, outro em Minas, e por aí vai. Pergunto se os cariocas, ou os paulistas, torcem por algum time do estado do Ceará. E, o atestado da besteira futebolística: quando jogam Ceará e Flamengo, o torcedor do Ceará vira casaca e torce pelo Flamengo em plena capital cabeça-chata. Se assim fazem, não há porque não torcer pelo time aqui do Juazeiro.
E haja psicólogo para tratar desse povo.  
Fernando Cavalcanti, 25.11.2009

O PLANTEL DE DUNGA

Pergunta-me o Pedro o que achei dos convocados do Dunga. Vejamos.
Ficaram de fora os Ronaldos e o “imperador” Adriano, que não é o mesmo da escritora belga Marguerite Yourcenar. Entre os Ronaldos há um que é o “fenômeno”. Entende-se que este há de ter talento acima do normal, e é um prodígio. Então, ficaram de fora um prodígio, um imperador e outro que não ganhou nenhum aposto, mas que talvez merecesse um vocativo: - ó, Ronaldo...! – que soaria como um lamento.
Outro dia a torcida do Corinthians cantava em coro as preferências sexuais do prodígio, que começaram a vir a público com o “Andréa”. Entre um escândalo e outro o sobrepeso foi só um detalhe. O homem não demonstra mais prodígio algum, exceção feita às peripécias dos instintos. Uma amiga coincidentemente comentou hoje comigo o que eu não sabia: - o prodígio de Ronaldo não tem nada a ver com seu trato com a bola. Antes, teria a ver com os dotes que lhe deu a natureza. Eu jurava que quem o chamou pela primeira vez de “fenômeno” foi o Galvão Bueno. Bem se vê que sou um ignorante em matéria de futebol, e mais ainda do que ocorre em seus bastidores.
O “imperador” não é muito diferente. Gosta de mulher, e muito! Só namora gostosas e rechonchudas, e que gostem de botar barraco. Gostosas, rechonchudas e barraqueiras, eis o perfil de sua preferência. O problema dele é que saiu do mato, mas o mato não saiu dele. Adora visitar seus amigos de infância do morro, o que não seria nada de mais não fosse pelo fato de que hoje são traficantes de drogas. E bebe! Não é só um drinque aqui e outro ali, pelo que se tem visto na imprensa. Um drinquezinho de nada não faz ninguém ter depressão ao dia seguinte. Quem bebe e fica deprimido a seguir são os que entornam. E não gosta de treinar. Faz o estilo Romário. Para resumir, e não ficar dizendo aqui o que a crônica futebolística deste país está cansada de alardear: o “imperador” vai ao morro com a namorada gostosa, enche a cara, enche a pobre de sopapos, dá uns “tapas” no bagulho, ela põe o maior barraco - é possível até que lhe encha de unhadas -, os amigos o defendem alegando que todo casal troca bordoadas assim mesmo, e ao dia seguinte está mais triste do que funcionário público ao fim do mês. O que me escapa justo agora é o substrato de seu apelido. Parece que tem a ver com o fato de ter jogado na Itália. Seria mesmo o imperador romano, o da Marguerite, do século II da era cristã. Vejam vocês: - iniciei dizendo o contrário, e a dedução me demostrou meu próprio equívoco. Deixemos assim como está.
O outro Ronaldo, o gaúcho, vem amargando uma espécie de ostracismo futebolístico e em manchetes de jornal, embora os periódicos europeus tenham expressado certa surpresa e indignação por sua não convocação para a seleção brasileira que jogará a copa da África. Daí o lamento: - ó, Ronaldo...! Com efeito, a indignação foi pela não inclusão dos três ilustres senhores no plantel de Dunga. Em suma, o Ronaldo gaúcho anda com a bola murcha há muito. Não tem feito por onde. Pior para ele que não vai jogar a copa, melhor para ele que continua a faturar seus milhões aconteça o que acontecer. Besta é o torcedor que se mata de amor, paixão e ódio por essas caras.
O que achei do plantel do Dunga? Quase não sei quem é quem, à exceção do Kaká, do Robinho, e de outros dois ou três. Melhor assim. Não há que se decepcionar com quem não se conhece. Assim, torcerei pelo Brasil enquanto estiver a ganhar. Se começar a perder, viro a casaca e torço pela Argentina. O resto é a farra dos dias de jogo. Para mim, que detesto trabalhar, vai ser sopa no mel.

Fernando Cavalcanti, 12.05.2010   

GUARANY (e olha que o Pedro é sobralense!)

