quarta-feira, 9 de agosto de 2023

SOBRE BURACOS

         Tenho vivido dias de reflexão sobre o meu trabalho. O que me trouxe a esse tema nesses dias foram acontecimentos ilustrativos. O ser humano tem tendência a se acomodar onde está. Muitos se acomodam ainda que a posição seja desconfortável. Acha-se conforto no desconforto, como se ao se mover passasse a doer o que já estava indolor de tanto doer. Como uma terminação nervosa em longo período refratário de tanto ser estimulada, a dor aquiesce e se esvai, só sendo lembrada quando se tenta mover da posição. Não mais dói o desconforto, mas o esforço para dali sair.

Somente reavaliações freqüentes sobre a vida, e em particular sobre o trabalho, podem nos sinalizar sobre o rumo que nossos resultados tomaram. Nada controlamos. Ainda que tenhamos chegado ao nosso objetivo inicialmente traçado, perdemos rapidamente e tanto mais o controle quanto mais esforço tenhamos empregado na tarefa de conseguir a meta. É fácil explicar: – julgamos cumprida a missão. Acabamos. Nada mais a fazer. Esquecemos que nada controlamos e que onde chegamos é onde verdadeiramente começam os desafios.

As novelas e os filmes geralmente acabam onde de fato deveriam começar. Como o casal de mocinhos que finalmente sobe ao altar no final feliz, é justamente ali naquele momento que se inicia a maior batalha; quando devem ficar mais alertas e mais esforços devem empregar para manter viva a energia que ali os fez chegar. O que se faz é precisamente o oposto.

Deita-se. Relaxa-se. Esmorece-se. Começam, então, os problemas. O mesmo ocorre no trabalho. Lutamos com unhas, dentes, canhões e bazucas para consegui-lo, e quando isso acontece esquecemos que começa, naquele momento, o maior desafio. Perdemos o controle porque abdicamos da parte que nos toca.

Parece que todas as nossas “realizações” são profundos buracos que cavamos a fim de lá nos enfiar para nunca mais sair. O casamento, um buraco; o trabalho, um buraco; o mestrado, um buraco; o doutorado, outro buraco; o consultório, as noites de domingo, e tantos outros buracos que cavamos. Nossos buracos nos envolvem como uma rede aconchegante, onde nos sentimos letárgicos e preguiçosos.

Estive, nesses dias, olhando as paredes de meu buraco de trabalho. Ainda sobre os buracos, vejam que queremos permanecer trinta e cinco anos no buraco do trabalho para de lá sair, velhos e doentes, para a aposentadoria. De tanto lá ficar, sem luz e sem espaço, quando saímos estamos cegos e encurtados em todos os aspectos. Nossos tendões estão encurtados, nosso corpo está encurtado, nosso salário está encurtado, nosso cabelo de tão curto não mais o vemos, nosso mundo está encurtado, nosso ânimo encurtado, nossa vida está encurtada, enfim. Só então descobrimos o mais triste: nossos princípios e valores encurtaram de há muito, desde quando entramos no buraco do trabalho e esquecemos, por anos a fio, de reavaliá-lo. Será, então, tarde demais. Teremos sido tragados pelo buraco. Já não sabemos viver fora dele.

Há quase vinte anos estou no buraco. Ocorrências recentes me chamaram à responsabilidade. Estou a um angstrom do fim de minha dignidade. Senti uma onda de frio perpassar meu corpo quando vi diante de mim, cara a cara, bem perto, o monstro da pusilanimidade repleto de complacência e condescendência. Olhei em volta e não vi os meus valores, as minhas razões, os meus princípios. Eles estavam guardados em algum lugar e há tempos eu não os revisitava, presumindo estarem eles sempre comigo. As coisas mudam. Nada controlamos. Só controlamos a nós mesmos. Sem minhas razões, sem meus princípios, sem meus valores nem a mim mesmo controlo; estou sujeito à ação do terrível monstro. Se não os revisito perco o foco dos meus porquês e me embrenho no lugar-comum das razões menores que não se justificam. Quando perguntam a minha idade, respondo: vinte e quatro anos. A expectativa de vida em meu país é de setenta e três anos. Vinte e quatro anos é o que me resta. O que estou tentando salvar? Minha vida ou minha memória? Em breve direi. Não tenho muito tempo.

 

03.11.2010    

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...