quarta-feira, 8 de abril de 2020

O TRAJE ESPACIAL DO MESQUITA

Desapareceu o Mesquita. Depois de uma intensa e ativa presença na rede social, o homem sumiu. Explico.
Ou melhor, não explico. Direi apenas o que todos já sabem.
Aos dias de hoje a realidade compreende a vida real e a vida virtual. As coisas acontecem em ambas. Até crimes são iniciados e perpetrados na rede social. Tudo certo, tudo planejado, o único trabalho do criminoso é estar na hora e lugar certos para dar o tiro na cara da vítima. Se for negócio de roubo é mais fácil – tudo se resolve na rede social mesmo. Namoros nem se fala. Casamentos então...
 Pois o Mesquita fazia dias se apresentava na rede social com um grupo de casais amigos em farras diárias. Era uma bebedeira medonha e os bebuns se entrelaçavam em abraços e canções melosas. As senhoras, mulheres esposas daqueles varões, aparentavam mais bêbadas que seus maridos. A certa altura pareceu que o grupo de mulheres imitava as chacretes. (Somos do tempo das chacretes, se não sabem.) Uma das esposas lembrava muito a Verinha Furacão; outra era a cara da Fernanda Terremoto; já outra seria a Sarita Catatau em carne e osso. Por fim, jurei estar diante da famosíssima Rita Cadillac. Parecia que estavam em hotel de praia, desses providos de um deque onde os hóspedes se confraternizam ao ar livre. O grupo do Mesquita mais do que confraternizava – enchia a cara mesmo.
Foi em fevereiro último, começo de março, não me recorda bem. Quatro ou cinco dias se seguiram com a pilhéria, com a algazarra, com o rega-bofe. Os amigos, os que não haviam ido, já se enchiam de inveja por lá não estarem também. Alguém reivindicou: –“Não me chamaste”! Mesquita teve tempo de largar de lado o copo extravasando de cachaça para retrucar: –“Eu convidei”! E enfatizava: –“Prest’enção”!
Passados quatro ou cinco dias, parou a chacota na rede social. Soubemos, assim, que a marmota chegara ao fim. E foi aí que teve início o exílio do Mesquita. Não demorou para tudo ficar claro.
Acontecia precisamente o seguinte. Ao início de março o país tomou consciência da chegada do vírus chinês, justamente ao momento do término da função em que o Mesquita se metera com os amigos e suas respectivas chacretes, numa coincidência temporal perfeita. Eis aí tudo. Alguém dirá: –“Sim, mas... e daí”? Abro um parêntese a fim de contextualizar a história.
Aos que não se recordam e aos que não conhecem o Mesquita, direi o seguinte – o homem é um pouco hipocondríaco. (Bem, não acho que o homem seja um hipocondríaco nato, já que tem um certo prazer em estar doente, desde que seja uma doencinha boba, dessas que a cura é certeza.) Relatei aqui vários e vários episódios de sua vida que permitem a todos que o conhecem constatar tal aspecto de sua personalidade. Para se ter uma ideia, quero crer que o homem ainda esteja acometido por uma onicomicose que trata, sem muito sucesso, há uns... sei lá... vinte anos. O fungo, que está com meu Mesquita há tanto tempo, já é considerado parte dele, como se fosse um tecido extra na composição corporal do amigo-irmão. O Mesquita tem, ao contrário de todo ser humano, 5 tipos diferentes de tecidos, que são o epitelial, o conjuntivo, o muscular, o nervoso e, em seu caso especial mais um, o tecido micótico. Vejam que o homem é uma espécie de wolverine bebedor de um copo de liquidificador matinal, de mutante devorador compulsivo de uma baguette française inteira, ou de um ser involuntariamente simbiotizado e perfeitamente adaptado a seu novo estado. (Sim, outra característica do Mesquita é o apetite voraz. Sempre foi assim, mas “piorou” após a tal simbiose aparentemente definitiva. A suspeita é que seu tecido micótico tenha elevado metabolismo necessitando, assim, de calorias extras. A prova cabal do que falo é que o homem nada engorda, a despeito da elevada ingesta de calorias e nutrientes.) É verdade também que o homem fez várias tentativas de matar o bicho, como disse antes. Contudo, como resistisse às doses mortais dos antifúngicos administrados, Mesquita concluiu, ao contrário do que pensou ao início, ser este mais um bichinho de estimação, uma espécie de dádiva ou de marca personalizada. Seria uma tatuagem biológica, por assim dizer...
Mas falo, falo, falo e não vou ao ponto. Continuemos.
Com a suspeita de que o vírus chinês já andasse por essas paragens bem mais cedo do que se supunha, caiu a ficha do Mesquita – ele poderia ter sido contaminado no agarra-agarra do rebuliço! Sabe-se lá! Eram uns abraços calorosos, melosos, roçados...! Além disso, era um povo que viaja muito, sabe-se lá... as suspeitas faziam o homem coçar o queixo de preocupação. Na dúvida, que fez ele? Sumiu. Até da rede social sumiu. Suspeito que dona Rejane, sua chacrete, digo, sua esposa, não o encontrasse nem mesmo em seu majestoso e espaçoso lar. É possível que tenha se trancafiado num de seus inúmeros aposentos e lá permanecido ninguém sequer suspeita por quanto tempo.
Por fim, vários dias depois, seu silêncio sepulcral foi interrompido e ele finalmente apareceu para confessar que estivera de quarentena antes mesmo de a oficial ter sido decretada. De minha parte a apreensão era tanta que lhe enviei uma mensagem de felicidade: –“Mesquita, estás bem? Tudo certo contigo e com dona Rejane? E como vai Bolorzinho? Está bem”? (Bolorzinho é como chamamos sua micosezinha ungueal no dedão do pé esquerdo, acho...) Depois de garantir que todos estavam bem pedi encarecidamente que enviasse para nós uma foto sua em seu traje espacial antivírus chinês.
Ele ficou puto e não me respondeu até hoje.

Um comentário:

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...