Uma ideia estapafúrdia como essa só pode ter saído da cabeça de meu querido Pedro Olímpio. Dado a incitar o debate, afeito às provocações, penso que em criança era daqueles que, entre dois amiguinhos a se estranhar, riscava uma linha ao chão e incitava cada um a pisar na “mãe” do outro e iniciar a briga. Não é que ele me levanta a suspeita de o Guarany de Sobral ter se vendido ao Fortaleza? Podem acreditar.
Hoje é quarta. Não, de fato é quinta – já passa da meia-noite. Estava demorando. Pensei que o Pedro, a essas alturas, tivesse metabolizado o jogo de domingo. Pelo jeito ainda não. Quer que eu comente o tal jogo. Antes, porém, um comentário vem bem.
É o seguinte. Há anos venho afirmando peremptoriamente minha aversão ao futebol. Eis que, de uns tempos para cá, escrevi vários comentários sobre futebol e sobre partidas de futebol. De início critiquei o próprio futebol, e em seguida comentei partidas. Em suma: - tenho dado mais atenção ao futebol do que minha ojeriza permite. Já me pergunto se minha ojeriza não seriam os genes de meu avô, José Cavalcanti de Araújo, a comandar a síntese de proteínas anti-futebol. Elas teriam um efeito hormonal e agiriam n’alguma área de meu cérebro causando tamanho desprazer no momento em que se ventilasse algo, qualquer coisa, sobre futebol. Se for assim, seria possível que tais genes estivessem tendo sua atividade agora suprimida? Estariam agora a se manifestar os genes pró-futebol, todos eles localizados em meus cromossomas Y? Bem, tudo isso é de uma possibilidade infinita, sem dúvida.
Em não diria tanto. Com efeito, ainda não me vejo saindo do sossego de meu lar para ir a um estádio de futebol. No primeiro mundo, talvez. Os turistas são uns bobões. Fazem qualquer coisa para dizer que fizeram. Mas, aqui... está fora de questão. Não há a menor possibilidade. Acredito que minha ânsia literária também contribui para minhas incursões futebolísticas, e nada mais é do que uma resposta a uma provocação de meu Pedro. Eu diria que ele conhece o meu ponto fraco, o safado. Dito tudo isso, vamos ao jogo.
A verdade é que não o assisti por completo. Não tenho a devida paciência. Só para terem uma ideia, não vi os dois últimos gols do Guarany, nem os três últimos do Fortaleza, os que empataram a partida. Nem vi o olé que, segundo dizem, o Guarany impôs ao time da casa. Entretanto, o pouco que vi ao início demonstrou um Fortaleza acanhado e um Guarany atrevido. Depois veio o escore elástico em favor do time de Sobral, sua empáfia no olé e em gols perdidos em função do excesso de diferença no placar, e a retirada do tal do Clodoaldo por parte do Neto Maradona, técnico do Guarany. Na seqüência, a reação fulminante, inesperada e gloriosa do Fortaleza.
Como, neste cenário, supor uma negociata, um conchavo, em favor do time anfitrião? Não creio, caro Pedro. O que não se falou até agora foi no mérito que tiveram os jogadores tricolores, particularmente esse Rinaldo, que entrou e fez dois gols. Enquanto o Maradona tirava o melhor do Guarany, dando-se por satisfeito com o placar e desacreditando numa reação do adversário, o técnico tricolor – como é mesmo seu nome? – punha o Rinaldo. O técnico do Fortaleza fez o que se deve fazer quando se está perdendo: mexeu no time. O outro fez o que não se deve fazer quando se está ganhando: mexeu no time. Atitudes idênticas em contextos diferentes: - saiu vitorioso o Fortaleza. Com tudo isso, perderam o emprego o Maradona e o Valdir Papel, atacante do Guarany responsabilizado por ter contribuído para a derrota por ter perdido um ou dois gols que teriam literalmente inviabilizado uma recuperação tricolor. Lembre-se que ele marcou um dos gols de seu clube. Não foi suficiente. O pobre Maradona foi responsabilizado por mexer no time. E assim desmontou-se o Guarany, que vinha muito bem na competição, no calor da emoção da vitória frustrada. Talvez o erro agora tenha sido da diretoria do clube, que o desarticulou precipitadamente, ainda com meio campeonato à frente.
Aí está, como queria o Pedro, o comentário sobre a propina que o Guarany não recebeu para perder para o Fortaleza. Escrevi como escrevem os comentaristas esportivos: - um resumo do que todos já sabem. Falta apenas entrevistar o Maradona e o Valdir Papel e lhes indagar quanto receberam para fazer as merdas que fizeram.
Vai lá, Pedro. Faz essa pergunta a eles. Vai de capacete e colete a prova de balas. Em minha humilde opinião seus erros são os erros comuns que se cometem no futebol. Se o zagueiro mete o pênalti que perdeu e que deu a vitória ao Fortaleza, estaríamos contando outra história, e quem seria demitido seria seu técnico. Como é mesmo o nome dele?...

Fernando Cavalcanti, 04.03.2010

domingo, 19 de abril de 2015

FRANÇA X MÉXICO

Vocês viram França x México? As chuteiras tinham somente as travas regulamentares, notadamente no escrete mexicano. Ninguém dos jogadores mexicanos entrou de salto alto. E, engraçado, ninguém parecia receoso de se contundir. Vejam bem: não me refiro às condições técnicas de algum jogador em particular. Falo do time, do grupo; afinal, o futebol é um esporte grupal.
O que quero dizer é que o time – e também a França – jogou aberto, pleno, sem medo de perder, na raça. Aliás, até a Grécia, com aquele timezinho menos que medíocre, conseguiu, na raça, virar o jogo contra a Nigéria. Tudo obra da vontade, da garra, da força que se tira não se sabe de onde a superar todas as limitações técnicas e o histórico absolutamente desfavorável.
O locutor dizia que a França de hoje em nada lembrava o outrora campeão mundial, do qual o Brasil é freguês. Foi injusto o locutor – não honrou o mérito do time mexicano, que não se embolorou diante daquelas camisas azuis. A propósito, é preciso muita atenção ao que dizem os locutores, principalmente se forem empregados de emissoras de programação aberta. No todo suas impressões são, na melhor das hipóteses, um monte de conversa mole e firula. Pois eu bem queria ver jogar a França contra Kaká e companhia. Os canarinhos sentiriam o peso das camisas azuis? aquelas para as quais se venderam em ’98?
O México ensaiou um olé. O time correu a não mais poder, tinha raça, vontade, virilidade. Mesmo após cada um dos gols vinha para cima do adversário. Alguém dirá que futebol não é corre-corre, e de fato não é. Mas o corre-corre que demonstra vontade, gana, objetividade em relação ao gol deve ser elogiado. A copa do mundo não é o campeonato brasileiro que tem mil rodadas. Lá a parada é decidida em três jogos. Só há uma maneira de pensar: ganhar ou ganhar. E estamos conversados.
O engraçado é que já vimos isso várias vezes em várias seleções que o Brasil montou. Parece que, após o tri, o Brasil passou a se achar imbatível, exceção feita à vez que se vendeu. Naquela vez desceu ao nível mais baixo de sordidez e atitude anti-desportiva. Até hoje o time não entrou em campo para disputar a final com a França. E depois, de tão envergonhado, não conseguiu mais olhar os franceses nos olhos dentro de um campo de futebol. Acho até que, se houvesse uma guerra entre nós e eles, levaríamos baionetadas na bunda de tão inferiorizados que estamos até hoje. Eles não teriam coragem de atirar nos pobres diabos. Em suma, ainda estamos humilhados, e receio que tal humilhação não se dissipe jamais. Somos para eles o que o Peru é para a Argentina.
O México, que nunca havia ganhado da França, hoje mostrou que a vontade de superar o tabu e o próprio adversário é o que conta. Só tenho dó porque se a França não passar, tendo nós passado, não a enfrentaremos para que fique provado o que digo. Em contra-partida, se pegarmos o México... sei não!

