segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A ENTREVISTA

          Os leitores que acompanham este blog hão de se lembrar da revolução que sofreu o amado amigo Fábio Motta. Ora, dizer que alguém sofreu algo implica em que esse alguém foi vítima passiva, objeto de um infortúnio, alvo de um destino implacável e cruel. Tranquilizo a todos dizendo que não foi o caso com o querido amigo. Qualquer conotação negativa que se queira aventar para o caso estará fadada a se esvair ante a realidade. Sim, os fatos não me deixam mentir. Não, o Fábio Motta, de fato, foi o principal agente e ator de sua recente revolução. Digo recente e já corrijo – já não é tão recente assim. Sabe-se lá quando, de repente, o nosso Fábio Motta "aconteceu". Teria sido, dizem as más línguas, um amor que azedou, um negócio que quebrou-lhe a banca, ninguém sabe de fato. O que importa é que estava ali um novo Fábio Motta, um novo homem. 
          Motta era um homem de paletó e gravata. Um homem enorme, alto, forte e... de paletó e gravata. As meias, os cintos e as cuecas seriam das melhores e mais caras marcas à venda. Seus sapatos reluziam como ouro. Engraxava-os diariamente. Quando mais novo usava um bigode vistoso e densíssimo. Numa única palavra, o homem parecia o Tom Selleck. Não sei se se lembram do Tom Selleck. Pois o Fábio Motta seria facilmente contratado como dublê do Tom Selleck, tamanha a semelhança com o ator norte-americano. 
          Com a transformação, o amigo murchou. E digo que literalmente murchou. Vejam que não o afirmo no sentido pejorativo. Nada disso. Para se ter uma vaga ideia, o homem, agora, precisa apertar o cinto para evitar que lhe caiam as calças. Trocou os sapatos finos negros e brilhantes por esportivos coloridos. Com efeito, toda a indumentária do homem é, agora, multicolorida. Dir-se-ia ser ele um havaiano completo. O surf é a sua principal atividade. Para isso, faz cursos de natação e de apneia. Comprou sabe-se lá quantas pranchas. O destino dos vários paletós que pendiam em seu guarda-roupa é, até agora, desconhecido. Nunca mais qualquer ser vivente o viu usá-los. Suspeita-se que no lugar dos paletós estejam as pranchas de surf. Eis aí em rápidas pinceladas a revolução que atingiu o nosso querido amigo. Ia esquecendo um detalhe crucial – as namoradas. Suas namoradas, antes mulheres maduras e realizadas, eram agora adolescentes recém saídas da barra da saia de suas mães. Por isso muitos fecharam um diagnóstico para o amigo: – ele seria um Peter Pan mal acabado. 
          A transformação do Fábio Motta foi tão acentuada que chamou a atenção da imprensa. Certo repórter, digo, certa repórter, jovem e bonita, combinou com ele um lugar em determinado horário a fim de obter, finalmente, as razões que o levaram a tão intrigante e contundente mudança em seu estilo de vida. Os leitores quererão saber de como a imprensa tomou conhecimento do fenômeno Fábio Motta e direi que suspeito fortemente da rede social. Disse o meu querido amigo Fernando Siqueira que a rede social faz hoje o que faziam antigamente as calçadas. Tudo se conhecia e ganhava o mundo nas calçadas. Seja como tenha sido, a repórter queria que o grande público tomasse conhecimento a fim de que mais pessoas se beneficiassem de mudança tão desejável e impactante. Afinal, as pessoas precisam de um gatilho, de uma boa razão que as encorajem a  seguir em frente. Todos sabem que, numa mudança, o mais difícil é o começo, que os primeiros passos são os mais difíceis, é como começar a andar.  Nada melhor do que um exemplo vivo, um exemplo inspirador.  Era aí que entrava o nosso querido Motta. 
