quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O EX PAÍS DO FUTEBOL – uma terra de ilusões e mitos

          Foi um relato contundente. Um tapa nas fuças de nossas prolixas e infrutíferas lucubrações. Um balde d'água em nossas pseudocultas análises sociológicas de nós mesmos. Foi, enfim, um humilhante exemplo de nossa propensão mitológica.
          Propensão mitológica? – indagará alguém. Sim, responderei, propensão mitológica. Porque, não sei se sabem, mas nós, brasileiros, somos um povo submerso em mitos. Até arrisco: – nossa mitologia deixa a grega no chinelo. Nossos mitos pululam nas esquinas, nas florestas, na TV, nos jornais, em nossa ingloriosa história, enfim, em todos os lugares. Somos um povo que busca nos mitos a salvação de nosso triste e inexorável destino.
          Por exemplo, o futebol. Em nossa mais recente tentativa da edição de nosso mito maior, ficou clara a inexpugnável e inultrapassável verdade: – não somos o país do futebol. Esse foi o mito que nos impusemos a partir de 1958. Sem nada até então, após a frustrante derrota de 1950 que só contribuiu para nos afundar mais ainda em nossa insignificância, mil novecentos e cinqüenta e oito surgiu como o sol de uma aurora que se pretendia imorredoura. Dali em diante, não havia como duvidar: - nisso devíamos ser os melhores.
          Quatro anos depois, veio o que parecia a confirmação: – ganhamos novamente. Em '66 houve uma pausa e o Nelson, deixando escapar um suspeito ufanismo, apontava os árbitros de então como os responsáveis pela saída do Brasil. Pelé teria sido vítima da omissão criminosa do juiz da partida, e sua acusação ganhou mais força quando, na decisão, o árbitro validou um gol inexistente em favor dos ingleses.
          Mil novecentos e setenta foi o ano em que o mundo conheceu o escrete invicto e não somente invicto: – o escrete tricampeão após derrotar monstros sagrados do esporte com jogadas magistrais e lances geniais. Cristalizou-se, naquele ano, na mente dos "noventa milhões em ação", a certeza: – o Brasil é o país do futebol. Deste momento em diante, netos e filhos desse povo abririam a boca com orgulho para bradar aos continentes sua ilusão mais arraigada e mais necessária: – a de que éramos o país do futebol. Na falta de credenciais maiores, uma menor e bastante popular vinha a calhar. Afinal, precisávamos, e ainda precisamos, estar na plêiade dos grandes, igualar-nos a eles de alguma forma, em algum aspecto. Nosso orgulho frustrado urgia uma destinação qualquer, uma que estivesse mais à mão, de preferência a que expressasse a mistura de raças, um mito dentro de outro. Pois '70 veio em socorro de nossos mágicos jogadores dos três certames antecedentes. Ainda não se transformara o futebol numa máquina de fazer dinheiro. Era um esporte pobre, justamente como tantos outros, justamente como nós. O futebol era, digamos de uma vez por todas, a nossa cara.
         Em '74 Rivelino pretendeu manter o “país do futebol” de pé, mas uma laranja motorizada regida por certo maestro chamado Johan Cruijff encantou o mundo com um time cujos jogadores não tinham posição fixa e que atacava e se defendia em bloco, como uma muralha a ir e vir, esmagando quem estivesse à frente.
         Em setenta e oito perdemos sem perder, invictos, afogados nos confetes e serpentinas portenhos, nada nem ninguém que entre nós brilhasse.
         Em '82 fomos vítimas de um homem só, nosso carrasco, um italiano oportunista e matreiro chamado Paolo Rossi, o qual não deu a mínima para Júnior, Zico, Sócrates, Falcão, Tonhinho Cerezo e companhia. Meteu três e nos mandou tomar banho mais cedo. Quase o mesmo ocorreu quatro anos depois quando Zico e Sócrates perderam os pênaltis que jamais se perdem em Copa do Mundo.
