sábado, 19 de dezembro de 2020

CURAR ÀS VEZES, CONFORTAR SEMPRE

O que aconteceu foi o seguinte.

Entro para bater o ponto no hospital e o Víctor anuncia: – “Doutor, tem aí um processo para o senhor responder”. Era uma queixa de um paciente do meu ambulatório. Não, uma queixa não – uma reclamação. Sim, o paciente havia ido à ouvidoria reclamar por eu lhe ter orientado, na consulta que fez comigo, a procurar a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza para fazer o tratamento cirúrgico de suas varizes nas pernas.

Ora, todos os pacientes com varizes nas pernas que se prestam ao tratamento cirúrgico e que vão ao meu ambulatório são, depois de serem ouvidos, examinados, e mostrarem o desejo de operar suas varizes, orientados nesse sentido. As razões para agirmos assim são bem óbvias e, diria até, seculares. Assim, destrinchemos esse aparente engodo a fim de esclarecer o que está, de fato, na pauta.

Antes, porém, adianto o seguinte – esta não é uma defesa. Sim, não estou a me defender. Pela simples razão de ter agido no melhor interesse do paciente, nada há que necessite para a defesa deste profissional. Apenas faço um relato do ocorrido. Neste país todo esforço tem sido feito para inverter ou deturpar os próprios fatos, como se estes pudessem ser alterados. Estamos em Fortaleza, uma cidade decadente, perigosa, mortal diria até, tomada por forças poderosas aliadas ou protegidas pelo chamado “poder público”, com um povo que se permite dominar e se ajoelha diante do mal. Assim, a tentativa de inverter os acontecimentos – não por parte do paciente, mas por outra fonte – não fosse por si só insana demonstra o grau de atuação a que chegaram os psicopatas locais, através de um de seus prepostos nomeados para função pública sem ter prestado concurso.

Foi-se o tempo em que um hospital público tinha toda a sua direção escolhida dentre seus funcionários. Hoje, essas figuras esdrúxulas vêm sabe-se lá de onde trazendo em seus currículos cursos de gestão e vivência zero em sua atividade principal. São fedelhos paparicados dentre a canalha política de plantão. Noutros tempos a direção era composta por médicos atuantes como médicos, não raro ícones da medicina local.

Dirão alguns que estas são afirmações exageradas, que não cabem numa humilde e pré-obsoleta crônica, mas, asseguro – nem tanto, nem tanto...

Então, vamos ao que viemos.

Em primeiro lugar, operar varizes de membros inferiores é perfeitamente opcional na esmagadora maioria das vezes. A condição é benigna e pode ser tratada de modo conservador sem nenhum prejuízo ou risco adicional para o paciente. Reforçamos isso quando o paciente tem comorbidades que “pesam” sobre o tratamento cirúrgico, impondo um risco absolutamente desnecessário. Essa é uma questão sobre a qual o paciente pode optar. Não estamos diante de uma condição que imponha risco à sua vida ou à qualidade dela, excetuando-se, talvez, a questão estética tão comum em pacientes do sexo feminino. Aqui vale a máxima: pesam-se os riscos e os benefícios. Como em tudo na medicina.

Em segundo lugar há o sistema público de saúde brasileiro com todas as suas mazelas. O Hospital Geral de Fortaleza (HGF) é um hospital desse sistema, um hospital terciário, ou seja, um hospital para onde são encaminhadas as pessoas portadoras de doenças graves, ou que requeiram tratamento especializado seja em complexidade de recursos materiais e/ou humanos. Como digo a meus pacientes do ambulatório e em relação ao escopo da cirurgia vascular, hospital terciário significa “gravidade” ou “prognóstico reservado ou não muito bom”. Eles ficam felizes em saber que suas varizes não lhes ameaçam a vida nem sua integridade física. Haveria dificuldade em entender isso ao leigo leitor? Todos os pacientes, inclusive meu queixoso paciente, saem conscientes de que lá não serão operados simplesmente porque os recursos deste nosocômio são todos dirigidos a pacientes com doenças graves que necessitam de tratamento complexo, o que não é o caso da doença varicosa de membros inferiores.

(Logo verão que sua queixa foi, digamos assim, uma maldosa indução de quem deveria zelar, acima de tudo, pela verdade e pela busca de soluções para aqueles que são usuários do sistema público.)