           A moda é ser magro, ser jovem, ser saudável. Qualquer um que destoe de tal unanimidade, de tal consenso, há de ser sumariamente excluído como exemplo a ser seguido. Seja um canalha, mas seja magro, jovem e saudável. Obviamente, não é assim com o nosso Motta. A entrevista havia de esclarecer, de uma vez por todas, as razões do amigo. Assim, lá foi ele encontrar-se com a imprensa. 
          Foi ali na Beira-Mar, lugar onde se encontram os milhares de atletas desta vil cidade. Um fim de tarde de segunda-feira, o dia mais cheio, mais frequentado da semana, foi o cenário escolhido pela jovem da imprensa. Afinal, é no fim de semana que se cometem todos os pecados contra a saúde do corpo e a favor do excesso de peso. A segunda seria o dia da expiação, o dia de confessar e expurgar tais pecados. Por isso há muito mais gente neste dia. 
          A repórter queria causar impacto. Escolheu a entrevista em frente ao Boteco Praia, um bar repleto de paus-d'água todos os dias da semana. Testemunhariam, ainda que de uma certa distância, o atleta cinquentão e humilhante. Ela compareceu de bloco na mão e acompanhada por um cinegrafista. Quando viu o homem de câmera em punho nosso Motta fez um esgar de contrariedade. Pediu à moça para não ser filmado. Sabe como é... Uma imagem de filme ou de fotografia nunca espelha a realidade. Gente bonita corre o risco de parecer feia diante da câmera. É aquela história da mínima diferença entre a beleza e a feiura. Tinha trazido também uma maquiadora? Melhor não correr o risco...
          Ela começou assim:
          — Senhor Motta, como vai? O senhor parece ser um homem que está em dia com a saúde. O senhor pratica esportes? Quais esportes o senhor pratica?
          — Minha querida – era o velho Motta querendo vir à tona no novo Motta – tudo bem com você? Sou adepto do surf, sempre gostei do surf, sou um homem do surf... Na adolescência era o meu esporte. 
          Diz o amado amigo Bacana que uma das mais prementes características do Motta é ser um gentleman. Nisso, segundo ele, não houve a menor alteração.
          — O senhor surfa desde a adolescência?, quis ela se certificar.
          — Não me chame de "senhor", minha querida... Assim você desfaz todo o meu trabalho... 
          — Desculpe... Como prefere que eu o chame?
          — Bem, me chame de Meninotti ou de "você". Meus amigos vêem em mim uma semelhança com o ex-técnico argentino, o César Luis Menotti. Você não me acha parecido com ele? Claro, ele hoje é um homem mais velho. Talvez até já tenha morrido... Você saberia dizer se ele já morreu?
          — César Luis Menotti? Não sei quem é... Ele é antigo?
          — Foi técnico da Argentina nos anos 70...
          — Não é do meu tempo... Tenho 30 anos... A propósito, quantos anos o senhor, digo, você tem? Perguntava e anotava no bloquinho as respostas do entrevistado. O cinegrafista, rejeitado como um pano de chão, resolveu se misturar aos cervejeiros do Boteco. Motta respondeu:
          — Veja bem: a idade não importa. Por exemplo: você me dá que idade?
          A repórter ensejou um sorriso encabulado e hesitou. Ia responder quando ele atalhou:
          — Perceba que sou magro, e abriu os braços olhando-se de cima abaixo.
          Continuou:
          — Muitos desses garotões aí não me acompanham...
          A repórter quis mudar o tema, voltando ao técnico argentino.
          — Mas... O que este senhor Menotti tem a ver com o "Meninotti" que seus amigos usam para se referir ao senhor, digo, a você?
          — Começaram a brincar comigo por causa de meus cabelos que estão rareando em cima e permanecem viçosos aos lados e atrás da cabeça. Como pareço um menino, fizeram a brincadeira. Daí o Meninotti. Percebeu?!, e inadvertidamente passava a mão pelos ralos cabelos.
          — E o surf? Como o surf entrou na sua vida?
