segunda-feira, 28 de maio de 2012

Pressa de viver

      Vim à belíssima Natal para tomar uma cerveja com meu amigo-irmão e compadre Ruy. Eram completas suas 51 primaveras. Sou, portanto, mais velho que ele em 22 dias. E pergunto:  o que são 22 dias passados os nossos 51? A bem da verdade, nada. Conhecemos-nos há cerca de 40 anos no Colégio Marista e desde então iniciamos a cada vez mais fazer parte da vida um do outro. Comigo vieram o Mesquita e o Braga, da mesma geração, amizades tão antigas e tão amigos-irmãos quanto Ruy.
       Espantou-me ver a linda Natal afeada por tantos e tantos carros que não se cansam de lançar toneladas de fumaça e monóxido ao seu ar outrora puro e repleto do olor das flores e folhas virgens de sua densa mata nativa da floresta de nossa costa. O que dela sobrou foram ainda os rios, ainda as matas e ainda as dunas remanescentes do que se invadiu, e protegidos por lei da ação funesta da ganância e do esquecimento da morte. Permanecem intactos o recorte de seu lindíssimo litoral e seu mar deitado ao nascente de sóis e luas inesquecíveis e humilhantes, a anunciar aos que aqui habitam o imenso e inesgotável amor e bondade dAquele que tudo fez para o deleite e felicidade de Suas criaturas. 
      De verdade não viemos a Natal. Ao sul de seus confins, à beira do mar oceano, longe 30 ou 40 quilômetros, está a barra da Tabatinga, um conglomerado de praias, lagoas, angras e calhetas em seu conjunto belíssimo e, ao dia de ontem, emoldurado por céu azul anil ao alto, matizando- se gradualmente ao se achegar ao mar e ao infinito em céu azul turquesa. O dia claro emanava uma luz branca cujo fulgor fazia cintilar ao longe as muitas águas que baloiçavam aos ventos tépidos e mansos. A vazante expusera o conjunto de rochas dos arrecifes e represara as águas em lagunas rasas onde se podia brincar ou se banhar. A companhia dos quatro amigos-irmãos nesse cenário santuário enchia-nos de gozo e prazer.  O mote: o aniversário do Ruy. Foi assim: 
        Semana passada estou ali, na Zug Choperia, e algo me espicaça; seria tédio ou sentimento semelhante. Seria o sentimento da ausência de algo vital ou  essencial. Minha alma anelava o verdadeiro amigo. Eis que, súbito, ali mesmo na bancada do bar, compro a passagem. E, como a desejar incendiar os outros com minha intuição, ligo pro Mesquita e ligo pro Braga. Os dias que se seguiram se encarregaram de fazer o resto. Assim, estamos aqui. 
      Era nosso propósito  ir às confidências de nossas inquietações durante nosso tempo juntos, mas o homem de 51 costuma estar acompanhado de mulher e, muitas vezes, de seus filhos. O homem de 51 não será mais uma individualidade, não mais será uma unidade autônoma. Detém sobre si a enorme responsabilidade de suprir e proteger a prole; não existe para si mesmo; não vive para si mesmo, de modo que a companhia dos amigos nem sempre está livre desse minúsculo inconveniente, o que a torna uma impossibilidade temporária. Ainda assim a companhia dos fraternos amigos, aquela cuja falta tornava a vida rançosa e fastidiosa, é a que vem aplacar e mitigar a insipidez do dia-a-dia mesmo quando se não troquem palavras.
       Ali naquele resquício do Éden, hoje estragado e repleto da imundície da especulação, as noites enchem-se ainda de milhões de estrelas e constelações que sarapintam a abóbada anil, tornada negra, de tênue manto leitoso. Ainda assim o José de Alencar a diria azul, persistentemente azul, sempre azul... Quando as luas cheias sobem trazendo consigo sua quantidade de luz amarela e pálida, as noites exuberam em beleza e arrancam dos mortais suspiros e fôlegos entrecortados. A praia se ilumina, as dunas e areias são como brancos lençóis, e as águas rebrilham como um tapete de diamantes revoltos a se contorcer em ondas que se assemelham a flocos de algodão a rolar à alcatifa soprados pela suave brisa.
        Às vezes, não raro, uma fina garoa umedece tudo e faz subir miasmas que evocam os cheiros do mar, da terra e da mata numa combinação de pura e selvagem natureza apesar da visível invasão corruptora. 
        Estar junto a amados amigos, ainda que sem dizer palavra, ainda que sem a eloqüência das aneladas expansões, libera na alma o sedativo que buscávamos e necessitávamos. Olhá-los do alto de sua maioridade e maturidade e ainda vê-los os mesmos meninos travessos dos idos anos da inocência avoca no espírito a sensação de densidade da vida, como se a vida que vivemos fosse uma história repleta de conteúdo em seus dramas, vicissitudes e alegrias fugazes. Impossível negar – evoca também a impressão da grande ilusão do viver, onde os sonhos primevos realizados se mostraram vãos, onde as realizações se revelaram fúteis e onde a ausência de algo se demonstra em toda plenitude.
      Ficaram as saudades do amigo-irmão distante, que já se manifestaram à partida, amenizadas nas intenções de breves reencontros e na consciência da necessidade de se os amiudar. Evidente também que os outros amigos-irmãos, o Mesquita e o Braga, os que são concidadãos, também vivem tão perto tão distante, o que implica em semelhante premência. Deles também já sinto saudades, ainda que estejam ali, a cinco minutos de carro. E como eles há outros, e outros, e outros... A vida passa e "tudo passa sobre a terra". 

"Sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem
Tem essa pressa de viver" (Belchior)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...