Brasileiro tem mesmo é que se foder. Há uma penca de razões. Darei duas.
Sou fã de Stephen King. Costumava ler seus livros e assistir aos filmes baseados em suas histórias. O gênero terror pode ser fino ou pode ser grotesco. O grotesco é aquele que não tem pé nem cabeça, e onde o inverossímil predomina. O exemplo mais típico é "Sexta-Feira 13". Pode haver coisa mais estúpida do que a matança indiscriminada de inocentes por um ser indestrutível e imortal? e que ressuscita dos mortos a cada película? Não há nada mais imbecil em termos cinematográficos. E creio que Jason, o tal ser, ainda não morreu. Deve estar sendo reanimado em breve em qualquer estúdio hollywoodiano. A qualquer momento chegará às telas. Seria uma octalogia. Ou nonalogia? Ou decalogia? Perdi as contas: "Sexta-Feira 13 – Parte..." sabe-se lá qual! Uma tragédia cinematográfica, sem sombra de dúvidas.
Há, porém, o gênero terror fino, inteligente, possível, real. Nesse gênero a história nos penetra aguda e contundentemente. Todos somos passivos de protagonizá-la. Pode acontecer conosco. No momento em que assistimos ao filme, nele entramos, dele participamos, sentimos a dor e o terror das vítimas. Sua falta de ar e sufocação nos tira golpes de ar; suas feridas nos ardem; suas injustiças nos trucidam. De Stephen King li e depois assisti "O Cemitério Maldito". Nele há uma parte possível e uma parte sem verossimilhança. A parte sem apoio na realidade e fruto da imaginação fértil do autor é aquela em que os mortos enterrados no secular cemitério dos índios ressuscitam no dia seguinte para perseguir e matar os vivos, mesmo e principalmente seus mais queridos entes. A parte potencialmente real é aquela que narra a morte do pequeno Gage Creed, filho do médico Louis Creed, um lindo garoto de seus três ou quatro anos, atropelado por uma enorme carreta numa estrada federal do Maine, estado do extremo nordeste estadunidense e preferido por Stephen para palco de suas fantásticas histórias. O fato é que os Creed eram uma linda família e tinham tudo para serem felizes. Louis era um médico recém chegado com a mulher e o pequeno Gage e o futuro lhes sorria com dádivas e sucesso. Eis aí o terror desta tragédia: a morte de uma linda e pequena criança. Quem quiser assistir a este terror e sentir o que se sente vendo este filme assista "O Cemitério Maldito" de Stephen King. A volta à vida do pequeno Gage, cujo corpo foi exumado por seu próprio pai de um cemitério cristão para ser inumado em cemitério indígena na esperança de trazê-lo de volta à vida, cheio de ódio e possuído por espírito maligno, não há de causar terror. Sua morte, sim, aterroriza. O desespero de Louis aterroriza. O pai, completamente atônito e consternado, não aceita a morte da linda criança e, tresloucado, leva seu corpo triturado pela violência do choque ao cemitério indígena na esperança de vê-lo de volta à vida. Este ato tresloucado aterroriza. Stephen King é o gênio que nos põe face a face com o terror de nossos mais recônditos medos.
Cento e treze bebês mortos numa UTI neonatal no Pará aterrorizam? O fuzilamento de João Roberto Amaral pela polícia carioca aterroriza? Querem a verdade? Não me aterrorizaram. Senti um terror indescritível ao ver aquele filme, aquela cena em particular. Aterrorizou-me a violência que matou a criança. Aterrorizou-me a família destroçada por essa morte truculenta e precocíssima. Aterrorizou-me o pai fora de si em busca da vida do amado filho. A morte do pequeno arrastado no asfalto há pouco tempo no mesmo Rio de Janeiro me encheu de náuseas, e refluxos, e tonteiras, e suspiros, e cefaléias. A dos bebês e a de João Roberto não. A consciência social da não punibilidade daqueles me contaminou. Desaprendi. Mais uma vez. O Brasil real, do dia-a-dia, me diz que a vida de um ser humano, de um de seus filhos, nada vale. Essa constatação me embrutece o coração. Quero matar os covardes que matam. Quero linchá-los juntamente com os que se embruteceram comigo. Depois nos acusarão de "formação de quadrilha". Patético. Não posso respeitar esta "autoridade" que não tem autoridade: a justiça, a polícia, as legisladores. São uns canalhas.
Brasileiro tem mesmo é que se foder. O tempo da indignação já passou. Estamos no tempo da vergonha. E depois da vergonha? o que restará para nós?
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Eu estava operando um caso difícil. O doente estava sobre a mesa, a ferida aberta, a gente tentando construir a ponte de safena que lhe salvaria a perna. Um contratempo tornou óbvio que o tempo cirúrgico seria maior que o esperado. Eu operava com o residente e dois internos. Levantei os olhos e vi que eram 14 horas no relógio na parede à minha frente. Disse ao residente que continuasse e saí do campo para dar um telefonema. Liguei para o consultório e pedi à minha atendente que avisasse aos pacientes que eu estava operando um caso difícil e que não tinha previsão de hora para lá estar.
Todos os desafios trans-operatórios foram superados. Duas horas depois cheguei ao consultório. Minha atendente me informou que alguns (algumas) pacientes não puderam esperar e preferiram remarcar a consulta. Passei, então, a atender os (as) que resolveram esperar. E sabem o que ouvi de alguns (algumas) deles(as)? Que eu havia demorado muito. Mesmo tendo recebido todos os informes que passei à minha secretária. E sabem o que esses(as) foram fazer no consultório? Escleroterapia de varizes, um tratamento estético. Basicamente.
Por Fernando Cavalcanti, em 09/07/2008
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