quinta-feira, 2 de julho de 2020

FEIO

Estou eu confortavelmente a fomentar meu ócio produtivo – alguém há de questionar a possibilidade de um ócio, qualquer ócio, ser produtivo – quando me bate o telefone portátil. Era o meu querido amigo Francisco José Ley, cirurgião plástico da Unidade de Queimados do Instituto Dr. José Frota.
Antes de continuar, me pergunto – há tipos diferentes de ócio? Sim, porque quem fala em “qualquer ócio” está a pressupor tipos diferentes do mesmo. Pois respondo sem o menor pudor: – sim, há o ócio improdutivo e o ócio produtivo. O improdutivo é um desses pleonasmos irremediáveis, ao passo que o outro, o produtivo, é um bálsamo na mente daquele que não quer se assumir desocupado.
Outro dia falei de meu feliz estado de desocupado (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2014/08/o-desocupado.html), sem nenhum constrangimento. No texto demonstro, com alguma facilidade, como o paradigma vigente no serviço público local tem a ver com “estar ocupado”. Por sua vez, “estar ocupado” tem a ver com o que o burocrata chama de “horas trabalhadas”. 
Ora, é sabido que o burocrata é, antes de tudo, o exemplo mais refinado e típico do idiota. Ele não vê diferença entre um trabalhador na linha de montagem de carros com o profissional da área de saúde que cuida de gente. Assim, para ele, quem cuida de gente deve demonstrar de alguma forma uma certa quantidade de “horas trabalhadas”. A ele não interessa a qualidade desse cuidado, mas a quantidade de pessoas que ele deve “cuidar”. Ele não tem noção, já que é um idiota de carteirinha e sindicato, do valor intangível que um tempo de qualidade dedicado a uma única pessoa tem. Dirá alguém que estou a desmerecer o trabalhador da linha de montagem de carros, ou de aviões, ou de caminhões, ou de qualquer outro bem útil. Apenas tento, justamente, mostrar a gritante diferença entre bens uteis e seres humanos.  
O que quero dizer é que é possível ser produtivo sem ser ocupado, e vice-versa. Conheço uma penca de gente ocupada que pouco ou nada produz. Por exemplo, o sujeito que passa o dia inteiro na rede social a bisbilhotar a vida alheia. Do outro lado dessa moeda está essa “vida alheia” a gastar muito de seu tempo a se expor na rede social. Ou seja, nem um nem outro produz. Dirá alguém que a rede social é um grande outdoor onde se pode fazer marketing gratuito, e é verdade; há muitos que a utilizam para alavancar seus negócios, serviços, produtos. Isso é, obviamente, outra história. Não é disso que estou a falar. 
Há, também, o desocupado cirurgião que assim ficou após realizar seu procedimento cirúrgico e que agora precisa, por força da atuação do idiota, esperar o relógio de ponto bater determinada hora para poder ir embora, fazer outra coisa, atender alguém, ir à praia, sei lá... (Já, já me acusam, com alguma razão, de estar sendo um corporativistazinho de meia tigela. Com alguma razão...) O mesmo se pode dizer do radiologista ao qual se obriga que dê laudos de exames em quantidade maior do que o que é humanamente possível, e por aí vai nas várias outras áreas profissionais da saúde.
Voltemos ao meu amigo Ley. O que queria o homem? Sem rodeios direi – queria falar. Anelava falar. Se não falasse ficaria louco. Pudera. O homem está há quase noventa dias, coitado, trancafiado em casa por ser idoso... O homem não queria se ocupar – queria ser produtivo! Nesses noventa dias se ocupara de tudo e em tudo dentro de casa. Ser produtivo, no entanto, não era possível.
Conversa vai, conversa vem, lá pelas tantas o amigo me faz um relato. Confessava uma incontida felicidade. Não era pra menos. Foi o seguinte.
Um certo querido amigo comum, colega na profissão, saíra de alta do CTI do hospital onde estivera internado vítima do vírus chinês. Surpreso por saber de seu grave acometimento, eu quis saber: –“Mas... ele tinha algum fator de risco”? Na bucha, Ley fuzilou: –“A beleza”! 
O detalhe é que o referido colega é conhecido por sua intensa e assustadora... como direi... “assimetria de formas”. Uso de uma expressão carregada de eufemismo para evitar dizer a verdade indubitável e inquestionável – o homem é feio pra burro. Feíssimo. Feio é apelido. Bota feio nisso.
Bem se vê que a quase loucura de meu amigo afetou em nada seu mordaz senso de humor. Aliás, fazer humor é uma forma de produção. É quase como fazer amor. E disso o amigo há de estar ávido!

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