Pediu licença para sair. Um paciente reclamava sua
presença. Almoço em família, vida de médico.
Dali
a pouco chegava ao hospital. Comprara um desses rechonchudos sanduíches que têm
de tudo. Não era para ele, era para a pequena.
Ela saiu ao seu encontro tão logo ele chegou.
Abraçou-o com força e o beijou na face. Não se
apartaram até que ele, num gesto de pouca força, empurrou-a de si. Se não mais
queria o romance, por que o abraçava? Ele viera porque batera uma saudade
imensa. O sanduíche era a desculpa.
Entrou no carro e se foi de volta ao almoço.
***
No quarto o telefone tocou. Era ela. “Espera que te
ligo já”, e terminou de se vestir.
Foi para a varanda com o telefone portátil. Dizia:
-“Não me ligue mais, por favor.” A paisagem era deslumbrante.
“Foi você quem desmanchou, não me procure mais. O
sanduíche foi só pra te ver pela última vez”.
Desligou.
Virou-se para entrar na sala. A mulher estava
parada atrás de si ouvindo a conversa.
***
Chamou os filhos e lhes contou da amante do pai. Dali
em diante a vida se tornou um inferno. As filhas queriam agredi-lo. O filho do
pai escarnecia dia e noite.
O diabo é que dali a alguns dias viajariam todos juntos,
mais a outra parte da família. Eram cunhados, concunhados, sobrinhos, uma
torcida inteira. E, já tudo pago, não havia como desistir.
No aeroporto desenhou-se o que o esperava nos dias
vindouros – ninguém lhe dirigia a palavra. Os outros perceberam, e a mulher não
escondeu seu drama: -“Vocês não vão acreditar! Esse cachorro está me traindo!”
Foram dias
difíceis em terras estrangeiras. A família ia para um lado, ele para outro.
Quando voltasse tinha uma operação a fazer. Ele era o paciente.
(Mal sabia que
Caronte apenas esperava a levá-lo a maiores profundezas.)
***
De volta ao lar, a mulher não perdia uma
oportunidade de sabatiná-lo. Ao princípio tudo negara. Até que resolveu
assumir: –“Sim, é verdade!”
Tolo engano esperar uma trégua. As sabatinas só
pioravam. Contara tudo nos mínimos detalhes, mas de nada adiantou. A mulher não
lhe cria numa só palavra. Era um mentiroso!
(Caronte atracara o barco e o convidava a subir.)
***
Antes de baixar ao hospital escondeu os telefones
portáteis. Temia que a outra, a enfermeira, ligasse para saber como estava, ou
que lhe fosse acompanhar durante a operação.
Acordou dos sedativos na companhia da mulher e da
cunhada.
Com a visão ainda turva devido às drogas pôde
perceber a mulher a segurar os telefones que escondera.
Ali mesmo, no apartamento do hospital, o homem
ainda padecendo de dores e drogas pós-operatórias, e a mulher a gritar com o
dedo em riste: -“Canalha! Manda essa vagabunda parar de ligar!”
A cunhada, comprando a briga da irmã, fuzilou:
-“Bicho sem-vergonha!”
Com a voz a um decibel do inaudível, suplicou: –“Respeite
pelo menos minha cirurgia...”
Não teve jeito: -“Cachorro safado!” E emendava:
–“Pulha!
***
No segundo dia após a operação, à visita do
cirurgião que já lhe assinava a alta, implorou: –“Me deixa aqui mais dois ou
três dias!” Nem pensar! Está tudo bem e vai para casa já! Não era porque era
médico que deixariam interferir na rotina.
Seria possível que a mulher e os filhos lhe dessem
o mínimo de paz em casa? Nada lhe restava a não ser nutrir o mínimo de
esperança... e a sonda pendurada na piroca a lhe drenar a urina sanguinolenta.
Menos dor, mais ânimo.
Levantava-se a ir ao mictório e, súbito, ainda com
ardência e sangue, entrava a mulher chutando a porta: –“Cabra safado! Postema!
Sacana!”, ao que ele retrucava num humilhante rogo: –“Respeite pelo menos minha
hematúria...”
***
Tudo se resolveu quando alugou apartamento e mudou.
É uma paz... é um silêncio... É o céu em vida.
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