          Em meio a tantas frustrações consecutivas, e omitindo-se qualquer coisa e mais um pouco por questões de espaço sobre 1990, embora tenha o espaço que queira já que é meu o teclado, o monitor e o blog, chegamos a 1994 e ganhamos o quarto título, carregados por Bebeto e Romário, um time com bem menos craques que os precedentes. Nem por isso desvanecia a certeza que se fundamentara vinte e quatro anos antes, a de que somos, sem a menor sombra de dúvida, o “país do futebol”. Afinal de contas, éramos tetracampeões. Vencêramos qualquer sugestão ignominiosa de que estaria a ser engendrado pelo destino um tipo qualquer de tabu em decorrência de um tão prolongado jejum de duas e meia décadas.
          Em ‘98 Ronaldinho convulsionou o escrete inteiro e o time até hoje não entrou em campo, o que resultou numa sova vergonhosa e humilhante, ainda mais porque ninguém mais soube, aqui ou alhures, de outra coreia de nosso maior craque de então. Quatro anos depois ele confirmou sou pétrea saúde ao contribuir decisivamente para nosso pentacampeonato. Exaltou-nos no Oriente ao mesmo tempo em que nos envergonhava ainda mais no passado e em território francês. Ainda assim, prevalecia a máxima que diz que "quem vive de passado é museu" e, por conseqüência, permanecíamos, sim, sendo o “país do futebol”. Não seria uma tola e involuntária tremedeira que nos tiraria o título que nos demos a nós mesmos.
         Em 2006 e 2010 a coisa foi tão feia que nada há que lembrar, a não ser mais frustrações, encaradas por nós como a naturalidade dos altos e baixos de qualquer esporte.
         Eis que se chega a 2014. Uma lástima lastimosa. Dois mil e catorze, após nossa pífia participação nas duas edições anteriores da Copa de Mundo de Futebol, foi o ano da confirmação: - não somos mais, se é que um dia fomos, o país do futebol. Somos, apenas, mais um país onde o esporte é apreciado, e só. Vai-se o mito, por assim dizer. E é até possível que na cabeça de alguns poucos milhões de nativos ainda o sejamos, visto que a paixão não é sentimento que ande de mãos dadas com a sensatez e a inteligência. Mitos e cegas paixões não se vão facilmente, ainda mais quando compartilhados por milhões sedentos do orgulho salvador.
         O futebol se tornou um esporte curioso. É um esporte de massas que movimenta bilhões. Dentro de campo despejam-se salários milionários sobre figuras controvertidas saídos muitas vezes da quase absoluta miséria, enquanto fora dele empresas poderosas lucram fábulas de fortunas com a audiência ávida e fiel. Em lugares inóspitos, como o ex "país do futebol", aproveita-se o esporte como escoadouro de ódios contidos, pessoas que se agridem por nada, por paixões vazias, por amores tolos e irracionais, uma gigantesca e caótica Babel onde nada nem ninguém se entende
        E pensar que não foi sempre assim. Nos tempos do puro futebol, do esporte pelo esporte, do futebol brincadeira onde garrinchas sorriam e se divertiam com dribles estonteantes, até guerras se interrompiam; até juízes eram expulsos quando, em atos tresloucados e imprudentes, expulsavam justamente as estrelas e os mocinhos do espetáculo, como se acreditassem que, cometendo o crasso erro, sairiam impunemente.
          Hoje, pobre futebol!, rios de dinheiro fomentam a ilusão e a violência gratuita. O ex “país do futebol” é, hoje, um exemplo gritante do grassar de ambas e apenas uma pálida, muito pálida sombra do que já foi um dia em matéria de futebol. Outros seculares mitos ainda grassam, outros novos mitos têm surgido, todos no afã de sufocar a nossa angústia advinda da consciência de nossa renitente e interminável pequenez... 

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