quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

UM GRANDE E INTERMINÁVEL CABARÉ

Morreu antes de ontem o Carlos Antunes. No hospital militar, nós, seus colegas, o chamávamos simplesmente “Antunes”. Foi no início dos anos ’90.
                E de que morreu o Antunes? Morreu de um ataque cardíaco. Alguém completará e dirá “fulminante”. Seria um adjetivo mais ou menos apropriado ao fato, já que os infartos “fulminantes” são entendidos como fatais. O “fulminante” é simplesmente um sinônimo a constar no pai-dos-burros. Diz lá sobre “fulminante: “que mata instantaneamente”.
No relato dos que presenciaram sua morte, na companhia dos amigos que o socorreram – eram médicos –, foi dito claramente por um deles que tentaram reanimá-lo com massagem cardíaca e respiração boca-a-boca por um período de 20 a 25 minutos, sem sucesso, até decidirem levarem-no ao hospital local. Nos ataques cardíacos fulminantes o insulto atinge uma extensa área do miocárdio ventricular levando a uma fibrilação e parada cardíaca. Se foi o caso, Antunes possivelmente teria morrido ainda que estivesse dentro do hospital, e apesar de toda a parafernália e cuidados de um atendimento de excelência.
Por outro lado, este atendimento de excelência ter-lhe-ia dado uma chance, ainda que mínima. A massagem cardíaca com a respiração boca-a-boca serve a bombear o sangue oxigenado a partir de um músculo que se contrai desordenadamente até que, por exemplo, o choque de um desfibrilador ponha a casa em ordem, por assim dizer. O “fulminante” não teria sido tão “fulminante” assim, mas um ataque que apenas iniciou uma fibrilação ventricular, essa sim, grave o bastante para necessitar de uma reversão com o aparelho sob pena de se seguir a parada cardíaca inexorável.
Contudo, Antunes não teve essa chance. E por que não teve? Por uma lista de razões absolutamente grotescas, a primeira delas o fato de o evento sinistro ter ocorrido durante o carnaval na cidade de Guaramiranga, Ceará. Explicando melhor, e com outras palavras: a dificuldade de se chegar ao hospital com o paciente. “Não há uma rota emergencial de acesso ao hospital durante esse período”, disse Tadeu Feijão, o médico que era anfitrião do amigo à hora sinistra. Disse ele ainda mais sobre isso: “[Guaramiranga] Não dispõe nem mesmo de uma moto da autoridade do trânsito com sirene para ‘oficialmente’ abrir espaço”. As outras razões se referem à precária infraestrutura da pequena casa de saúde daquela cidade e da precária equipe de profissionais de plantão para lidar com situações semelhantes. Vejam: ficou claro que a precariedade da equipe se referia a seus conhecimentos médicos e experiência profissional. Ater-me-ei à questão do acesso ao hospital posto que ela aponta o dedo para uma sociedade inteiramente leviana quando se trata da vida alheia.
Iniciarei dizendo que somente num lugar onde a vida nada vale as ruas são obstruídas vários dias da semana e em várias semanas para dar espaço ao que se chama de “folião”, seus “carros alegóricos” e “trios elétricos”. Dou exemplo. Por vários anos a Avenida Beira-Mar, em Fortaleza, foi interditada, com a anuência da prefeitura, para a realização de um evento carnavalesco “fora de época”, o “Fortal” – uma mistura de “Fortaleza” com “carnaval”. Era no final dos meses de julho. Anos e anos a fio. A prefeitura, incestuosamente atracada a empresas de eventos e sob a justificativa de “fomentar o turismo local”, bloqueava o direito de ir e vir das pessoas que moravam naquela avenida e suas imediações. Não tenho a menor ideia de quantas emergências ocorreram em residências daquela área naquele tempo; ou quantas mortes houve em decorrência de demora no socorro e/ou evacuação de vítimas de eventos naturais sinistros, com a contribuição decisiva das autoridades locais nesse tempo.
Um detalhe a mais – a morte de Antunes e as circunstâncias em que ela ocorreu vieram a público não porque a imprensa fajuta local tenha algo a ver com isso. Se dela dependêssemos para tal, passaríamos pela vida na ignorância não dos fatos, mas do que está por trás deles. Ela é do conhecimento de muitos porque estão aí as redes sociais diversas. A imprensa hoje é um mero bajulador do poder público, que lhe custeia através dos anúncios onde apregoa suas mentiras e seus dados manipulados. O aumento do PIB tudo justifica.   
Pois bem. Quero crer que haja leis municipais que garantam o livre trânsito de veículos pelas ruas e avenidas de uma cidade, pois não? Se há, pode quem promulgou a lei, através dos responsáveis pela difícil tarefa de legislar, reverter ou suspender, ainda que temporariamente, esse direito fundamental? Se há na lei municipal um artigo ou parágrafo que permita às autoridades lançar mão de tal dispositivo quando bem entenderem e com as justificativas injustificáveis para tal, estamos diante de um ente estatal que legisla não para garantir a ordem e o livre direito de ir e vir dos cidadãos, mas o direito de esse mesmo ente fazer o que bem entender, como bem entender e quando bem entender, quando lhe for conveniente. “Fomentar o turismo” pondo em risco a vida das pessoas? Contribuir para aumentar a arrecadação de hotéis, bares, restaurantes e equipamentos turísticos pondo em risco a vida das pessoas interrompendo seu direito de ir e vir livremente e tirando o sossego do cidadão? Talvez por isso o capitalismo seja tão demonizado por aqui – é o velho conchavo entre poder público e empresários inescrupulosos a contribuir com a noção.
O “Fortal” retirou-se para bem longe, uma área aberta e não habitada da cidade, mas as ruas e avenidas continuam sendo obstruídas com o “amém” da prefeitura local, assim como acontece em milhares de outras cidades brasileiras e em períodos diversos. Há de haver uma história sobre a remoção desse evento tão popular depois de vários anos de estupro ao cidadão.
Antigamente o carnaval era conhecido por ser a mais longa festa brasileira – durava 3 dias, durante o mês de fevereiro. Com o tempo a festa ganhou mais tempo e mais dias, em meses diversos, em cidades diversas. O carnaval brasileiro extrapolou o racional direito das pessoas de se divertirem numa festa pacífica, tradicional e que guardava um mínimo de respeito pela vida e pelas pessoas de bem. Hoje ele é assim – quase um crime contínuo com a conivência e participação ativa das autoridades. E nem estou a falar de outros crimes que ganham impulso com o carnaval atual: homicídios, assaltos, latrocínios, atentado violento ao pudor em vias e praças públicas, falta de respeito à lei do silêncio, e por aí vai. 
Antes de me ir, que já me enfado do tema, lembro os shows de música, as missas-shows, os cultos-shows, os shows-shows que fecham vias de circulação absolutamente necessárias, além de tirarem o sossego de quem quer descansar da labuta, e sempre com a participação e anuência do poder público irresponsável e canalha. Até os religiosos estão tirando uma casquinha dessa desordem pseudolegal pseudocontrolada.
O brasileiro assiste a tudo como se nada tivesse com isso. É aí onde está a questão: é justamente o brasileiro quem implora por tudo isso. Ele não quer construir um país – ele quer viver num grande e interminável cabaré. Em breve o carnaval há de durar mais que o ano inteiro. 

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