sexta-feira, 8 de junho de 2012

Um desfecho rodriguiano

           Não faria diferença perguntar o porquê de hoje ter sido assaltado por pensamentos destituídos de aparente razão. Eis que pus-me a lembrar o querido e saudoso amigo Henrique Telmo. Repito – de que adianta pensar em por quais razões minha memória me impôs tão doce e saudosa lembrança? Mas me veio bem, a propósito. 
          Há muitos anos partiu, ainda, ou melhor, tão logo atingisse o vigor que o viver reserva aos homens aguerridos, corajosos, inteligentes e de bom coração. Em verdade, ao partir desta vida já se o poderia considerar um vitorioso porquanto viera de classe social inferior àquelas que obtêm recursos mais facilmente por lhes terem sido oferecidas melhores e mais promissoras oportunidades. Henrique era o menino pobre vencedor à idade de jovem adulto; fustigara a indigência por méritos próprios e com o auxílio inestimável de pais zelosos e abnegados. 
          Era então pai de um lindo garoto, "acidente" que acomete os mancebos apaixonados e descuidados. Não menos o amava por essa razão. Com sua mãe, a do garoto, mantinha aparentemente uma relação amena e cordial. Colara grau em Medicina e estava no interlúdio entre a formatura e a Residência Médica, muitas vezes preenchido, mormente entre os estudantes de infância pobre, por empregos e biscates que se vão tão avidamente quanto vêm, algumas vezes a durar por mais do que o ideal porquanto os até então frugais proventos súbito se avolumam e vêm trazer fartura onde sempre reinaram a penúria e a escassez. Parecia o caso com o querido Henrique Telmo.
          Já ia pelo quarto ou quinto ano após a formatura e ainda não entrara para a Residência. Consta que a esse tempo namorava uma mulher, uma causídica. O romance durava seus dois ou três anos, e parecia daqueles repletos de arranca-rabos estrepitosos e cenas novelescas e prosaicas. A razão: Henrique estaria sendo infiel. Seria pura conjectura ou seria a mais ardilosa verdade, não o sei até hoje. A mãe do rapaz já interviera para acalmar os ânimos da namorada ciumosa, sem sucesso. Os apelos da inóxia mãe de meu amigo viriam, quero crer, repletos da angústia própria dos experientes que antevêem as tragédias que se desenham ao horizonte, como o versado marinheiro que enxerga a procela à mínima mudança dos ventos. 
          Naquele domingo o casal fora à praia, e libaram além da conta. Cediço é que a libação alcoólica deveras contribui para a exposição e manifestação do ânimo recôndito do espírito, redobrado em exaltações e em poluções do íntimo, das frustrações e iras, dos desejos reprimidos, das vontades inconcebíveis mas infladas ao extremo, das más inclinações sequer suspeitas... 
          No apartamento, mais tarde, o sol teimando em se pôr, deitou-se ele à rede na varanda, exausto talvez de tantas e tantas inconsistências, de tantas altercações tolas e passageiras. Ela veio, então, arma branca em punho, e o alvejou várias vezes. O primeiro golpe ao pescoço atingiu-lhe a carótida e talvez a jugular. O sangue se esvaía célere e pulsátil, com rajadas de metros à distância apesar de com a mão a vítima indefesa e perplexa tentar controlar o jorro mortal; ergueu-se cambaleante e já sentindo lhe fugirem as forças e a energia vital, tentando ainda se proteger do algoz que avançava implacável e resoluto. Outros golpes se seguiram; várias partes de seu corpo foram atingidas por inúmeros ferimentos cortantes e profundos. O sangue não se detinha e a vítima, o indefeso amigo, se esgueirava pelas paredes como o animal que quer daquele lugar fugir por já se saber incapaz de dar cabo de seu agressor; sua única chance de escapar, talvez, mas já mortalmente ferido.
          Ao final seu corpo jazia sobre toda a sua volemia; nas paredes seus dedos e mãos se desenharam por inteiro e traçaram garatujas terríveis, como um artista moribundo a publicar seus últimos momentos de uma vida que se apagava lentamente... conscientemente... ruidosamente...
          Ela, sabe-se lá por quem possuída, em seu transe satânico abriu a gaveta repleta de comprimidos e de um único gole ingeriu vários deles após lhes abrir as embalagens com golpes de tesoura; outros tantos rolaram pelo chão. Abriu a porta e subiu a escadaria para os andares mais altos. Chegando ao terraço, no topo do prédio, lançou-se para a morte sem demora. Seu corpo espatifou-se ao solo produzindo um som seco e curto.
          Dirão alguns que a lembrança de meu amigo em seus últimos instantes de vida é por demais mórbida e aventarão para mim algum distúrbio mórbido-fóbico. Dir-lhes-ei: nada estará mais distante da verdade do que tal pensamento. 
          O evento se deu há mais de vinte anos; e ainda me choca. O que choca é a contraposição do mal ou do maligno diante do bem ou do bom; é a capacidade que certas atitudes têm de causar terror  por vitimar pessoas cujo caráter não condiz com a natureza e violência do que se lhes sucede, como aconteceu com Cristo; é a incapacidade de compreender tais atos, enfim. Que Raskólnikov tenha nutrido asco por uma velha usurária que explorava a pobreza e a quisesse matar por julgá-la uma parasita social inútil e abjeta, até se explica e se entende, ainda que se não justifique e se aprove o ato finalmente perpetrado. Contudo, que entendimento se pode dar ao ato vil que se dirige ao homem de bem? que vontade satânica se esconde ou, melhor, não se esconde por detrás do que mata e se mata a seguir? Que tipo de vivente nega tão veementemente a vida, tirando a do outro e em seguida a sua própria? 
          Nem pretendia fazer tais dolorosas reflexões, mas o lembrar-se do amigo me as trouxe também. A violência e a inocência chocam quando se vêem frente a frente. Vejam que eu disse "chocam" e não "se chocam". É bem diferente. 

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