quarta-feira, 28 de outubro de 2015

UMA ESMOLA PARA UM PÉ

         O semáforo fechou e, após a inconfundível luz vermelha, exceto, digamos logo, os nossos aparentemente inúmeros color blind, ainda passaram dois ou três carros.... Avançaram o sinal vermelho dois ou três carros, repito, para que dirimamos a possível dúvida. (Será assim tão endêmico o daltonismo entre nós?...)
          Em Fortaleza é assim. "Furar" o semáforo quando a luz está vermelha, seja ao meio-dia ou à meia-noite, deixou há muito de ser a exceção e passou a ser a regra. À meia-noite é permitido. A autoridade do trânsito reconhece que permanecer parado à luz vermelha a essa hora pode significar a vida do motorista e a de quem com ele estiver. É como se a autoridade do trânsito reconhecesse a completa falência da autoridade da segurança pública. 
          Paremos um pouco.
       Quem é a autoridade da segurança pública? A resposta não é fácil. Lembro-me da professora falando de Hobbes e de Rosseau. O Estado hobbesiano existia porque o homem seria mau desde as fraldas. Cresce mau e anela liquidar o outro tão logo possa. Por isso, o Estado. Ele, o Estado, é o acordo lavrado entre os homens maus a fim de evitar que se destruam mutuamente antes que se ponha o sol. O acordo inclui punir quem o descumprir.
          O Estado rousseauniano, por sua vez, emergiu da concepção de que o homem é naturalmente puro, mas se corrompe quando se junta a outros. Como o ajuntamento dos homens é a regra após o seu nascimento, todos os homens tornavam-se corrompidos. Daí porque o Estado. Ele, o Estado, é o contrato que celebra as regras da paz entre os homens bons que se corromperam. Ao fim de tudo, Hobbes e Rousseau falavam da mesma coisa, ainda que digam o contrário. Quem se importa com essas firulas filosóficas? 
          Voltemos às ruas de Fortaleza ao meio-dia. Aqui a autoridade do trânsito não reconhece a insegurança do cidadão. Para avanços à luz vermelha a essa hora aplica-se a multa. Antes da multa, contudo, há a regra, o contrato, o acordo. Eles existem para evitar que os veículos motorizados não colidam entre si gerando prejuízos a seus proprietários. Ainda mais importante, eles existem para evitar que as pessoas que viajam nesses veículos não tenham sua integridade física abalada, e que suas vidas não corram riscos desnecessários. A multa é apenas a punição.
          Mas, ora!... Depois de Hobbes e depois de Rousseau os homens se envolveram em duas guerras ferozes. Quase se dizimam. Algumas das sociedades envolvidas nos conflitos cansaram-se de matar e de morrer; cansaram-se de chorar seus mortos; cansaram-se de contendas e de litígios assassinos... Saíram a aperfeiçoar seu contrato social e seu pacto de não-agressão. Na rua, se inadvertidamente tocam-se levemente, quase ajoelham-se em zilhões de pedidos de desculpas, em sorrisos contritos que lhes denunciam o embaraço e desgosto por possivelmente terem machucado alguém. E em suas salas de aula ensinam sobre as tabulae rasae das crianças, dando mais crédito a Locke. Outras sociedades nem tanto. Seguem tendo sede de sangue e de dor. 
          Ainda não consegui descobrir, após e apesar dessas reflexões inúteis, quem é a autoridade da segurança pública. Mas voltemos ao cruzamento onde estávamos quando dois ou três carros avançaram o sinal vermelho. Fui obrigado a parar. Afinal, a dupla luz encarnada estava lá, fixa e bem acesa. Foi quando vi o sujeito.
          Era jovem, alto e bem magro. Suas roupas não tinham cor, ou por outra, não era possível distinguir-lhes a cor dada a sujeira que o cobria, a ele e suas roupas. Claro era que aquela sujeira já durava dias, talvez semanas. Era uma como que oleosidade negra, espessa e gosmenta. Os cabelos lembravam a juba de um leão negro e não usava nenhum tipo de calçado. Um dos pés, o esquerdo acho, estava envolto num molambo rasgado e encardido.
          Foi quando percebi tudo. Ele erguia o pé esquerdo envolto no molambo para mostrar aos motoristas dos carros que tivera parte do pé amputada, enquanto estendia a mão à supinare. Estava esmolando.... Jovem, maltrapilho, imundo, desnutrido... esmolando. Várias vezes ergueu o pé semi-amputado tentando sensibilizar os motoristas. Seguiu entre os carros sob o sol escaldante dessa desgraçada Fortaleza, os pés descalços pisando no asfalto quente e a mão estendida a pedir a esmola para a próxima refeição ou a próxima pedra, erguendo aqui e ali o coto do pé à vista dos passageiros dos veículos... 
          Ninguém deu a mínima. O farol mudou para verde e a dupla fila de veículos se moveu como uma grande sucuri de ferro e borracha desengonçada e neurastênica... Ninguém sabe quem será o próximo.

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