Fernando Cavalcanti, 17.06.2010

FORTALEZA X MARANGUAPE

De quem é o estádio Alcides Santos? Acho que é do Fortaleza. Ou será do Calouros? Talvez seja do Tiradentes. A verdade é que não sei. Pois bem: passando os canais em busca de um filme, topo com o estádio Alcides Santos. Pareceu-me um estadiozinho pequenininho, desses onde nós amadores jogamos com os amigos em noites de semana. Não tem arquibancadas; ou melhor, tem, mas do lado de cá. Do lado de lá e atrás de um dos gols há apenas um muro pintado com as cores do Fortaleza.
Agora tenho certeza: - o Alcides Santos é do Fortaleza. Nas outras partes, do lado de cá e detrás da outra baliza, me pareceu haver uma arquibancadazinha mixuruca, dessas que se montam para o corso. Só pude perceber esses detalhes quando o juiz marcou um pênalti para o Fortaleza. O adversário era o Maranguape. Eu nem sabia que Maranguape tinha time de futebol profissional. Sabia, sim, que tem assaltos, homicídios, tráfico de drogas, mas nunca time de futebol. Pois o juiz meteu o Maranguape numa saia justíssima: - a penalidade foi marcada aos quarenta e três minutos do segundo tempo, quando o jogo estava empatado, e no exato momento em que eu passava pelo canal que transmitia o jogo.
Parei. Mesmo o expectador mais averso a futebol como eu pára diante do pênalti. Justiça se faça: o gol é, de fato, o grande e único momento do futebol. O resto é o resto. O resto fica por conta das negociatas e patrocínios. E não é que o Fortaleza converteu? Ganhou do Maranguape, que agora tem time de futebol, por 2 X 1. A humilde torcida presente ao Alcides Pinto quase vem abaixo. Vibrou-se como em final de campeonato. O goleador subiu no alambrado e comemorou com a escassa torcida como se seu gol fosse de final. Puxava a camisa com a mão fechada e a levava a boca para beijá-la. Seria emocionante não fosse desnecessário. Mas depois entendi.
Eu disse Alcides Pinto? Não é Alcides Pinto. É Alcides Santos. E mais um pouco percebi: - o Alcides Santos é um estádio arborizado, ecológico, verde. Se brincar tem até cutia e soim. A fauna e a flora do Alcides Pinto, digo, Santos, deve ser riquíssima. O que tem menos lá é gente. E ainda bem porque, de todos os predadores conhecidos, é o homem o mais feroz e mais mortal. Em suma, o Alcides Santos vai melhor como horto florestal ou como zoológico. Eis o que queria dizer: - o Alcides Santos de concreto é um erro, e seu gramado está fadado a ser palco de peladas.
Ora, não assisti ao jogo. Mas segurei-me um pouco mais esperando uma reviravolta no placar – o Maranguape ficou furioso com o gol do Fortaleza. Vi-me, então, assistindo aos melhores momentos, ao final da partida. E o que os melhores momentos mostraram foi uma grande e vergonhosa pelada, dessas que divertem pela ruindade dos atletas. O gol ao apagar das luzes, feito através de um pênalti altamente duvidoso, levou os jogadores tricolores ao delírio justamente por esta razão: - livrou-os do vexame de empatar com o Maranguape, que agora tem time de futebol, dentro de casa numa ruidosa e vergonhosa pelada.
Não sei se devo dizer. Vou dizer. Será que digo? Já ontem falei sobre jornalistas. Mas, vá lá.  É o seguinte: - o pior foram os comentaristas esportivos ao final. Numa esterilidade futebolística como aquela, dizer ainda qualquer coisa é o fim da picada. Inda mais quando se percebe que se está a encher linguiça. Se fosse viva, minha querida avó Dolores diria simplesmente, sem nenhuma inflexão na voz, ao comentar tamanha pelada: -“Nada a declarar.” Foi realmente de fazer dó.

Fernando Cavalcanti, 24.01.2010

DIGAM AO POVO QUE FUI!