          — Como ia dizendo, surfava na adolescência e desde então nunca mais havia praticado. Resolvi voltar. Achei que estava precisando. Não sei bem o porquê... Até hoje eu mesmo me pergunto.
          — Como assim? O senhor, perdão, você não sabe por que voltou a surfar?
          Nesse momento Motta deslizava a mão pelas suíças. Sim, o homem tem as suíças do Hugh Jackman. Assim como poderia dublar o Tom Seleck, da mesma forma poderia dublar o Hugh Jackman. Seria o Wolverine tupiniquim falando cearencês. Responde:
          — Minha linda, às vezes na vida o homem faz coisas sem nenhuma razão aparente. Quero dizer com isso que nem sempre fazemos as coisas por uma razão específica. Fazemos por fazer. Não há uma explicação. Dizia isso com a empáfia do cinquentão.
          A repórter insistiu:
          — Você, desculpe, o senhor sabe... às vezes a pessoa descobre algum mal, alguma doença... O senhor, desculpe, você não descobriu ser portador de alguma doença para ter mudado tanto assim o seu estilo de vida?
          Motta sorriu aquele seu sorrisinho debochado e disse:
          — Minha filha, eu lá tenho doença nenhuma!... Sou saudável como você. E olha que eu já tenho... Se brincar tenho mais saúde que você... Quer apostar?
          A moça sorriu amarelo meio desconcertada e perguntou, depois de um pigarro:
          — Como é a sua rotina? o seu dia-a-dia?
          Motta encheu o peito de ar como se fosse começar uma sessão de apneia e respondeu:
          — Acordo todo dia às quatro e caio na mar já às cinco. Às nove chego no trabalho e fico até às cinco da tarde. Almoço no escritório ou nem almoço. Vou ao clube para a natação e depois treinamento de apneia. Treino pesado quase todo dia. Os amigos me chamam para encontros mas não tenho mais tempo. Às vezes faço uma massagem, mas não é sempre. Veja você: estou quase aposentado. Tenho essa idade e já estou quase aposentado. Não é incrível?!
          A moça hesitou como a ganhar coragem, e finalmente perguntou:
          — Mas... Que idade o senhor tem mesmo?... 
          Ele continuou como se ainda não tivesse terminado de descrever a rotina:
          — Tenho... Não perco mais tempo com conversas inúteis. Você sabe, é preciso estar em movimento se quiser permanecer jovem e saudável. Tenho cinco pranchas de surf que me servem a diferentes marés. No fim de semana vou ao Paracurú ou ao Pecém surfar e ver como andam as reformas de umas casas que tenho por aquelas bandas. Quando estiver completamente aposentado vou morar lá. E vou surfar até morrer!
          — Desculpe, mas como é isso de estar quase aposentado? Pelo que entendi, o senhor, digo, você ainda trabalha...
          — Minha linda, o quase aposentado é um estado de espírito. É simples: já me vejo lá. Vivo com essa sensação. O tempo em que estou no trabalho, eu nem sinto. É como se estivesse surfando, ou nadando, ou tomando uma massagem com a dona Lurdes. Ela é minha massagista há vários anos. Entendeu?
          — Entendi... 
          A jovem tossiu baixinho como se estivesse se dando um tempo para elaborar outra pergunta, a última ou uma das últimas.
          — O que a sua mulher acha de tudo isso? Ela acompanha o senhor no surf?
          Motta sorriu outro de seus sorrisos marotos e disse:
          — Sou solteiro, minha linda... E já nem me lembro quando foi o meu último relacionamento. Você me acredita?
          A jovem e linda repórter fechou o bloco e agradeceu ao Motta por seu tempo e sua colaboração. Ele quis se escalar para uma cerveja com ela quando ela fez menção de atravessar a rua em direção ao Boteco para encontrar seu cinegrafista, mas se desculpou dizendo que tinha outro compromisso urgente. 
          Meio sem graça ele caminhou pelo calçadão em não sei qual direção e se perdeu entre os atletas da segunda-feira. 
          A entrevista ainda não foi publicada.

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