quarta-feira, 22 de outubro de 2014

CIRO QUER QU'EU SEJA "DE ESQUERDA"

          Imaginem vocês, parcos e rarefeitos leitores, que o meu amigo Ciro Ciarlini, homem de recursos intelectuais invejáveis e de recursos financeiros equivalentes, saiu-me com a seguinte pérola:
          –"Tens que ser 'de esquerda'! És funcionário público e funcionário público que se preza deve ser 'de esquerda'"!...
          Contudo, no minuto seguinte à admoestação de meu amigo, caí em mim e percebi a verdade incontestável: – o brasileiro conclui o que conclui com base em mitos e preceitos aceitos como verdades absolutas. Seria mais ou menos assim. 
          Se sou funcionário público, não tenho empresa, não sou empresário. Como não sou empresário, sou trabalhador. (Como se empresário não trabalhasse...) Sendo trabalhador, sou um explorado, um expoliado em minhas forças pelo rolo compressor do patronato. Eis, em pouquíssimas palavras, o raciocínio que leva meu amigo a concluir que devo ser 'de esquerda', custe o que custar.
          Hoje um jovem amigo quis saber de mim se eu gostaria de ter um negócio próprio ou se preferiria seguir sendo funcionário público. Disse-lhe, curto e grosso: –"Negócio próprio? Aqui não; lá fora sim". Eis os detalhes.
          Outro dia em acalorada conversa com meu amado amigo Gaudêncio Moreira Neto, dono de um negócio próprio, ele me relatava o calvário que é ser empresário neste país. A burocracia é irritante e o assédio do poder público sobre ele é implacável e recidivante. É como se o dono de um negócio fosse um criminoso, um meliante, um morfético lepromatoso do qual se tem asco. Ao final de seu relato, concluí sem delongas: – o governo vê esses donos de negócios como um mal a ser extirpado, como um tumor maligno que ameace a sua existência. Não resta outra explicação.
          Porém, vejam como é interessante. Ao ouvir o discurso de meu amigo, não pude deixar de sentir que ele, o discurso, parecia destoar da realidade. Os grandes negócios – entenda-se as grandes empresas – e os negócios "informais", como os vendedores ambulantes que criminosamente invadem nossas calçadas, ruas e avenidas, não parecem ser molestados pelo governo. Apenas os negócios menores, que atendem todas as exigências legais como o de meu amigo, são torturados diuturnamente. Ora, não sabemos se as grandes empresas são assediadas pelo governo, e é provável que o sejam, mas os negócios ilegais, que chamei acima de "informais", não o são com certeza. 
          Se todos os negócios formais são molestados pelo governo, conclui-se que continuamos a seguir a mesma cartilha que nos orientava já antes do desembarque de Dom João VI por aqui. Naquele tempo, ainda ao tempo do Brasil Colônia de Portugal, eram proibidos os negócios (a iniciativa privada), as escolas (não se construíam nem se permitiam as escolas) e as estradas que interligassem as províncias, tudo na intenção de evitar movimentos por independência. Assim, não surpreende que ainda hoje os governos brasileiros tenham horror aos negócios e aos que os têm, exceto aqueles ao qual seus agentes se aliam para lesar o erário e, em última análise, aqueles que pagam impostos com o suor de seu rosto.
          Os negócios "informais", eufemismo que denuncia os negócios abertos e funcionantes à margem das leis – não pagam impostos, funcionam em espaços de domínio público, e vendem, muitas vezes, produtos "piratas" –, são sarcasticamente e cinicamente permitidos por razões "humanitárias", em que a proibição e/ou punição dos infratores são consideradas medidas "impopulares" que acabariam por comprometer a carreira política do prefeito de plantão. Os honestos pagadores de impostos são acintosamente esquecidos por estes senhores.
          Assim, respondi ao jovem que, se morasse em país de verdadeira economia capitalista, preferiria ter o meu próprio negócio a ser empregado. Por aqui a regra mais fácil e mais simples é ser funcionário público. 