Escreveu-me o Pedro indignado com a manchete de hoje do jornal O Povo. Não entendia como o jornal dava tanta importância a um evento tão banal como a saída de um técnico de futebol. Vocês devem ter visto. O técnico do Ceará Sporting pediu as contas e foi ser treinador do Vasco da Gama.
Não há nada demais nisso. O homem ia dobrar o salário, voltar à terra natal, ficar perto da família. Quem não iria? Qualquer um faria o mesmo. E estava lá, estampada em letras garrafais na primeira página: Fui! Ocupava metade da capa. Era um senhor Fui! Chegou a passar a ideia de que o homem saía contrariado, aborrecido com algo que lhe fizeram. Não foi isso. Saía pelas três razões elencadas acima. A multa pela rescisão vai ser paga pelo Vasco – só trezentos mil reais. Uma mixaria.
E saiu o Pedro a procurar as manchetes de outros dois jornais de peso. O Diário foi mais sereno, mais comedido no anúncio; o Estado mais ainda. Vá entender essas diferenças! Afinal, há de haver diferenças, senão basta ter um jornal no estado. Se todos saírem a se copiar entre si não tem por que ter mais de um periódico circulando. O Pedro certamente entenderá que alguma razão existe.
O que não vou conseguir lhe explicar é a importância dada ao assunto por um, e um quase desprezo dado por outro. Vai ver o chefe de redação do O Povo torce pelo vovô e ficou fulo com a saída do técnico, justo no momento em que o time vai bem à competição. Ou, por outra, o editor-chefe quis incitar a grande torcida do alvinegro e assim vender mais jornal. Enfim, sabe-se lá!
Talvez o Pedro ache que a notícia da inauguração da ponte da Sabiaguaba merecesse maior visibilidade. Afinal, a obra demorou oito anos para ser concluída, e consumiu muitíssimo mais recursos do que o inicialmente orçado. Seria mais uma história repleta dos temas comuns das obras públicas brasileiras: incompetência, desvio de dinheiro, superfaturamento, etc. etc. Daí a maior importância em ser anunciada na capa. Vai ver por isso mesmo não se deu tanta importância. Poupemos os leitores para que não tenham um infarto. Deixemos a matéria embrulhada noutra página. Até lá terão se adaptado à evidência da pobreza do futebol cearense.
Sem titubeios: jornal vive de desgraças e sensacionalismos. Obras públicas que se arrastam gastando uma fortuna dos cofres governamentais não causam mais sensação nem mais se computa no terreno dos infortúnios do povo brasileiro. Chegamos à banalização do tema. Só há como viver se for assim? Então vivamos assim, bolas! Soframos um pouco com o destino a conspirar contra a campanha do time de futebol. O populacho vai querer saber dessa história nos mínimos detalhes. A ponte finalmente saiu, é o que importa. Demorou mas saiu.
Será que o Pedro duvida que, se o Brasil for campeão da copa, a página inteira de todos os jornais vai ser dedicada ao tema? De lá, da própria página, sairão confetes e serpentinas ao som dos fogos de artifício, vuvuzelas e brados de “É Campeão”! Na página principal do caderno de esportes teremos as fotos da festa que a prefeitura vai dar no aterro da Praia de Iracema, tão logo termine o jogo, com Luizianne Lins sendo carregada nos braços da galera como se tivesse feito o gol da vitória! Viva o Brasil! E haja pagode!

Fernando Cavalcanti, 14.06.2010

BRASIL ZERO A ZERO

          Alguém acredita mesmo que esse timezinho do Brasil vá longe nesse torneio? Eu vos digo com a cara mais lavada do mundo: não acredito. Inúmeras variáveis embasam minha opinião. Para ser mais exato, são as invariáveis as pilastras de meu parecer. Dirão alguns que a ausência do Elano, Robinho e Kaká foi decisiva para a péssima apresentação contra Portugal. Discordarei veementemente.
          Esqueçamos todas as opiniões e justificativas dos narradores das emissoras brasileiras. O Galvão Bueno dizia: -"Os jogadores estão se poupando!" O da SporTV bradava: -"O time português está na retranca!" Outro não sei de onde anunciava: -"O Brasil só joga pela esquerda!" E todos lembravam a intervalos o histórico das partidas entre os dois países, como se isso fosse garantia de nova vitória por parte da equipe de melhor currículo.
          No frigir dos ovos o que se viu foi uma péssima partida de futebol, e a certeza de que o Brasil não tem time para ganhar essa copa do mundo. A não ser que modifique tudo, ou quase tudo, é uma questão de tempo a eliminação. Ainda que não se possa modificar o plantel, pode-se modificar o ânimo dos jogadores. O exemplo é esse tal de Felipe Melo, que veio jogar contra Portugal como se estivesse disputando uma final em campo de várzea. Estava completamente perdido e comprometido até o pescoço num embate de luta corporal contra o português Pepe, que por sinal é brasileiro de nascimento, lá das bandas das alagoas. Modificou-se o jogador, mas não a apatia de um time fraco e inexpressivo. Há como mudar isso? Se houver...
          Quem vê jogar uma Argentina ou mesmo - quem diria? - um Japão, sabe que esse Brasil que está aí não vai muito além. Como desde '98 estou convencido de que o futebol tornou-se uma grande arena de negociatas e maus bofes, penso que se pouparam Elano e Robinho em função da classificação já garantida. Jogar pela tabela, pela contagem dos pontos há muito se tornou a meta no futebol.
         Um amigo dizia, coberto de razão, que o futebol é o único esporte onde o mais fraco vence o mais forte, não infreqüentemente. Pensando melhor, e a propósito de se jogar por resultados, o futebol é o esporte onde com freqüência se evidenciam a covardia e a mediocridade. Por permitir o empate, único esporte onde isso é possível, o futebol possibilita, como agora, partidas ridículas, repletas de covardia, mediocridade e cinismo. Falta nelas o mínimo de patriotismo - se a competição é internacional -, de vontade de vencer, de vontade de glória. Como o resultado do empate satisfaz aos dois lados, fazem o pacto que a ninguém satisfaz, exceto aos burocratas e aos jogadores, estes no clímax profissional e financeiro. Imbecil é o povo que se prepara para a guerra e vê frustrada sua expectativa de fortes emoções.
          É preciso que se diga a esses senhores que queremos ganhar, sim, mas que não nos importamos se perdermos derramando o sangue no campo de batalha. Deploramos a mediocridade e covardia do empate acordado, compactuado. Numa fábrica de talentos e craques, poupar qualquer jogador significa que não se levou o melhor plantel. O Brasil talvez seja o único país do mundo que possa formar cem excelentes seleções de futebol. Levar duas ao mundial seria de uma facilidade enorme. Levar uma e meia é sintoma de pura incompetência ou, pior, mais um sinal evidente de negociata.
          Então, encaremos os fatos. Na próxima segunda estejamos preparados para outro péssimo jogo, onde a vitória pode ser o resultado, mas sem glória. A imprensa e muitos brasileiros querem ser campeões jogando pela tabela e derrotando times inexpressivos. Em suma: campeões de mediocridade. Seremos campeões por vencer os fracos que venceram os fortes com sua raça, vontade se superação e glória. Em suma: campeões de covardia.

