quinta-feira, 4 de junho de 2020

RESPEITE PELO MENOS O POBRE HOMEM...

Pediu licença para sair. Um paciente reclamava sua presença. Almoço em família, vida de médico.
            Dali a pouco chegava ao hospital. Comprara um desses rechonchudos sanduíches que têm de tudo. Não era para ele, era para a pequena.
Ela saiu ao seu encontro tão logo ele chegou.
Abraçou-o com força e o beijou na face. Não se apartaram até que ele, num gesto de pouca força, empurrou-a de si. Se não mais queria o romance, por que o abraçava? Ele viera porque batera uma saudade imensa. O sanduíche era a desculpa.
Entrou no carro e se foi de volta ao almoço.

                                                                                   ***
No quarto o telefone tocou. Era ela. “Espera que te ligo já”, e terminou de se vestir.
Foi para a varanda com o telefone portátil. Dizia: -“Não me ligue mais, por favor.” A paisagem era deslumbrante.
“Foi você quem desmanchou, não me procure mais. O sanduíche foi só pra te ver pela última vez”.
Desligou.
Virou-se para entrar na sala. A mulher estava parada atrás de si ouvindo a conversa.

                                                                      ***
Chamou os filhos e lhes contou da amante do pai. Dali em diante a vida se tornou um inferno. As filhas queriam agredi-lo. O filho do pai escarnecia dia e noite.
O diabo é que dali a alguns dias viajariam todos juntos, mais a outra parte da família. Eram cunhados, concunhados, sobrinhos, uma torcida inteira. E, já tudo pago, não havia como desistir.
No aeroporto desenhou-se o que o esperava nos dias vindouros – ninguém lhe dirigia a palavra. Os outros perceberam, e a mulher não escondeu seu drama: -“Vocês não vão acreditar! Esse cachorro está me traindo!”
Foram dias difíceis em terras estrangeiras. A família ia para um lado, ele para outro. Quando voltasse tinha uma operação a fazer. Ele era o paciente.
(Mal sabia que Caronte apenas esperava a levá-lo a maiores profundezas.)

                                                                                               ***
De volta ao lar, a mulher não perdia uma oportunidade de sabatiná-lo. Ao princípio tudo negara. Até que resolveu assumir: –“Sim, é verdade!”
Tolo engano esperar uma trégua. As sabatinas só pioravam. Contara tudo nos mínimos detalhes, mas de nada adiantou. A mulher não lhe cria numa só palavra. Era um mentiroso!
(Caronte atracara o barco e o convidava a subir.)

                                                                                            ***
Antes de baixar ao hospital escondeu os telefones portáteis. Temia que a outra, a enfermeira, ligasse para saber como estava, ou que lhe fosse acompanhar durante a operação.
Acordou dos sedativos na companhia da mulher e da cunhada.
Com a visão ainda turva devido às drogas pôde perceber a mulher a segurar os telefones que escondera.
Ali mesmo, no apartamento do hospital, o homem ainda padecendo de dores e drogas pós-operatórias, e a mulher a gritar com o dedo em riste: -“Canalha! Manda essa vagabunda parar de ligar!”
A cunhada, comprando a briga da irmã, fuzilou: -“Bicho sem-vergonha!”
Com a voz a um decibel do inaudível, suplicou: –“Respeite pelo menos minha cirurgia...”
Não teve jeito: -“Cachorro safado!” E emendava: –“Pulha!

                                                                                   ***
No segundo dia após a operação, à visita do cirurgião que já lhe assinava a alta, implorou: –“Me deixa aqui mais dois ou três dias!” Nem pensar! Está tudo bem e vai para casa já! Não era porque era médico que deixariam interferir na rotina.
Seria possível que a mulher e os filhos lhe dessem o mínimo de paz em casa? Nada lhe restava a não ser nutrir o mínimo de esperança... e a sonda pendurada na piroca a lhe drenar a urina sanguinolenta.
Menos dor, mais ânimo.
Levantava-se a ir ao mictório e, súbito, ainda com ardência e sangue, entrava a mulher chutando a porta: –“Cabra safado! Postema! Sacana!”, ao que ele retrucava num humilhante rogo: –“Respeite pelo menos minha hematúria...”

                                                                                   ***   
Tudo se resolveu quando alugou apartamento e mudou.
É uma paz... é um silêncio...  É o céu em vida.

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