SERÁ que alguém lembrará de meu
amigo Pinto, o homem mais liso à face da Terra ao final de cada mês? Aos que não
lembram, passo a recordá-los.
Outro
dia, já há algum tempo, o encontrei no hospital. Vinha ele sorumbático, macambúzio,
pra baixo mesmo e, vocês sabem, um Pinto pra baixo é das piores visões que se
tem na vida. Corriam os últimos dias de um mês qualquer, não me lembra agorinha
qual. Pouco importa esse detalhe, uma vez que o que lhe ocorre a um mês ocorre também
ao outro: a pindaíba recalcitrante e recidivante. Se o virássemos de
ponta-cabeça à essa época, nenhuma pataca lhe cairia dos bolsos. Eis o Pinto
que alguns de meus leitores não conhecem.
Pois
a lembrança do Pinto me espicaçava o juízo enquanto escarafunchava a lista dos
vereadores eleitos para compor a Câmara Municipal de Fortaleza na próxima
legislatura. O que lá vi não me chegou a estarrecer, embora os motivos fossem
mais que visíveis, o principal deles a reeleição do senhor Leonelzinho Alencar.
Este senhor, todo fortalezense sabe, protagonizou recentemente o episódio mais hilário
de que se tem notícia na crônica política desta decadente cidade. Diga-se de
passagem, dizemos hilário para não dizermos trágico, que hoje não estou para depressões
inúteis nem tristezas capitais.
Que
fez este senhor?, já e ainda edil desta mesma câmara para a qual foi reeleito? Conseguiu
para sua mulher uma inscrição no Bolsa Família, programa de distribuição de
renda do governo federal, tido por muitos como o mais vultoso e engenhoso plano
de compra de votos jamais concebido. (Não sou quem diz; dizem-no os outros.) A
denúncia contra o insigne vereador foi feita por um de seus pares, a senhora
Toinha Rocha, “adversária” política do senhor Leonelzinho Alencar no amplo
curral eleitoral do bairro de Messejana.
O
episódio extravasou os muros da casa legislativa municipal, que aliás nem deveriam
se erguer, e chegou ao curral de ambos na forma de uma enxurrada de balas
disparadas contra certa propriedade da vereadora, localizada lá, na zona comum
de influência de ambos. Assim, a coisa toda se assemelhava à mais abjeta
politicalha. As suspeitas do atentado tupiniquim recaíram, evidentemente, sobre
o senhor Alencar, que desde então jura de pés juntos que nada teve com o fato
nem com a inscrição do nome de sua jovem senhora no programa Bolsa Família.
O
fato é que a senhora Alencar sacou dos cofres públicos a irrisória quantia de
duzentos e poucos reais, ainda que sua renda familiar beirasse os dez mil.
Nada
disso, como se já sabe, impediu o ilustre edil de receber uma outra enxurrada,
diferente daquela recebida pela vereadora: uma enxurrada de votos – quantos foram
mesmo? –, tendo sido, se não me engano, o quarto candidato mais votado para a câmara
da municipalidade. (Lembrei! Foram exatos 14.486 votos.)
O
que pensava eu enquanto debulhava a sadia lista? Pensava justamente no Pinto,
meu amigo de muitos carnavais. Nutro por ele um carinho tão intenso e tão
especial que houve tempo em que era para mim uma necessidade acrescentar-lhe ao
nome um diminutivo qualquer que denotasse e denunciasse todo esse meu bem-querer.
Cogitava chamá-lo
de “Pintinho”, mas logo me pareceu uma afetação tão esdrúxula que desisti
incontinenti. Também aventei uma abreviação de seu nome, tão comum aos dias de
hoje, algo como “Pin”, mas novamente declinei da idéia por pior ainda. Seu primeiro
nome tornava impraticável qualquer tentativa de acarinhá-lo, de modo que mais
uma vez declinei. Assim, cheguei à conclusão fatal e irremediável: Pinto não
admitia diminutivos nem abreviativos. Se quisesse lhe tratar com carinho, teria
que buscar uma outra hipótese.
Vendo aquela
lista e os mais de catorze mil votos de Leonel Alencar, pensava que o rapaz
devia lá ter suas qualidades e um certo carisma. Essas pessoas não davam a mínima
para o comportamento nada correto do vereador. Poder-se-ia até concluir que, de
fato, aprovavam sua conduta. Daí alguém, um amigo talvez, saído dessa turma
enorme ou não, ter querido como eu demonstrar apreço por sua pessoa e tê-lo
mimado com o “Leonelzinho” tal como é conhecido.
O diabo é que,
para mim, o Pinto merecia muito mais, sem dúvida. Sobre o senhor Alencar, em
que pese sua cara de menino travesso e puro, pesam acusações que, em minha humílima
opinião, inviabilizariam qualquer tentativa neste sentido. Ele mereceria mais e
talvez um aumentativo: Leonelzão. Ou Alencarzão. Ou ainda Leonelzão Alencarzão.
Uma referência a seu curral eleitoral aposta a seu nome também seria uma
possibilidade plausível: Leonelzão da Messejana.
Dirá alguém
que tais apostos não fariam jus ao aparentemente doce homem. Nada há em sua superfície
que justifique o “zão” sufixalmente colocado, e não deixará de ter razão quem
assim argumentar, como já dissemos poucas linhas atrás. É sabido que muitas
vezes os apelidos nos servem à ânsia de denegrir ou burlar a imagem de sua
vítima. Outras vezes, como no caso de meu amigo Pinto, eles nos vêm saciar o
desejo constante do carinho a quem estimamos, a traduzir nosso apreço a um caráter
que nos pareça irretocável.
Pensava: quem
teria aposto o diminutivo ao nome do edil cuja face parecia cobrir-se com a máscara
do fora da lei? Há de ter sido alguém que o ama, com certeza. Sendo um familiar
até se explica; sendo um amigo algo estará errado.
Diz Cícero
falando da amizade que esta só seria possível entre os virtuosos de caráter,
entre os bons, entre os honestos. Eu bem poderia alcunhar meu amigo de “Pintinho”.
Já o vereador...
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