Lembra-me que, anos atrás, procurei a direção clínica do hospital a fim de solicitar a que comunicassem aos componentes primários do sistema de saúde que o hospital não oferecia aos pacientes com varizes e com esperança de operá-las um tratamento que não fosse o clínico. Os pacientes vinham cheios da certeza de ficar livres das incômodas varizes apenas para se verem frustrados.

O diretor alegou não ser isso possível por não me lembro quais razões. As pessoas portadoras de varizes em membros inferiores continuariam a vir ao HGF sorridentes e com a certeza absoluta de que teriam suas horrorosas varizes removidas. Eu seria o que está na linha de frente para lhes dar a triste notícia. O sistema alimentando a esperança e eu estragando o prazer. Por isso deixei de usar branco há muitos anos. Não combina com um estraga-prazeres.

Depois me iludi e perdi o meu tempo ligando para alguns postos de saúde, locais onde se faz a medicina básica, primária, mas não primitiva, de onde são encaminhados esses pacientes, na tentativa de sugerir que os encaminhassem a um hospital secundário, menor, de menor complexidade, para a consulta e tratamento de sua condição.

Novamente dei com os burros n’água. Concluí de imediato: o sistema está assim montado e não há quem mexa nisso. A jovem ou velha senhora sai no carro da prefeitura da cidade do interior na noite anterior à sua consulta com o cirurgião vascular do HGF só para ser desiludida por um médico de merda que ainda “perde” tempo tentando lhe explicar um sistema de saúde que não funciona perfeitamente e que, em seu entender, é gratuito. Horas e horas na estrada, gasolina da prefeitura, votos para os canalhas da política... e o estraga-prazeres ali, à sua frente, a lhes contar a verdade.

Mas, só agora percebo o detalhe: – por que a Santa Casa? Porque, no presente momento, é o único hospital nesta decadente cidade que presta esse serviço numa base rotineira com recursos públicos. E como sei disso? Ora, conversando e indagando de colegas da especialidade que trabalham nos outros hospitais terciários da cidade. É tudo a mesma coisa – hospitais terciários não combinam com condição benigna. Elas terão, ou teriam, seu tratamento em hospital secundário. O sistema não oferece essa alternativa, como bem se pode concluir. O problema é apenas um – os “gerentes” do sistema não assumem que há essa brecha.

Foi nesse cenário que a ouvidoria do HGF recebeu a reclamação contra mim. Julguei, a princípio, uma má fé do paciente que fez tal chororô. Sim, porque a única coisa que falta eu fazer no meu ambulatório é pôr meus doentes no colo. O resto já fiz – abraço, choro, beijo, faço cafuné, dou beliscões carinhosos, acaricio-lhes a face... mas no colo ainda não pus ninguém. São velhinhos e velhinhas com a doença mais desgraçada do mundo, a aterosclerose obliterante generalizada recalcitrante e mortal, com aneurismas ameaçadores, potencialmente explosivos ou obstrutivos; portadores de cotocos de pés, de pernas, de dedos, de mãos e braços que lhes avisam que o fim inexorável pode estar próximo. Outros, até mais jovens, com rins improdutivos de suas diárias urinas, presos à uma máquina que lhes filtram o sangue através de dispositivos artificiais que os médicos lhes enfiam no pescoço, virilhas, tórax, ou com veias enormes e dilatadas nos braços, resultado de suas “arterializações” para uso da máquina. São incontáveis histórias, inúmeros sofrimentos, difusas e insanáveis dores, lágrimas incoercíveis que molham lenços já sujos e puídos de tanto uso e esperanças fugidias...  E a frase que resume a missão me espicaçando a alma...

Por tudo isso senti um mal-estar leve, muito leve, ao anúncio do Víctor, como uma desolação causada por certa decepção com o ser humano.

Foi quando tudo se fez claro. Assim do nada, saindo de volta para casa, encontro ali, nos corredores do hospital, a informação dando conta de que meu paciente, o que elaborou a reclamação, confessou ter adorado a minha pessoa, o meu atendimento e a minha atenção, e que só foi à ouvidoria por orientação de graduado funcionário do hospital que, como já dito lá atrás, prefere a mentira à verdade temendo, talvez, o envolvimento inevitável de seu nome na constatação de uma falha ou brecha do sistema. Tão míope é que não percebe que o sistema não é ele. Mas sentir-se como o próprio sistema já denota que estamos lidando com um ego pueril e inflado, como o de um fedelho qualquer.  

Um comentário:

  1. Boa descrição do dia a dia de um hospital público, sendo o médico o paredão das granes dificuldades do sistema público, grande e querido amigo.

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