          O diabo era o Ciro Ciarlini insistindo a que eu fosse "de esquerda". Não entende o amigo que ser "de esquerda" requer, antes de tudo, uma mudança radical no caráter do indivíduo. Hoje, passados mais de 166 anos da publicação do Manifesto, e após as desastrosas e assassinas experiências comunistas, ser "de esquerda" resulta de uma de duas possibilidades: – ignorância inexplicável, já que abundam os relatos de seus resultados, ou malcaratismo mesmo. 
          Mas tudo se explica. Nossos homens de negócios, ao tempo do Brasil Colônia, eram escravagistas e gananciosos, o que não parece ter mudado ao longo da República; e o povo, sem oportunidades e dependente das benesses estatais, acomodou-se como o sujeito que se acomoda sentado ao banco onde há um prego a furar-lhe a bunda. O mundo se industrializou, riquezas foram produzidas, a ciência se multiplicou, mas o Brasil seguiu, impávido, sendo um país "em desenvolvimento". A industrialização veio tarde, as empresas idem, mas as ideias surgidas ao tempo da Colônia recalcitravam e teimavam. O capitalismo queria mercado e a abolição dos escravos, mas nós os procrastinamos até quando pudemos. O Manifesto já era uma consequência social do capitalismo àquela época selvagem, e veio como uma luva à nossa vocação malandra. Um brasileiro chegou a criar um "herói sem caráter" bem ao nosso gosto e semelhança. Tão sem estudos e sem iniciativa éramos que foi o governo o maior responsável pela criação de nossas grandes empresas; tanto que até hoje elas aí estão. Não viramos capitalistas e sempre, desde o início da República, tivemos a nos espicaçar e a nos rondar a ameaça comunista. Seria possível até dizer que ele, nosso desejado comunismo, é a soma de nosso "herói sem caráter" e nossa propensão à subserviência, educação medíocre e idolatria ao Estado.
          Não bastasse me sugerir a que me acanalhasse, Ciro era, nesse mesmo instante, assaltado por dúvida cruel. Não entendia o amigo o porquê de o FED, o banco central americano, baixar os juros em tempos de crise enquanto o nosso BC faz o oposto. Vejam a abissal diferença entre um país cuja economia está alicerçada na livre iniciativa e outro cuja economia está alicerçada no Estado provedor todo-poderoso. E saí eu, um pobre conhecedor dos labirintos da ciência econômica, a explicar a meu querido amigo que por lá baixar o custo do dinheiro surtia efeito positivo na recuperação da economia após uma crise. Baixar o custo do dinheiro, como se faz por lá e noutros países desenvolvidos, aumenta os investimentos por facilitar a captação de recursos pelas empresas e centros de pesquisa; aquelas começam a contratar e empregar pessoas e estes a promover o desenvolvimento da tecnologia, o que aumenta a produção e, em consequência, o consumo. A ideia é trazer a economia de volta a um círculo virtuoso.
          Por aqui é o contrário. Eleva-se o custo do capital, o que só tende a sufocar ainda mais a iniciativa privada. Como por aqui a atividade desta é uma formiguinha caquética diante da de nações desenvolvidas, e a pesquisa de ponta que faz a diferença é absolutamente inexistente, juros elevados só beneficiam os que têm dinheiro para emprestar. As empresas se retraem, não investem, demitem e eleva-se o desemprego, enquanto aguardamos que o mundo desenvolvido nos brinde com o resultado da ampliação do conhecimento científico. Resultado: – recessão. Vejam o pífio "crescimento" de nosso PIB (0,27%), resultado de juros elevados e inflação em alta. 
          Que nos resta? após a tragédia econômica e educacional que temos criado para nós mesmos durante toda a nossa existência enquanto nação?, perguntei ao meu amado Ciro Ciarlini. Ele, meio cabisbaixo e meio triste, calado estava, calado permaneceu, o que me obrigou a seguir em minhas lucubrações sobre política e ciência econômica. 
          Resta-nos, meu honroso discípulo de Asclepius, o assistencialismo, o crescente culto à ideia da existência de uma "dívida social impagável" que o sustenta e o resto da eternidade sendo o país "em desenvolvimento". Tudo o que for oposto a isso será obra do capital imperialista e dominador. E vá dormir com uma estória dessa a tirar o sossego de quem tem mais o que fazer...!

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