Fernando Cavalcanti, 26.06.2010

ANÁLISES FUTEBOLÍSTICAS

          Até há pouco tempo eu ainda me permitia torcer por time de futebol. Sim, me aventurava a torcer pelo time que ganhasse. Nesse tempo em que torcia por quem ganhasse não mais freqüentava estádios, nem assistia a jogos pela televisão. A verdade é que o futebol “oficial” deixou cair sua máscara em 98 em França. Desde então tive a mais figadal certeza: os “esquemas” abundam no mundo do futebol. Mais, e por extensão: os “esquemas” abundam no esporte. Portanto, passei a torcer por quem ganhasse. Queria ver os gols. Quem fizesse mais tinha a minha humilde torcida. E ainda era generoso: quando um time levava um gol, torcia a que empatasse. Se se mostrasse incompetente para fazê-lo, vingava-me torcendo a que o adversário fizesse mais gols e ganhasse de lavagem. Para resumir, não havia possibilidade de eu sofrer com as armações do mundo do futebol.
         Mais recentemente desisti. Custa-me entender a paixão de quem quer que seja pelo futebol, ou pelo automobilismo, ou pelo basquete, ou pelo vôlei. Alguns amigos acham “lindo” o estádio lotado, a torcida eufórica aos gritos, as bandeiras flamulando, os confetes e serpentinas caindo. Tem gente que chora, se emociona, passa mal. Eu? Não dou a mínima. Não fede nem cheira. Ou por outra, mais fede que cheira.
          Vemos aí o Ceará Sporting Club (ou Clube?) passando, e subindo, da série B do campeonato brasileiro para a série da elite. Acabo de assistir a uma entrevista de meu amigo Evandro Leitão, presidente do Ceará, onde, com as bochechas empapadas de comemorações perenes, convocou 60 mil torcedores a comparecer sábado ao Castelão para incentivar o clube a vencer o América e fechar a campanha com chave de ouro. A julgar pelo que tenho visto na cidade, seu convite será amplamente aceito, não há a menor sombra de dúvida. Rodaram-se, então, imagens das comemorações da ascensão do clube onde aparecia meu querido Evandro aos prantos nos braços de outro varão torcedor. Que coisa desproporcional! Quando encontrá-lo – e espero que seja em breve – dar-lhe-ei uns bons puxões de orelha a que se comporte feito gente na próxima vez.
         No último sábado, dia em que o Ceará venceu a Ponte Preta e se classificou, recebi no celular uma mensagem de meu querido e estimado amigo Ivan Machado fazendo chacotas e implicando com a turma do Fortaleza, principal rival do Ceará. Bati-lhe o telefone imediatamente e ouvi um Ivan absoluto, resoluto, régio. Escalou-se a tomar umas cervejas comigo tão logo retornasse do IJF onde faria uma endoscopia. Não apareceu. Suponho que tenha-se perdido n’algum rega-bofe alvinegro. No domingo, ao abrir minha caixa de entrada na internet me deparo com meia centena de mensagens de meu amigo Águia, todas sobre o Ceará, desde sua fundação até o feito recente. Nunca vira demonstração de amor tão pública em toda minha vida. Sua mulher deve estar roxa de ciúmes do Ceará. Nenhuma franqueza foi maior e mais contundente do que a de meu querido amigo Edson Lopes Júnior, que bradou aos paralelos e meridianos: -“Nem me importa que suba o Ceará – quero é que caia o Fortaleza!” Acabou presenteado duas vezes, o safado.
          O Fortaleza, por sua vez, desceu à série C e envergonhou seus asseclas. Tenho amigos que se trancaram em casa e desligaram seus telefones. A tristeza e decepção com o desempenho de seu time aliadas às gozações dos torcedores do Ceará fizeram de seu fim de semana um inferno. Alguém há de duvidar do que digo? Acreditem: é possível. Melhor: é a pura verdade. Há quem sofra por isso. Imaginem: o sujeito se deixar ficar infeliz por obra mal feita de doze varões pernas de pau. Alguns perderam uma dinheirama em apostas. Imaginem: o sujeito tirar da boca das crianças para apostar nos profissionais da bola. O querido amigo Sérgio Moura, que tinha-nos convidado a churrasquear em sua casa recém-reformada no final da tarde de sábado, antevendo as nuvens negras da tempestade desligou o celular e escondeu-se Deus sabe onde. Não se dignou a avisar aos intimados que uma súbita e incontrolável indisposição de vergonha futebolística o alcançara. Fez feio junto ao Fortaleza. Na seara do rebaixado é quem merece um puxão de orelhas. Que vergonha!
          O que acontece é o seguinte. Moram aqui próximo, em prédio vizinho, três ou quatro atletas do tricolor. São uns garotos jovens, nunca comeram mel, saíram da periferia ou do interior para morar no Meireles e jogar em grande clube da capital. Vocês sabem, o dinheiro é uma merda, domina o desavisado. Somem-se uns rabos de saia e as agradáveis noites de primavera e aí teremos dias e dias de ressaca e pernas bambas. Assim dá para jogar futebol que preste? Quem me contou essa fofoca foram os taxistas da redondeza, dos quais sou cliente fiel. E diziam: -“O senhor sabe, né doutor... nós vemos tudo... sabemos de tudo!” Não sei se fará diferença contar-lhes que são todos torcedores do Fortaleza.
         O Ferroviário Atlético Clube também desceu. Não sei para onde, mas desceu. Dizem que vai jogar em várzea, com entrada gratuita, já que não há muros nem portões. Quem quiser pode levar qui-suco e dindin. E – pasmem! – conheço uns torcedores do Ferrim. Os que julgam terem eles desaparecido com a morte dos mais antigos e remanescentes, se enganam. Os finados deixaram uma prole de jovens torcedores fiéis. A diferença é que os torcedores do Ferrim não sofrem. Como o mendigo da praça que usa sua úlcera da perna para sensibilizar os transeuntes, os que torcem pelo Ferrim usam essa torcida inexplicável para fazerem chacotas de si mesmo e angariar a simpatia de quem quer que seja. Seria assim: o Ferrim não suscita ódios nem temores. Vive de derrotas. Eventualmente ganha uma, o que também não faz diferença.
       Não direi aqui que o Ceará ganhou através de algum “esquema”. Não foi o caso. Time nordestino não protagoniza “esquema”. Pode, sim, ser vítima de um. Assim, mais valor ainda tem a campanha do Ceará, que sofreu com gol de mão e tudo.
           Ao Fortaleza, como diriam os ingleses, shame on you! Um time que entra para a zona de rebaixamento na décima quarta rodada e nela permanece até o final da competição sem que nada se faça para corrigir os erros merece o que obteve.
        O Ferroviário fez o seu papel. Ou seja, nenhum. Deveria contratar os rapazes do Fortaleza que moram no Meireles. Eles adorariam tomar umas cachaças após o jogo na beira do rio.


