domingo, 3 de janeiro de 2016

NÃO DESEJO A FOME DE NINGUÉM, NÃO!

Meus irmãos, começou o ano, mais um. Quem pode dizer o que virá? Há o controlável e o incontrolável, o primeiro muito mais improvável que o segundo. Assim, proponho novo encontro para daqui a etc.etc.etc”. Foi assim que iniciei, hoje, a mensagem para os amigos do tempo das fraldas.
          Mal terminou o ano e já me assaltam visões do imponderável e do incontrolável. Haverá quem diga existir algo de sombrio em meu modo de ver o ano que começa e direi que o pé no chão é uma excelente fonte de sobriedade. Queremos estar perto de quem queremos estar perto. Só desta maneira suprimos e preenchemos o espaço interminável de nossa solidão. Sim, porque somos todos solitários em nossa ignorância essencial. De fato, é ela, a ubíqua ignorância essencial, a causa de nossa infindável solidão.
        Entre o virtual e o real, opto pelo segundo, infinitamente mais eficaz em suprir nossa memória e nosso coração. Só a amalgamação do coração e da memória pode produzir o melhor em nós. Antes, ainda quando o virtual pertencia ao campo da ficção, João, o Bosco, dizia
                                Quem se lembra de você em mim
                               Eu sei, eu sei
                              Bate é na memória da minha pele...
       Que ninguém pense que restringiu-se o poeta à sensualidade pura e simples, hoje foco único da atenção generalizada dada a fome de amor que se instalou. (Uma das inconveniências da curta vida humana é a incapacidade individual de sentir ou notar ou testemunhar se o que acontece hoje já aconteceu noutras épocas. A abundância do ódio no planeta será a manifestação doentia de uma eterna fome de amor mal destinada...) A pele de sua poesia representa todos os sentidos e é a essa memória que me refiro.
         Mas deixemos de filosofar. A suma de tudo é que são os amigos, de uma forma ou de outra, utilizando-se do encontro real ou de qualquer pobre mídia atual, aqueles que nos põem de frente a reflexões frutíferas e pertinentes. 
      Primeiro foi o meu amigo Bacana, quando me enviou um trecho de uma palestra proferida pelo ilustríssimo professor Leandro Karnal no 4o. Congresso Sobre Gestão de Pessoas do Setor Público Paulista. Em determinado momento da fala ele diz, referindo-se ao assalto perpetrado à Petrobras por empreiteiros e gestores públicos de alto escalão, que a grande maioria dos funcionários da estatal é composta por trabalhadores honestos e comprometidos com a ética e que o brasileiro perdeu a fé no país porque passou a confundir a sociedade com o Estado. Quis ele dizer que a sociedade é honesta e age segundo elevados padrões éticos enquanto o Estado é corrupto e aético.
      Ora, pensei cá com meus botões, não é o Estado a sociedade organizada politicamente e juridicamente no intuito de dela afastar o determinismo anunciado por Rousseau, ou Hobbes ou quem quer que tenha levantado a hipótese de ser o homem, antes ou depois, não importa, dado à maldade e às más ações? Não é o Estado o contrato entre os homens, o pacto de não agressão? Não são os Códigos a parte do Estado elaborada por homens representantes de outros homens, pertencentes a uma determinada sociedade que estabelece regras a serem seguidas e as respectivas sanções aplicadas àqueles que as quebram, antes que ponham em risco o bem estar e a paz social? Assim, como não “confundir”, em nome do que é mais sagrado, o Estado e a sociedade que o produziu? Sim, porque não foi o Estado quem produziu a sociedade, mas o contrário. Um ajuntamento de seres humanos a se dizimar e a se agredir é apenas um amontoamento inútil e fora de propósito. Sociedade e Estado podem existir separadamente? Enfim, de ignorante passei a ignorante e meio...
      O resultado para mim, após assistir a esse pequeno trecho da fala do senhor Karnal, foi a frustração de lá não estar, em sua palestra, quando seguramente não perderia a oportunidade de beber mais de sua sabedoria a fim de me dirimir tão acachapante e humilhante dúvida.
