quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

AOS DIAS DE HOJE...

     Antes tarde do que nunca, diz o chavão. Os mais afoitos impuseram um mote maroto, parafraseando o ditado secular: antes à tarde do que nunca... À tarde se prevarica, diriam outros, quase que impondo a hora do adultério. O diabo é que nunca se sabe, nunca se sabe... 
     Dizia o Casoba que aos dias de hoje nada se faz que não se saiba. A propósito, sumiu o Casoba. Melhor dizendo, sumimos um para o outro. Procurei notícias do homem e tudo que obtive foi o silêncio. Não me retorna as chamadas, não me responde as mensagens que envio... Silêncio absoluto. Minto. Outro dia lhe fiz uma chamada involuntária. Sim, foi enquanto manuseava o telefone portátil e, inadvertidamente, sem intenção, fiz-lhe uma chamada. Imediatamente cancelei. Não se passou um minuto e ele me retornou. Eu estava ocupado e não queria tomar o tempo do amigo.
     —"Fernando?", disse ele quando atendi.
     —"Fala, Casoba!"
     —"Estás precisando de alguma coisa?"
     Hesitei.
     —"Só de sua amizade...", respondi pilheriando.
     Ele saiu a rir-se e desligou. 
     Depois, mais tarde, quando tive tempo, liguei novamente para um papo informal, jogar conversa fora, saber da vida dele... Não me atendeu. Das várias chamadas, nenhuma foi completada. Ainda agora espero.
     O diabo é que, aos dias de hoje — sempre aos dias de hoje —, ninguém mais se esconde. Nem mesmo o Casoba. Ele mesmo o dizia. Diga-se de passagem, Casoba foi dos sujeitos mais escondidos que conheci. Tinha um talento especial para sumir. Isso em passado não muito distante. Escondia-se tanto, tantas vezes e tão bem que íamos à sua casa, estando ele lá, e não o encontrávamos. Era no tempo da vida presencial. Nela o sujeito trancava as portas e... babau! Sumia sem deixar rastro.
     Hoje não. Hoje o sujeito se tranca, impede o acesso presencial a si, mas comete a gafe de "sair" na internet, botar a cara de fora na tal da rede mundial de computadores. Antigamente o grande charme era sumir — sim, sumir enchia o sujeito de uma aura misteriosa. Casoba usava desse estratagema para angariar a simpatia do sexo frágil, o cachorro...
    Hoje não, repito. Hoje o charme é "postar". Mas, vejam, a "postagem" é uma ciência que se vê em construção, mas há já uma vasta experiência de meio mundo no tema. A rede é ponto de encontro universal e, justamente por isso, serve a todos os propósitos possíveis e imagináveis e, diria também, impossíveis e inimagináveis. A depender, pode ser infinitamente útil e lucativa. Mas não era nada disso que eu queria dizer.
     O que quero dizer é que não acho o Casoba nem que vá à sua casa — não faço a menor ideia de onde ele mora atualmente —, mas o encontro facilmente ali, na rede social, na internet. Faz "postagens" quase que diariamente, ou seja, aparece quase que diariamente. Outro dia — há três dias, mais precisamente — fez uma publicação rebuscadíssima. Escreveu: "Memento, homo, quis puluis es et in pulverem reverteris". 
     Ora, o latim é uma coisa belíssima! uma língua mortíssima! uma utilidade humilhantíssima! Pouquíssimos a dominam aos dias de hoje. Tudo o que se escreve em latim tem uma beleza inexplicável, forte e, diria até, uma beleza exclusiva. Sim, a beleza do latim exclui os ignorantes — a maioria dos mortais —, talvez pela carga de antiguidade que lhe é inerente e inexorável. Pois o Casoba me saiu com o verso 19 do capítulo 3 de Gênesis em latim! Fosse só isso, tudo bem. O grande mote é a força da mensagem que o Altíssimo passa na sentença condenatória, tão inexorável quanto a peso do latim. O hebraico ou aramaico teriam tal força? Vá saber...
      O problema da "postagem", qualquer postagem, é que ela tem a frieza da ausência. Mesmo na hora do veredito, o Criador estava cara-a-cara com o homem, dizendo-lhe nas fuças o que o aguardava. Já o Casoba... Alguém dirá que lá estão as fotografias do homem, de seu cachorro, de seus netos, de seu carro, enfim, toda a vida do homem há de estar lá, na página da rede social. Pergunto : — e daí? Se nos encontrássemos, Casoba e eu, na Cidade da Criança, estaria lá o Casoba, só o Casoba e mais ninguém, comigo. Seríamos ele e eu lá, na Cidade da Criança, num encontro de amigos dos velhos e bons tempos. 
     (A Cidade da Criança, ou Parque da Liberdade, está para esta decadente Fortaleza assim como o Parque Memorial da Paz está para Hiroshima, no Japão, sendo que a Cúpula Genbaku, ou Cúpula da Bomba Atômica, está para o Memorial da Paz assim como o portal onde repousa a estátua de um "índio com os braços abertos quebrando os grilhões que lhe acorrentavam os pulsos" está para o Parque da Liberdade. Aqui as "bombas" não param de explodir. A estátua do índio está sem um de seus braços faz um bom tempo e nada se fez até agora para reparar-lhe o grave defeito. Outras "bombas", em breve, hão de lhe amputar o outro. Pensando bem, seria melhor encontrar o Casoba na Praça General Tibúrcio...)
     Eis aí toda a tragédia dos "dias de hoje": a ausência. Vivemos ao tempo da ausência. Antigamente nem as forças centrífugas da vida espalhavam tanto as gentes. Sempre se podia chegar a qualquer hora, a qualquer dia, em casa de parentes, amigos, vizinhos... Batia-se na madeira ou já se ia insinuando casa adentro com o grito: —"Ó de casa!..." Casoba não escaparia de mim se não tivesse se especializado nessa ausência interminável. Logo ele que vivia a lembrar que "morrer é apenas não ser visto"... 

2 comentários:

  1. Excelente e oportuno texto sobre esse lugar de ausência a que todos nós nos condenamos.

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