Fernando Cavalcanti, 23.11.2009        

A MÃO DE DEUS BRASILEIRA

          Dizia hoje um repórter da SIC Internacional, uma emissora de televisão de Portugal, que a seleção brasileira de futebol está a jogar “a passo”; e que, por isso, via boas possibilidades de vitória sobre o Brasil no jogo da próxima sexta. Imagino que o “jogar a passo” ao qual se referiu o repórter seja o mesmo “jogar de salto alto” a que me referi há alguns dias.
          Sim, a seleção brasileira faz tantos toques de lado que parece que suas chuteiras têm salto alto. Seu ritmo em alguns momentos do jogo é tão lento que nos enchemos de exaspero. A própria seleção portuguesa não se intimidou – hoje partiu para cima dos coreanos do norte e os arrasou. O regime há de estar a engendrar uma severa punição ao escrete.
         Não bastasse nosso jogo enfadonho, a imprensa local, que está sempre a querer manipular nossos sentimentos e opiniões, comemorou hoje o segundo gol do Luís Fabiano ontem contra a Costa do Marfim apelidando a jogada que o antecedeu de “a mão de Deus brasileira”. Cá entre nós, se há uma tentativa de fazer humor com uma jogada irregular feita por um atleta brasileiro, é uma horrorosa e tétrica investida. Se houve perfídia no lance – o que de fato aconteceu de forma escandalosa! – o mínimo que a imprensa poderia fazer era ficar calada. Esta mesma imprensa indignou-se e revoltou-se recentemente com um gol de mão feito por atleta do Paraná contra o time do Ceará Sporting. A própria imprensa nacional quase vai ao delírio quando o Maradona fez um gol de mão na copa do México em ’86. Para nos deixar ainda mais atônitos, a Argentina terminou campeã. Fomos tomados de acessos e cólicas irremitentes. Que mensagem sub-reptícia quer esta imprensa passar a seus leitores?
        Falemos ainda da imprensa. Certa vez o senhor Galvão Bueno afirmou no ar, para os quase duzentos milhões de brasileiros que o assistiam, que gostaria de ganhar não sei que torneio através de uma vitória frente à Argentina com gol de mão marcado aos quarenta e seis minutos do segundo tempo. Não me lembra se o senhor Galvão Bueno fez tal comentário antes ou depois da façanha Argentina no México. Se antes, o Maradona agradece até hoje a dica; se depois, demonstra que ele morre de inveja da desonestidade dos argentinos em campo.
Alguém que me lê há de lembrar este triste episódio. O homem, também querendo fazer piada, é apologista de comportamento desonesto, assim como a imprensa local, desde que não seja contra si mesmo, ou contra seu país, ou contra os seus. Eis aí exposto em sumas palavras o pensamento de parte da imprensa brasileira, talvez a traduzir e explicar nossos políticos e o comportamento de boa parte dos brasileiros em seu dia-a-dia.
          Voltemos à imprensa portuguesa. Entrevistados nas ruas do país, do Algarve ao Porto e Norte, na Madeira e Açores, os portugueses foram francos: - a vitória numa copa do mundo com escore tão alargado é coisa para acontecer uma única vez a cada século. Por um momento me assaltou a dúvida: é raro o escore ou é rara a passagem às oitavas-de-final? Presumo que ambos o sejam. Estavam tão extasiados que comemoravam como comemoram aqui os ufanistas brasileiros. Acreditam que podem vencer o Brasil, mas já estão satisfeitos com o feito de hoje.
          A moral de toda essa estória é que nós brasileiros não sentimos a menor vergonha de lesar os outros. Traímos nossa impostura ética em nossa retórica cheia de mágoa e indignação quando somos nós os feridos. Quando não há vergonha não há pecado. Vide Adão que se escondeu da face de Deus quando ouviu sua voz a chamá-lo no jardim. Fosse Adão brasileiro viria nu ao encontro do Senhor mascando chiclete e retrucando: -“Fala aí, meu velho!”
         A “mão de Deus brasileira” é, de fato, a mão do pai da mentira.

