Estou eu confortavelmente a fomentar meu ócio
produtivo – alguém há de questionar a possibilidade de um ócio, qualquer ócio,
ser produtivo – quando me bate o telefone portátil. Era o meu querido amigo
Francisco José Ley, cirurgião plástico da Unidade de Queimados do Instituto Dr.
José Frota.
Antes de continuar, me pergunto – há tipos
diferentes de ócio? Sim, porque quem fala em “qualquer ócio” está a pressupor
tipos diferentes do mesmo. Pois respondo sem o menor pudor: – sim, há o ócio
improdutivo e o ócio produtivo. O improdutivo é um desses pleonasmos
irremediáveis, ao passo que o outro, o produtivo, é um bálsamo na mente daquele
que não quer se assumir desocupado.
Outro dia falei de meu feliz estado de desocupado (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2014/08/o-desocupado.html),
sem nenhum constrangimento. No texto demonstro, com alguma facilidade, como o
paradigma vigente no serviço público local tem a ver com “estar ocupado”. Por
sua vez, “estar ocupado” tem a ver com o que o burocrata chama de “horas
trabalhadas”.
Ora, é sabido que o burocrata é, antes de tudo, o
exemplo mais refinado e típico do idiota. Ele não vê
diferença entre um trabalhador na linha de montagem de carros com o
profissional da área de saúde que cuida de gente. Assim,
para ele, quem cuida de gente deve demonstrar de alguma forma uma certa
quantidade de “horas trabalhadas”. A ele não interessa a qualidade desse cuidado,
mas a quantidade de pessoas que ele deve “cuidar”. Ele não tem noção, já que é
um idiota de carteirinha e sindicato, do valor intangível que um tempo de
qualidade dedicado a uma única pessoa tem. Dirá alguém que estou a desmerecer o
trabalhador da linha de montagem de carros, ou de aviões, ou de caminhões, ou
de qualquer outro bem útil. Apenas tento, justamente, mostrar a gritante
diferença entre bens uteis e seres humanos.
O que quero dizer é que é possível ser
produtivo sem ser ocupado, e vice-versa. Conheço uma penca de gente ocupada que
pouco ou nada produz. Por exemplo, o sujeito que passa o dia inteiro na rede
social a bisbilhotar a vida alheia. Do outro lado dessa moeda está essa “vida
alheia” a gastar muito de seu tempo a se expor na rede social. Ou seja, nem um
nem outro produz. Dirá alguém que a rede social é um grande outdoor onde
se pode fazer marketing gratuito, e é verdade; há muitos que a utilizam para
alavancar seus negócios, serviços, produtos. Isso é, obviamente, outra
história. Não é disso que estou a falar.
Há, também, o desocupado cirurgião que assim ficou
após realizar seu procedimento cirúrgico e que agora precisa, por força da
atuação do idiota, esperar o relógio de ponto bater determinada hora para poder
ir embora, fazer outra coisa, atender alguém, ir à praia, sei lá... (Já, já me
acusam, com alguma razão, de estar sendo um corporativistazinho de meia tigela.
Com alguma razão...) O mesmo se pode dizer do radiologista ao qual se obriga
que dê laudos de exames em quantidade maior do que o que é humanamente
possível, e por aí vai nas várias outras áreas profissionais da saúde.
Voltemos ao meu amigo Ley. O que queria o homem?
Sem rodeios direi – queria falar. Anelava falar. Se não falasse ficaria louco.
Pudera. O homem está há quase noventa dias, coitado, trancafiado em casa por
ser idoso... O homem não queria se ocupar – queria ser produtivo!
Nesses noventa dias se ocupara de tudo e em tudo dentro de casa. Ser produtivo,
no entanto, não era possível.
Conversa vai, conversa vem, lá pelas tantas o amigo
me faz um relato. Confessava uma incontida felicidade. Não era pra menos. Foi o
seguinte.
Um certo querido amigo comum, colega na profissão,
saíra de alta do CTI do hospital onde estivera internado vítima do vírus
chinês. Surpreso por saber de seu grave acometimento, eu quis saber: –“Mas...
ele tinha algum fator de risco”? Na bucha, Ley fuzilou: –“A beleza”!
O detalhe é que o referido colega é conhecido por
sua intensa e assustadora... como direi... “assimetria de formas”. Uso de uma
expressão carregada de eufemismo para evitar dizer a verdade indubitável e
inquestionável – o homem é feio pra burro. Feíssimo. Feio é apelido. Bota feio
nisso.
Bem se vê que a quase loucura de meu amigo afetou
em nada seu mordaz senso de humor. Aliás, fazer humor é uma forma de produção.
É quase como fazer amor. E disso o amigo há de estar ávido!
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