terça-feira, 8 de agosto de 2023

MODORRA

        Hoje é domingo. A modorra, após uns dias débeis e insensatos, me envolveu. 

        Os dias débeis são sempre fruto de noites vazias, onde nada se encontra além das mais estúpidas e insossas ideias que pululam nas mentes mais estúpidas e insossas. A solitude tem sido minha mais fiel companheira desde o último dia treze, mês passado, quando minha mãe partiu. Sua presença teima em aqui permanecer comigo, desafiando a realidade. Vinha vê-la pouco nos últimos tempos, mas sua intensa e densa vida me tranquilizava: ela estava lá, vivendo sua vida densa e intensa. Eu sabia. Para mim, ela estaria lá para sempre. 

Pouco antes nos falávamos mais amiúde. Ouvíamos música e ressuscitávamos nossos mortos. Eram – são – muitos os nossos mortos. Ela me contava a história de cada um, a parte que eu desconhecia. Eram tios, primos, avós, amigos. Gente do século anterior, gente do século passado. Ela os amava. Era sempre um prazer reanimá-los, fazê-los viver. Para ela porque tivera com eles tivera uma boa convivência; para mim porque eu sentia um enorme prazer em suas deliciosas memórias. Ela era o elo que estabeleci com umas poucas lembranças da infância. Agora não há mais elo, nem há mais mortos a ressuscitar. Nela eles viviam. Com sua partida a réstia de vida que neles habitava virou um minúsculo, quase imperceptível fio em minha memória. Com efeito, anseio mantê-la viva nas lembranças de tantos, e tantos, e tantos momentos, às vezes longos, às vezes curtos, que me estarão encravados na eternidade do que chamam alma. Percebo, agora, que de fato morremos completamente quando também morrem os outros que conosco conviveram, ou que de alguma forma nos conheceram. Mesmo os filhos ou os netos que se geram permitirão que a memória de seus antepassados se dilua e se perca na imensidão do tempo. A transcendência é apenas de natureza biológica. Eis o que está a ocorrer com meus mortos. 

        A percepção da evanescência de tudo causa essa sensação de fraqueza e impotência que humilha e esmaga a ilusão da vida. Nossas perguntas soam como ecos distantes, ressonantes num abismo profundo e frio. A impostura da vida só não dói mais do que a indiferença da natureza ante esse vai e vem da morte. Por mais que tente, jamais serei capaz de deitar às letras minha indignação ante o absurdo da aniquilação. Eis o que sinto, eis como estou. 
        
        Julgo não mais ser quem fui. Impossível persistir na unidade de mim mesmo quando percebo a amputação no cerne de meu ser. Dizem que será assim por um tempo, não para sempre. Dizem que o bálsamo do tempo demora, mais sempre cura. Eu, que amputo membros de carne e osso, bem sei que curam. Mas também sei que seguem como cotos, resquícios, partes incompletas, que assim permanecem indefinidamente. Há de também ser assim o coto da alma, do cerne, da essência: - onde havia algo que não impede a existência perdura o vazio de algo que se vai daquele âmago. É uma essência mutilada, incompleta, indignada, aviltada, ferida de morte.

        Dizem que tudo é química, que também é química o amor, a saudade, a dor, o prazer. Eu, que li sobre as prostaglandinas, encefalinas, e endorfinas, bem sei que são os mediadores. Mas também sei que se removendo a causa cessa o sinalizador; e que se administrando o sintomático aborta-se sua geração. Há de também ser assim na dor que dói na alma, quando se recorre ao lenitivo das crenças e fantasias.

        Ai de mim, que capitulei ante a demora do alívio dessas dores!... Quanto mais busquei menos achei, porque me neguei a violentar meu entendimento, ainda que procurasse na ânsia de encontrar. Eis a que leva a modorra, eis o que me causou a humildade de perguntar e buscar.

09.05.2010 

Um comentário:

  1. Belo texto: poético, inspirador. Meus sentimentos para com tão legítima dor.

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