Fernando Cavalcanti, 21.06.2010

sábado, 18 de abril de 2015

BEM SUCEDIDO

         Amorim sempre foi um sujeito cuja confiança em si mesmo ultrapassava os limites da decência. Ninguém ousaria supor que ele duvidasse de qualquer coisa ou projeto de sua autoria. Às pessoas desconfiadas de si mesmas ele era intragável. Ninguém gosta de ver alguém com tamanha autoestima, uma coisa a beirar a presunção, a empáfia. Aos amigos fazia as confissões mais escabrosas: –“Tô saindo aí com uma pequena linda, linda!”
Em matéria de dinheiro deixava transparecer o que a maioria dos endinheirados escondia a sete chaves. Dizer que ostentava suas posses ou novas aquisições seria uma injustiça com a verdade; não só o fazia como ainda confessava: –“Tô deitado numa dinheirama que nem imaginas!”
Em seu ofício jactava-se das manobras bem sucedidas e das medidas heroicas. Com efeito, justiça se faça, Amorim era mesmo bom no que fazia. O problema é que o autoelogio soa triste como o flato no elevador repleto de gente, ainda que o fizesse quase sempre entre os que considerava amigos.
Tudo ia muito bem na vida, enfim. Adorava a mulher, muito mais pelo fato de ela não lhe azucrinar o juízo do que propriamente por resquícios da paixão que por ela nutrira um dia. Era uma mulher calma, pouco falante, de voz macia, que não se aventurava em discussões argumentativas com o marido. Para melhor entendimento, diria que não é daquelas que entram a “peitar” o companheiro. Usava sempre de hipocorísticos ao se referir a ela – era fulaninha pra cá, fulaninha pra lá, e a coisa lhe parecia cada vez mais um conto de fadas. Fulaninha nem sequer imaginava as estripulias de seu fiel esposo. Quando fulaninha ia à terra natal visitar familiares, no Estado vizinho, Amorim não escondia a satisfação: –“Semana que vem vamos à luz vermelha! Chegaram umas meninas lindas!” E completava: –“Fulaninha vai passar o mês fora!”
Tudo, por anos, ia dentro dos conformes, e Amorim não cabia em si de contentamento. Feito um balanço geral da situação, concluía, para a alegria geral, que era um sujeito feliz. Resumia tudo, a excelente situação financeira, o sucesso no trabalho e no casamento, para uma meia dúzia de amigos, que engoliam as salivas secas e não escondiam a ponta de inveja a lhes morder as virtudes.
Às vezes era ele a viajar ao interior, administrar os negócios da família. Fulaninha, que sempre ficava na capital, nele confiava cegamente. Até o dia em que Fulaninha soube, sabe-se lá como, que por lá, no sertão, entre uma e outra dose de cachaça para aliviar a canícula insuportável, Amorim dava a devida assistência a uma jovem viúva necessitada e viciada nas vadiagens da cama. Justiça se faça: uma mulher de família com um mínimo de sensatez e inteligência não põe seu casamento a perder por causa de um ou outro pulinho do marido. Ainda mais um marido bem sucedido na difícil tarefa de acumular o vil metal, e tão competente no ofício de curar e aliviar sofrimentos. Uma única atitude seria o suficiente: dele não mais desgrudaria. Avisou aos parentes que ficaria um tempo sem lá pisar, e que lhes enviaria passagens para virem lhes visitar sempre que quisessem. E, por via das dúvidas, estaria sempre de malas prontas a ir enfrentar o calor do sertão, disposta também a entornar, com o marido, as cachaças providenciais.
O que sei é que Amorim não mais se jacta pelos corredores, e os amigos sentem-se aliviados por não terem de aturar um indivíduo tão bem sucedido como ele. Ninguém merece.


