sexta-feira, 13 de julho de 2012

Um defunto de Rodin

        Hôtel Paris Parc Monceau à Rue Cardinet, 38, pertinho do parque. O Arco ali próximo o alcanço descendo de Prony e virando à esquerda em Wagram. Daqui lá não completa 1,5 km.
          Champs Elysées estava fervilhando na última sexta, uma chuva fina que depois se adensou nos obrigando a descer à estação do metropolitano para nos proteger do vento forte que empurrava as pessoas às lojas a se abrigar.
          Em Montmartre, procurando Degas, Cézanne, Monet, Van Gogh perdido por essas bandas, e Toulouse-Lautrec, encontrei o cemitério sob o elevado e fui dar na Sacré-Coeur, empilhada de gente e línguas e povos; Paris lá ao longe se estendia, uma faixada encanecida e extensa a se perder no horizonte.
          No cemitério imperava o silêncio, o canto dos pássaros e as árvores. As tumbas se amontoavam dali a alhures, a perder de vista, em avenidas de mausoléus ora simples ora nababescos, estes, verdadeiros lares vazios de vida, repletos da ausência eterna do que partiu e de objetos em seca decomposição e orações latinas... Por vezes esculturas expressivas sombreavam lápides marmóreas e brilhantes, estátuas de nuas figuras humanas em poses intrigantes, sentadas sobre bancos toscos, as pernas entreabertas por onde se via o sexo detalhadamente desenhado, o cotovelo esquerdo apoiado sobre o joelho ipsilateral, a mão aberta em concha a servir de suporte à cabeça que repousava – está lá inda agora, inda repousa – sobre ela; a face voltada para a direita, os olhos perdidos n'algum ponto além, a pensar... em quê pensaria? 
           No Hôtel des Invalides, onde está o Musée d'Armée, a história dos sofrimentos e das glórias desta terra, e o túmulo do último legislador-conquistador que foi Imperador, morador do palácio em Versailles, morada de Luís, o XVI, derribado dali e morto. Os excessos já iam há muito e a fome, a miséria, os elevados impostos e a pouca vergonha encheram a taça da turba enfurecida. No museu se respira respeito, vergonha e – ainda – dor. Os sons dos aviões, do canhoneiro, dos fuzis, emolduram as imagens inconfundíveis. Da derrota de 1870-71, quando Bismarck tomou a Alsácia e o norte da Lorena, eterna zona de disputa entre franceses e alemães, deixando neste povo o orgulho ferido e a estima pelas armas, até 1945, quando Fat Boy, bem longe daqui, em  agosto sepultou mulheres, idosos e crianças, tudo por aqui respira um respeitoso constrangimento por tantas e tantas disputas e mortes que, se bem vistas, estão a cumprir a profecia do Cristo, e outras, e outras, e outras. 
          O morto de Montmartre, pensativo sobre sua própria tumba, próximo à Sacré-Coeur, anela, talvez, a verdade que não parece estar ali pouco acima, na superficialidade de tanta liturgia engessada, de tanta suntuosidade indevida. Outro, mais cético, encomendou a escultura, feita às pressas, de seu corpo sem vida envolto em sua mortalha redundante e espessa, a barba por fazer, os cabelos desalinhados, o queixo proeminente e as faces côncavas a lhe denunciar a consumpção que anunciava desde antes o fim próximo e inexorável. 
          No palácio de Luís XIII, cujo edifício se ampliaria em séculos seguintes, aditado ainda de jardins teatrais e lagos navegáveis por pequenos e românticos barcos de nobres insensatos, a prataria e a sala de quase 400 espelhos denuncia ainda hoje a hipocrisia secular do reino que se dizia cristão que dali a pouco, na fúria revolucionária, pisotearia as Duas Testemunhas do Criador e bradaria "Liberté, égalité, fraternité!", não sem antes decapitar até mesmo aqueles que a inspiraram.
           Concluí: o defunto que imitava um Rodin ainda na morte não descansava. Atormentava-se sobre e sob a pesada lápide, como se uma vida não lhe tivesse sido o bastante para entender tantas incoerências e estupidezes. Nós que nos trópicos ainda cassamos senadores e morremos banalmente bem podíamos todos nos tornar, cada um, um defunto de Rodin.

Paris, 13 de julho de 2012

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