sexta-feira, 19 de junho de 2020

VERGONHA SOBRE MIM!

              Detesto que me elogiem. Sou um poço de imperfeições e erros. Por isso detesto quando me atribuem qualidades que não tenho; ou, mesmo que suponham tê-las, que as exponham tão fragorosamente. Já disse uma vez que o elogio é a véspera da decepção. Disse também que a decepção depende de quem as tem. E é verdade. Quem mandou elogiar e esperar tanto? Por isso já há algum tempo, muito tempo, deixei de ser tiete de quem quer que seja. Aprendi cedo a ver os outros como seres humanos, somente. De carne e osso como eu. Imaginem o George Bush sentado na privada com diarreia. Quem seria, então, o George Bush? Seria um mísero ser humano se esvaindo numa cagada. Igual a qualquer um de nós. A diferença dele para nós é que ele tem o poder de apertar os botões. Para os que ainda estão vivos ele é poderoso; para os sobreviventes ele seria um insano, um assassino, um imbecil, um troglodita. Um Hitler. Então, não me elogiem. Não me puxem o saco. A qualquer momento posso falhar.
                Fiquei sabendo hoje que um colega do hospital me esculhambou. Falou mal de mim às pampas. Disse que eu era tudo menos santo. Disse que eu era tudo menos um bom médico. Pensei: ele deve estar certo. Tenho sido um mau colaborador. Tenho sido um péssimo funcionário público. Tenho sido muito rebelde. Não tenho acatado as diretrizes dos gestores. Não tenho sido humilde como o gado à espera do cutelo. Tenho sido impertinente e inadaptado. Admito. Eis meu mea culpa. Sou réu confesso. Tenho falhado reiterada e obstinadamente. Não me puxem o saco os meus doentes sob meus cuidados.
                Sim, os meus doentes, que estão sob os meus cuidados, gostam até de minhas impolidezes e rudezas. Gostam quando lhes digo a verdade e os responsabilizo por suas agruras e maldizeres. São uns loucos. Gostam de me ter como amigo, porque dizem que os repreendo com a franqueza do que ama. Estão loucos, com certeza. Onde já se viu?... E não lhes aborreço com minhas estúpidas brincadeiras, que os divertem e lubrificam nossas relações fadadas ao tecnicismo de meus pouquíssimos conhecimentos da ciência médica. Devo ser um George Bush com diarreia para eles. Eles me presenteiam quando lhes digo que tudo vai dar certo, mesmo sabendo que estou a lhes mentir descaradamente. Eles dizem que acreditam tanto em minhas mentiras que quase ficam curados. Pena que são mortais, e eles ririam de mim se lhes dissesse que jamais iriam morrer nem sofrer. Confesso nunca ter chegado a tanto. Correria o risco de ser processado por falsidade ideológica, ou por propaganda enganosa, ou por negligência. Eles não sabem, mas os sucessos de minhas operações se devem todos à sorte. Todo canalha é sortudo. E eu não sou diferente. Tudo dá certo porque tenho sorte. Se soubesse realmente operar teria qualquer dia uma ou outra complicação. Por isso não aprendo. Prefiro seguir confiando em minha sorte.
                O meu colega que me detesta me desmascarou. Eu sou um embuste, uma enganação, uma farsa. Minha técnica cirúrgica é imperfeita, e minha formação cheia de lacunas e erros irreparáveis. Minhas boas relações com os médicos de branco desta terra foram sempre repletas de interesses escusos de minha parte. Sempre queria lhes subtrair algo, mesmo caindo sempre em suas graças e bebendo de sua fonte inesgotável de saber e sabedoria. Doutor Régis Jucá quase morreu de rir quando lhe contei, durante uma operação, que o filho chegou para seu pai e perguntou: -“Pai, quanto custa casar? E o pai: -“Não sei, filho, ainda estou pagando!” Ah!  Eu estava me locupletando do grande médico e homem Régis Jucá! E não me esquivei de todas as obrigações a mim impostas pelo grande João Evangelista Bezerra Filho, meu chefe na residência de Cirurgia Geral, porque queria lhe peitar. E lia todos os livros e tratados de Cirurgia porque tinha a petulância de o querer imitar... Fui um estúpido subserviente: obedecia à risca a tudo o que meus mestres em Cirurgia me mandavam. Fazia isso por fingimento e sonsice. Eu queria apenas me projetar, ser um puxa-sacos, ficar em evidência, satisfazer minha vaidade incontida. Escondia ainda minha petulância e arrogância que meu colega, o que me detesta, acabou por desmascarar.
                Minha canalhice é tamanha que pretendi questionar o funcionamento de hospital tão exemplar como aquele em que labutamos. Minha arrogância chegou ao ponto – imaginem! – de eu ter consultado o Conselho Regional de Medicina do Estado na tentativa torpe de entravar práticas tão cristalinas de medicina de primeiro mundo. Tentei – meu Deus, eu não presto mesmo – destruir tudo, todas as rotinas, protocolos, algoritmos, enfim. Eu queria, e ainda quero, que este hospital não funcione. Quero que ele deixe de ser essa grande casa de saúde, onde se pratica a melhor medicina do Estado, e se transforme em... sei lá! uma grande Babel da ciência médica. Tornou-se meu propósito desfazer anos e anos de melhorias e excelência médica. Passo horas, dias, semanas, anos, atentando contra a vida através de meus embustes e sabotagens dentro daquela unidade de saúde comprometida com a melhor prática médica. Pensei inclusive – vejam como sou nefasto! – que se poderia tirar o hospital do controle dos gestores municipais - homens íntegros, sérios, comprometidos com a manutenção da instituição no mais elevado grau da prática médica corrente – e colocá-lo à mercê de interesses de políticos safados, mentirosos e venais para a realização de seus projetos de poder. Já vislumbrava para mim um cargo vistoso e poderoso, em minha ânsia de meus planos inconfessáveis agora descobertos. 
                A mim nada mais resta a não ser a execração perante meus pares e a sociedade. Temo pelos meus pais, ainda vivos, face ao desgosto de tão dolorosa descoberta, a de um filho farsante por quase quarenta e sete anos. Temo pelos meus filhos em busca de exemplos, ante o vazio que se lhes abriu sob os pés. Ainda assim fiz um bem. Involuntário, é verdade. Se pudesse não o faria. Aos acadêmicos do curso de medicina. Eles são a esperança de que esta casa de saúde e similares jamais se deixarão transformar e mudar seu rumo por influência tão deletéria como a minha. São eles a garantia de que tudo permanecerá como está. A virtude do modelo seguirá intocada, para o bem dos nobres de caráter que lhe seguem e do povo que lhe faz usufruto. 

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