terça-feira, 26 de dezembro de 2017

OS CHIFRES DO AMORIM

         Há tempos devo uma visita à minha linda filha, que resolveu enlaçar-se em matrimônio a um vigoroso varão soteropolitano. Resolvi, então, vir visitá-la neste Natal. Na última quarta ou quinta-feira lia uma crônica do Airton Monte, onde ele confessava sua desilusão natalina. De pronto fiz minhas suas palavras e seus sentimentos. Sou um desiludido do Natal, com uma diferença: não me sinto necessitado de favores do além como parece andar o meu querido Monte. Todo dia é dia, tudo pode acontecer, posso sair de cena a qualquer hora. De mais resignação é o que preciso, isso sim. Em todo caso, estou sempre sendo vítima da boa esperança alheia, e ando também em falta com uma penca de amigos que me escreveram mensagens de fim de ano. 
        O fato é que aqui estou em São Salvador. Com minha cria tudo certo, tudo andando nos conformes. Saímos a passear por essa bela cidade e a admirar seus belos jovens e antigos edifícios, seu litoral deslumbrante, seus monumentos seculares. É tudo uma maravilha. Vista de cima ou de baixo, a cidade encanta mesmo a quem já a visitou outrora, como eu. Saboreei cada pedaço, cada seixo do Pelourinho, cada pimenta do tempero. Mas algo me incomodava. Não sabia o que era, mas um desassossego me tangia o pensamento. E já me desesperava quando desanuviou. O que era mistério se desfez na mais cristalina visão do óbvio - lembrava-me da tragédia do Amorim, o amigo que por seis anos aqui viveu. Amorim, sempre que sai-lhe a deixa, não perde a oportunidade de falar de Salvador, de seus sucessos, seus fracassos, seus casos e descasos em terras baianas. É notória sua nostalgia dos tempos de acarajé. E, por essas linhas que só o destino escreve, foi aqui onde Amorim casou, separou, chifrou e foi chifrado. 
          O que me espicaçava o espírito, de tudo isso, eram os chifres do Amorim. Aos diabos seus sofrimentos, suas noites mal dormidas, suas fossas, sua perda ponderal! Pensava só, e somente só, em seus chifres. Nem os sentimentos recíprocos do rival que dele foi vítima me detinham. Porque, se não sabem, Amorim e seu rival foram sócios de todas as formas possíveis e imagináveis. Enquanto um era noivo o outro era o amante, e assim reciprocamente. E o pior - ambos sofriam as mais cruéis dores de paixão pela beldade. 
     Então, onde passava imaginava as cenas da tragédia nos lugares mais afrodisíacos, nos bares mais recônditos, nos inferninhos mais perenes, nos restaurantes mais suspeitos e, por fim, no motel Del Rey, estopim de todo esse engodo do Amorim, onde ele - desta feita corneador - deflorou a pequena mais cobiçada do pedaço, a paixão mais enlouquecedora de sua vida. Cheguei a pensar - doce ilusão! - que encontraria algo, um poema, uma placa que fosse à saída do Mercado Modelo com algum dizer que lembrasse e imortalizasse o truculento romance em triunvirato, mas nada. Fotografias tirei, como podem ver em anexo, mas nada. Tudo se foi. 
          Acabei por descobrir, sem querer e de tanto procurar por algo, o que todos os brasileiros até há pouco mais queriam saber - o paradeiro de Belchior, o famoso compositor cearense. Sentado à mesa do Bar do França vislumbrei na obra de um artista local o desenho que mostra o nosso Belchior sentado com uma vara à mão a deliciar-se da pesca em vila próxima à capital baiana. Para aqueles céticos que sempre duvidam fiz fotografias que ilustram a verdade do que digo. Não há, portanto, a menor sombra de dúvida. 
        O mais foi o Natal de sempre, desta feita ao lado de quem amo profundamente, minha filha. Espero que ela tenha mais sorte que o querido Amorim e não venha a se embrenhar, pelas incorrigíveis linhas do destino, em semelhante desencontro de corações. Parto amanhã de volta ao Ceará. O Brasil é igual em todo lugar.
Fernando Cavalcanti, 26.12.2009

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