Fernando Cavalcanti, 17.05.2009

quarta-feira, 15 de abril de 2015

COTIDIANO II: O POVO

Outro dia recebi uma mensagem de uma senhora que não conheço. Em verdade ela respondia a uma correspondência eletrônica que recebeu de minha parte, enviada a um amigo comum. Ela me pareceu indignada com o que afirmei. Eu escrevi, em letras garrafais, que o povo é canalha, que tem responsabilidade sobre tudo o que os maus políticos fazem. Afinal, é o povo que os elege. Não são os norte-americanos, nem os chineses, nem os argentinos, nem os ingleses, nem ninguém, além do povo brasileiro, que elege a súcia política que ora viceja no Brasil. Se estiver enganado, que alguém aí me tire desse engodo.
Por que essa senhora se afobou com o que eu disse? Eu lhes digo. Por uma ingênua razão: ela imagina um povo casto, manso, indefeso ante as cachorradas dos políticos. O povo é inculto, ignorante, não sabe o que está fazendo, coitado. Esta é sua tese. Para ela, o povo é a vítima. 
Já disse, não conheço esta senhora. Presumo que já era nascida pelos anos 70. Haveria de ser uma adolescente ou quase isso. Nos anos 70 cheguei à adolescência. Desde então ouço essa estória do povo que é vítima. Seria assim: o povo é inimputável. Como uma criança que não sabe o que está fazendo, assim seria o povo àquela época. Vigia o regime militar. Ela continua afirmando, ainda hoje, que o povo permanece sem a devida informação que o habilite a formar juízo de valor e, por conseguinte, alcance o intelecto necessário a escolher melhores representantes. Findos os anos 70, quase trinta anos já passaram. O século passado foi exponencial para a curva de aprendizado da humanidade em todos os campos do saber. Mesmo massacrado por duas grandes guerras, e até por causa delas, o conhecimento humano cresceu assombrosamente. Essa aceleração não parece ter fim e, de fato, segue a crescer. A pergunta que faço é: qual a relação entre conhecimento técnico e caráter? Eduardo Giannetti da Fonseca afirmou que a humanidade galgou estupendo desenvolvimento tecnológico, mas permanece no que chamou de “neolítico moral”, um estado de subdesenvolvimento do caráter. Minha tese é a de que o brasileiro, do ponto de vista moral, está ainda uma era anterior a esta fase da humanidade. Dito de outra forma, nosso caráter é ainda pior do que o de nossos congêneres de outras nações. O mau caráter desenvolvido é ganancioso; o mau caráter brasileiro é o de um rato: vive de migalhas e matéria putrefata. Em ambos os casos, o mau caráter se vale do conhecimento técnico - ou da falta dele - apenas no momento de escolher qual lado da intemperança mais o agrada. A falta do conhecimento técnico apenas, e talvez, pende a balança para o lado do contentar-se com pouco. Eis aí tudo.
A julgar correta a tese do povo coitado, perde-se a noção da verdadeira causa do problema – o pulular dos tubarões na política – e conseqüentemente retarda-se a possibilidade de sua solução. Esse é o mal maior. Pior do que a existência de um sério problema é o não vislumbramento de sua solução em curto a médio prazo, a falta de uma luz no fim do túnel. Mais grave ainda é a nítida impressão de que o povo não quer educar-se. Prefere permanecer como está, é feliz assim. Quer mesmo as migalhas que lhe dão, não importa o que façam seus representantes. Educar-se é crescer. Aumentam-se as responsabilidades, o comprometimento, a imputabilidade, os deveres. O povo prefere ser objeto de cuidados ao ônus de sua evolução. A senhora que se enfezou com o que eu disse há de entender, após ler-me o de acima, quão troglodita sou. Assumo: detesto a indulgência das explicações benevolentes que tentam justificar os que são irresponsáveis por escolha própria. Não há nada pior do que diminuir-se a si mesmo para escapar dos deveres da civilidade e da cidadania.
Cheguei a casa após a tentativa de operar uma paciente que padecia de oclusões em suas artérias da perna esquerda. Observem os laicos que perna esquerda não é termo que um médico use, exceto se estiver a se referir à parte do membro que vai do joelho ao pé. Não é o caso. A doença da mulher começa no abdome. Não havia uma prótese disponível para uma operação a céu aberto. Nem havia material para uma operação minimamente invasiva, que daria a ela as vantagens de uma operação minimamente invasiva. Ela está internada há trinta dias. À espera. Seu internamento custa dinheiro. Custa tempo e a põe em risco. Ela espera os recursos que hoje, mais uma vez, não estão disponíveis. Descobri, juntamente com a equipe de colegas, que não há prótese porque os fornecedores não a vendem a quem não paga. O estado do ceará – assim mesmo, em minúsculas – não tem honrado seus compromissos junto aos seus fornecedores. Os doentes carentes - que são os que procuram o hospital público – não recebem o tratamento que merecem, segundo uma constituição que aparentemente de nada serve, porque o estado é caloteiro. Fiquei a notar – eu devo ser paranóico – que está à época de prestar contas com o fisco. Vamos pagar quase um trilhão de reais em impostos ao ano para ver isso acontecer. A paciente chorava em sua velhice abjeta e humilhante. Não eram muitas as lágrimas: derramou-as por toda a vida. Suas glândulas lacrimais se exauriram. Era um choro seco, quase sem lágrimas. Que importa? Quem se importa? Seguramente alguma esperança ela guarda em sua fé desprovida. O mundo real é por demais cruel para viver sem essa fé. Eu vim para casa. Trabalho menos do que manda o paradigma, há algum tempo, para fugir à derrama. Descobri outros amores em minha vida. Deles não posso prescindir. Sem eles não posso viver. Servem-me à catarse. 
Já vinha, no caminho, anelando cozinhar algo para comer. Pensava, devo admitir, na cerveja a gelar na geladeira. Haveria de bebê-la enquanto cozinhasse. E queria ouvir música. Admita-se: o melhor do viver está nesse sossego particular e impenetrável; nessa dissensão estará a semente da confirmação da inutilidade do tudo. Ano passado fui à Suíça. Temia minha própria ausência. Julgava ser único, insubstituível, pedra angular de qualquer coisa. Lutei comigo mesmo e fui: foi como morrer para o tudo. Ele, o tudo, se resolveu facilmente sem mim. Descobri em vida o que muitos só descobrem na morte: o mundo continua sem mim. Nada sou para o mundo, exceto mais um fardo a suportar. Então, resolvi, doravante, ser feliz sozinho. 
Ouvi Locomotiva enquanto cozinhava e sorvia minha Heineken. Locomotiva é uma dessas bandas forjadas nas pressões subterrâneas da musicalidade cearense: talento de sobra e desprezo maior ainda a músicos talentosos e virtuosos. Sobre eles me exijo uma noite de meu cotidiano.

Fernando Cavalcanti, 30.03.2009

"SEU" ANTÔNIO, DISCÍPULO DE NASSIM NICHOLAS TALEB

               O que aconteceu foi o seguinte. Contrataram “Seu” Antônio, lá para as bandas de Crateús, para confeccionar e pôr no lugar a...