segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A MORTE DO JOÃO

Era cedo.
Chego ao hospital e caminho em direção à máquina. Aos que não sabem, aviso que a figura mais importante de toda e qualquer repartição pública desse miserável Estado é a máquina. Também nas repartições municipais da capital é assim – a máquina é tudo, a máquina é o eixo de toda essa engrenagem. O cumprimento à máquina se tornou o ritual mais importante e mais necessário na repartição pública. Não há mais relação entre as pessoas – devo satisfação unicamente e exclusivamente à máquina. O chefe? Ora, o chefe tornou-se uma figura meramente decorativa a constar nos organogramas inúteis e obsoletos. Por exemplo, não vejo meu chefe há mais de... sei lá... 1 ano. Por aí se vê sua atuação de figurante organizacional. A máquina, essa sim, é visível diariamente. Manda mais em mim do que meu chefe.
Saí da presença de Sua Excelência, a máquina, e rumei ao corredor onde se avizinham as salas dos diversos setores da administração.
Noutros tempos era um corredor mais amplo, mais populoso, e corria-se o risco, ao transitar por ele, de se bater de frente com o grande ícone da Medicina local. Como eram vários – homens de postura, respeitáveis e respeitados –, o resultado era que o corredor era quase uma calçada da fama hollywoodiana. O auditório, antes ali localizado, sempre era lugar de onde saíam jovens médicos e estudantes que lá estavam nas sessões clínicas junto a seus vetustos e simpáticos Mestres, vestidos em suas roupas muito brancas e elegantes, as camisas por dentro das calças os homens, as saias e vestidos discretos as mulheres. Hoje, nada disso há mais... e o que há eu não saberia descrever, posto que não caiba numa descrição a ser feita por um sujeito pouco letrado como eu.
Adentrei pela porta que separa o corredor do hall de entrada do hospital e enveredei em busca de qualquer coisa que me sinalizasse que a morte do João fora lembrada. Das diversas salas apenas 5 se dignaram a fazer uma homenagem ao médico prematuramente morto.
                                                              
                                                                        LUTO
“A Terra é o jardim de Deus e, toda vez que Ele quer colher alguma das flores mais bonitas, Ele tira uma da terra e fica pra Ele.” [sic]
Dr. João Wilson Araújo Silveira (15.07.1956 – 25.09.2017)

Eis aí a homenagem, escrita em papel ofício simples com a logomarca do hospital encimando o texto. Apenas isso.
Mais tarde, por outros corredores em direção ao ambulatório, nada. É verdade, não estive em todos os lugares dos vários edifícios, mas poderia apostar que nada encontraria onde quer que fosse. Em todo caso, alguém se dignou a lembrar a passagem do João por aqui.
Hoje, olhando esses corredores, vejo os espectros, ou os fantasmas, dos gigantes que faziam deste hospital o que ele sempre foi... e não é mais. Em mensagem ao meu amado amigo Casoba, disse: – “Tu és um destes, tendo, inclusive, ganhado prêmios e reconhecimento por tua excelência no exercício da profissão”. O João foi outro. Outro dos grandes.
Tenho certeza de que somente os setores que apuseram essa singela homenagem às portas lembraram do João, assim como possivelmente outros poucos jurássicos que estão espalhados na imensidão desses edifícios que compõem o HGF atual.
Vejo nos olhos e no comportamento dos jovens médicos residentes e internos um vazio de sentimentos e, para dizer o mínimo, uma brutal indiferença ante os colegas mais antigos. Às vezes, vejo mesmo um desprezo, um desdém pouco ou nada disfarçado.
O HGF se tornou uma quantidade de edifícios cheia de gente estranha que vive em função da máquina; que se acostumou a transitar por seus corredores entupidos de nossa doente dignidade; gente estranha que aceita a humilhação de viver e depois morrer diante de uma plateia de coração gelado cujos jalecos se encardiram na desumanidade que tolera. A morte do João foi um sopapo – primeiro, pelo vazio do amigo; segundo, pela evidência gritante de que morreu também uma cultura, uma maneira de fazer, uma maneira de pensar, uma maneira de ser. Não que isso passasse despercebido antes que o amigo partisse, mas justamente porque sua morte quase despercebida evidenciou a nossa capacidade de assassinar a memória e um passado grandioso. No Brasil a glória é burguesa. Assim dizem os idiotas.     

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