        Depois foi quando estive com o amigo e compadre Chico, ontem, para ser mais preciso. (Vejam que, em Fortaleza e possivelmente no resto do Estado, o maior passatempo é beber. Outro dia o Baxim, o outro compadre, me respondeu, quando lhe perguntei como estava, que passara o dia feliz porque estivera a beber durante todo o dia. Enchi-me de alarme. Será possível que alguém acredite que a felicidade de um dia inteiro somente seja possível caso se esteja sob efeito da libação alcoólica?)
        Pois estive ontem no solar do Chico. Eu bebia Coca-Cola, uma bela e nada saudável porcaria, mas melhor opção para quem irá pilotar uma motocicleta em seguida. Por sua vez, ele sorvia cerveja em módicas e alargadas doses, de modo que nossa conversa fluía no bom entendimento que a sobriedade permite, ainda que haja discordâncias aqui e ali. Lembramos que no próximo dia 6 de janeiro fará 10 anos da morte de seu amado irmão Zé, e saímos a conversar sobre a vida que vivemos até aqui. Dali a pouco, o inevitável – a política.
       O diacho é que, na hora que emergiu a política, o álcool já escarafunchava o juízo do amigo-irmão, ainda que não a ponto de obstruir-lhe as paixões e as convicções. Numa irrefutável demonstração de apoio à causa dos “famintos” brasileiros, disse:
–"Todos devem comer”!
–"Mesmo os vagabundos que lançaram ao lixo todas as oportunidades que se lhes deram e hoje dependem dos outros em consequência de sua irresponsabilidade”?, perguntei na intenção de provocar o homem.
–“Mesmo esses”.
–“E quem há de alimentá-los”?
–“O Estado”.
      Vejam que, para meu amigo, a sociedade – que na minha humílima opinião é o mesmo que o Estado – deve alimentar aqueles que escolhem a vagabundagem. Ele não defende com unhas e dentes a obrigação estatal de oferecer oportunidades iguais para todos indistintamente. O que ele defende é a irresponsabilidade estatal tal qual ela se apresenta atualmente e que esta irresponsabilidade se perpetue, assim como a pobreza perpétua, na concessão de paliativos da “fome”. Ele não reconhece que a fome e seu paliativo fazem parte de uma mesma estratégia criminosa; não percebe, do alto de seu “esclarecimento”, que a sociedade que produziu o Estado que aí está – ou seria que “aí estamos”? – produziu esse Estado porque toda sociedade produz o Estado que seja a sua cara e que tenha suas próprias características e seu modo de pensar. (Não consigo pensar numa sociedade que produza algo distinto de si mesma. Que me desculpe o senhor Karnal a audácia.)
       A sociedade brasileira produziu a fome. Resolveu agora mitigá-la, apenas mitigá-la. Puseram no poder uma esquerda destoante da esquerda leninista e stalinista, que se utilizou da fome para destruir e aniquilar mais de 20 milhões de camponeses que se lhes opunham; produziram, ativa e passivamente, a fome que mata. A esquerda brasileira, toda ela moldada ao jeito brasileiro de ser, forjada num lugar onde tudo é desvirtuado, não pretende a fome que dizima, que massacra e que assassina. Para ela é mais útil a fome que dura, que persiste, a fome perene e mitigada, a fome contínua porém suavizada e abrandada. Para a esquerda brasileira a fome que mata é inviável, inútil e até prejudicial aos dias de hoje. Não interessa violar os direitos humanos, fachada onde se executam inocentes e se libertam facínoras vítimas de uma burguesia fascista e antidemocrática. Nada disso meu amigo vê... Não vê que nossa fome continua fome e será sempre fome a se perpetuar a estratégia assassina.
       Como o Chico já desse sinais inequívocos de obnubilação dos sentidos, resolvi partir. Filosofia e álcool não combinam. Inda mais quando se trata de defender a fome alheia. O pior foi ouvi-lo dizer, quando engatei a primeira, que ambos queríamos a mesma coisa, mas utilizando-nos de diferentes meios. Não deu tempo responder, mas digo agora ao amigo que não quero a fome de ninguém, não!  

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