Detesto que me elogiem. Sou um poço de imperfeições e erros. Por isso
detesto quando me atribuem qualidades que não tenho; ou, mesmo que suponham tê-las,
que as exponham tão fragorosamente. Já disse uma vez que o elogio é a véspera
da decepção. Disse também que a decepção depende de quem as tem. E é verdade.
Quem mandou elogiar e esperar tanto? Por isso já há algum tempo, muito tempo,
deixei de ser tiete de quem quer que seja. Aprendi cedo a ver os outros como
seres humanos, somente. De carne e osso como eu. Imaginem o George Bush sentado
na privada com diarreia. Quem seria, então, o George Bush? Seria um mísero ser
humano se esvaindo numa cagada. Igual a qualquer um de nós. A diferença dele
para nós é que ele tem o poder de apertar os botões. Para os que ainda estão
vivos ele é poderoso; para os sobreviventes ele seria um insano, um assassino,
um imbecil, um troglodita. Um Hitler. Então, não me elogiem. Não me puxem o
saco. A qualquer momento posso falhar.
Fiquei sabendo hoje que um colega do hospital me esculhambou. Falou mal de mim
às pampas. Disse que eu era tudo menos santo. Disse que eu era tudo menos um
bom médico. Pensei: ele deve estar certo. Tenho sido um mau colaborador.
Tenho sido um péssimo funcionário público. Tenho sido muito rebelde. Não tenho
acatado as diretrizes dos gestores. Não tenho sido humilde como o gado à espera
do cutelo. Tenho sido impertinente e inadaptado. Admito. Eis meu mea
culpa. Sou réu confesso. Tenho falhado reiterada e obstinadamente. Não
me puxem o saco os meus doentes sob meus cuidados.
Sim, os meus doentes, que estão sob os meus cuidados, gostam até de minhas
impolidezes e rudezas. Gostam quando lhes digo a verdade e os
responsabilizo por suas agruras e maldizeres. São uns loucos. Gostam
de me ter como amigo, porque dizem que os repreendo com a franqueza do que ama.
Estão loucos, com certeza. Onde já se viu?... E não lhes aborreço com minhas
estúpidas brincadeiras, que os divertem e lubrificam nossas relações fadadas ao
tecnicismo de meus pouquíssimos conhecimentos da ciência médica. Devo ser um
George Bush com diarreia para eles. Eles me presenteiam quando lhes digo que
tudo vai dar certo, mesmo sabendo que estou a lhes mentir descaradamente. Eles
dizem que acreditam tanto em minhas mentiras que quase ficam curados. Pena que
são mortais, e eles ririam de mim se lhes dissesse que jamais iriam morrer nem
sofrer. Confesso nunca ter chegado a tanto. Correria o risco de ser processado
por falsidade ideológica, ou por propaganda enganosa, ou por negligência. Eles
não sabem, mas os sucessos de minhas operações se devem todos à sorte. Todo
canalha é sortudo. E eu não sou diferente. Tudo dá certo porque tenho sorte. Se
soubesse realmente operar teria qualquer dia uma ou outra complicação. Por isso
não aprendo. Prefiro seguir confiando em minha sorte.
O meu colega que me detesta me desmascarou. Eu sou um embuste, uma enganação,
uma farsa. Minha técnica cirúrgica é imperfeita, e minha formação cheia de
lacunas e erros irreparáveis. Minhas boas relações com os médicos de branco
desta terra foram sempre repletas de interesses escusos de minha parte. Sempre
queria lhes subtrair algo, mesmo caindo sempre em suas graças e bebendo de
sua fonte inesgotável de saber e sabedoria. Doutor Régis Jucá quase morreu de
rir quando lhe contei, durante uma operação, que o filho chegou para seu pai e
perguntou: -“Pai, quanto custa casar? E o pai: -“Não sei, filho, ainda estou
pagando!” Ah! Eu estava me locupletando do grande médico e homem Régis
Jucá! E não me esquivei de todas as obrigações a mim impostas pelo grande João
Evangelista Bezerra Filho, meu chefe na residência de Cirurgia Geral, porque
queria lhe peitar. E lia todos os livros e tratados de Cirurgia porque tinha a
petulância de o querer imitar... Fui um estúpido subserviente: obedecia à risca
a tudo o que meus mestres em Cirurgia me mandavam. Fazia isso por fingimento e
sonsice. Eu queria apenas me projetar, ser um puxa-sacos, ficar em evidência,
satisfazer minha vaidade incontida. Escondia ainda minha petulância e
arrogância que meu colega, o que me detesta, acabou por desmascarar.
Minha canalhice é tamanha que pretendi questionar o funcionamento de hospital
tão exemplar como aquele em que labutamos. Minha arrogância chegou ao ponto –
imaginem! – de eu ter consultado o Conselho Regional de Medicina do Estado na
tentativa torpe de entravar práticas tão cristalinas de medicina de primeiro
mundo. Tentei – meu Deus, eu não presto mesmo – destruir tudo, todas as
rotinas, protocolos, algoritmos, enfim. Eu queria, e ainda quero, que este
hospital não funcione. Quero que ele deixe de ser essa grande casa de saúde,
onde se pratica a melhor medicina do Estado, e se transforme em... sei lá!
uma grande Babel da ciência médica. Tornou-se meu propósito desfazer anos e
anos de melhorias e excelência médica. Passo horas, dias, semanas, anos,
atentando contra a vida através de meus embustes e sabotagens dentro daquela
unidade de saúde comprometida com a melhor prática médica. Pensei inclusive –
vejam como sou nefasto! – que se poderia tirar o hospital do controle dos
gestores municipais - homens íntegros, sérios, comprometidos com a manutenção
da instituição no mais elevado grau da prática médica corrente – e colocá-lo à
mercê de interesses de políticos safados, mentirosos e venais para a realização
de seus projetos de poder. Já vislumbrava para mim um cargo vistoso e poderoso,
em minha ânsia de meus planos inconfessáveis agora descobertos.
A mim nada mais resta a não ser a execração perante meus pares e a sociedade.
Temo pelos meus pais, ainda vivos, face ao desgosto de tão dolorosa
descoberta, a de um filho farsante por quase quarenta e sete anos. Temo pelos
meus filhos em busca de exemplos, ante o vazio que se lhes abriu sob os pés.
Ainda assim fiz um bem. Involuntário, é verdade. Se pudesse não o faria. Aos
acadêmicos do curso de medicina. Eles são a esperança de que esta casa de
saúde e similares jamais se deixarão transformar e mudar seu rumo por
influência tão deletéria como a minha. São eles a garantia de que tudo
permanecerá como está. A virtude do modelo seguirá intocada, para o bem dos
nobres de caráter que lhe seguem e do povo que lhe faz usufruto.
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