segunda-feira, 24 de junho de 2013

Dois nadas querendo ser


            Não sei se conhecem o Califórnia. Pois saibam, mesmo os que não o conhecem: - eis que sumiu o Califórnia.  Há mais de três ou quatro anos não o vejo. Morrer não morreu, que as más notícias correm duas vezes o mundo antes de se dar um suspiro. Assim, fica a pairar no ar como uma densa nuvem a questão: - onde se meteu o Califórnia?
           Outro dia, acho que quinta passada, encontrei um amigo comum, o Paulinho Lima. E fiz-lhe a mesma pergunta. Disse-me a mesma coisa: -"Não tenho a menor idéia!..."
            Devo dizer que esta não é a primeira vez que o Califórnia toma chá de sumiço. À última vez, contou-me ele mesmo depois de aparecer ileso, trancafiou-se em casa por três anos e de lá saiu, ainda segundo ele, com um livro escrito. Sim, o homem se dizia escritor de livros. Segundo consta de sua crônica, seus prolongados retiros – esse não teria sido o primeiro – são sombreados por intenso desejo de morte. Abatem-lhe ferozes e profundas depressões e, até hoje, não se sabem as razões que o demoveram de tentar o supremo ato. Sozinho, enfronhado em abismo de tristeza e cercado de livros pagãos, o natural seria que estivesse, a essas alturas, decomposto sob sete palmos de terra árida. Seu livro, ao que me consta, jamais foi lido. Quero crer que nenhum leitor se deu o trabalho de correr os olhos por páginas enlameadas de tanta dor e tristeza.
           O fato incontestável e irremediável é que a miríade de seus amigos desconhece seu paradeiro. A todos os que encontro, indago: -"Viste o Califórnia?" A resposta tem sido a mesma nesses três ou quatro últimos anos. "Sumiu!", dizem todos. À última vez que meus olhos repousaram sobre sua figura, disse-me: -"Vou-me embora pro Rio!" Conhecido por suas histórias inverossímeis e por falar demais e fazer de menos – há fortes suspeitas de que jamais tenha escrito livro algum –, sua credibilidade não goza de boa reputação por essas bandas.
            Contudo, uma coisa é certa: Califórnia é querido entre seus comparsas. É homem que, justamente por suas idiossincrasias, angariou admiradores e companheiros de boêmia. Tinha fama de "pegador", termo que se usa para adjetivar o sujeito que goza de facilidade em adquirir novas namoradas. De fato, desde os tempos do velho e saudoso Cais Bar, ali na praia de Iracema, Califórnia é tido como um sujeito boa praça, boa palestra e boa companhia para umas pilhérias sadias e inocentes. Seu círculo não era amplo, mas continha "gente influente" na noite fortalezense, ainda que isso nada signifique ou apenas indique que o homem andava com os mais cachaceiros espécimes daquela época. Andou casado por um tempo, mas o relacionamento degringolou e finalmente, cansada, deu-lhe a mulher um pontapé nos fundilhos.
            O homem era míope – falar no pretérito imperfeito também o salva da hipótese mortal – e seus óculos quase quadrados emprestavam a seu rosto um certo ar de seriedade, que se perdia inteiramente após uns tragos de álcool "duro". Dizia-se jornalista e, embora não lhe tenha lido nenhum artigo ou reportagem no jornal, brigava como um leão quando, na época, sua profissão corria o risco de não ser regulamentada. Ele próprio, ao que me lembra, não era formado. De fato, Califórnia não tinha curso superior.
             Dizia-se leitor voraz. Durante certo tempo vinha com autores clássicos à ponta da língua. Meu amigo Costa, que por sinal anda tão sumido quanto ele, demonstrava-lhe uma ponta de inveja quando ele vinha, à frente do mulherio, dizendo-se leitor de Charles Boudelaire. Ainda que não chegasse a lhe declamar a poesia, e muito menos falasse o mais elementar francês, Califórnia os deixava na cruel dúvida. A razão da incerteza? Resposta: - gogó. Sim, Califórnia tinha muito gogó e, vocês sabem, o gogó de um homem se impõe por si mesmo. Há gogós e gogós. O do meu amigo Califórnia era um senhor gogó. Costa lhe era tão vulnerável que resolveu iniciar, por influência daquele, a leitura da obra suprema de Sartre, "O Ser e o Nada". Após a tentativa de leitura das primeiras cem páginas, Costa desistiu. E desistiu porque nada entendeu do que leu. O livro lhe custara oitenta e tantos reais, e suas ideias eram tão abstratas que o homem sentia-se um verdadeiro apedeuta diante da obra. O detalhe é o seguinte: - Costa é um advogado muitíssimo bem formado. De nada lhe serviu o curso de Direito. Sua OAB era apenas um número sem valor à frente do gênio de Jean-Paul. Assim, diluiu-se no sartriano nada a tentativa do Costa de se transformar num Califórnia, suposto bom entendedor do existencialismo. A partir deste triste episódio, Costa passou a nutrir por Califórnia uma admiração ainda maior, e até viu no amigo certa semelhança física com o filósofo dada a sua baixa estatura, ainda que não fosse vesgo.
            A deficiência visual do Califórnia era de gravidade até então desconhecida. Só se deu conta disso quando, certa vez, teve seus óculos quebrados numa sexta e foi obrigado a passar o fim de semana sem eles. Deu-lhe na telha, justo naquele fim de semana, tomar uns drinques em certa chopperia de intenso movimento noturno. Estava a apreciar o movimento quando, de repente, avistou uma senhorita possuidora, segundo ele, de belos apetrechos físicos. Era loira e atraente. Encontrava-se à sua frente, do outro lado do bar. Logo percebeu que ela também lhe dirigia o olhar. E enquanto ele a olhava daqui, ela o olhava de lá, e assim a coisa ficou por seus vinte a trinta minutos, quando resolveu testar seus dotes de conquistador. Dirigiu-se à donzela contornando a bancada do bar, segurando o copo de uísque que se ia derramando de tão cheio. (Parecia o Victor Mature depois da gripe.) Qual foi sua surpresa quando, ao chegar bem perto, reconheceu imediatamente a pequena. Era a ex-sua mulher, que foi logo lhe avisando: -“Nem vem que não tem...”! E foi logo emendando: -"'Num' me conhece mais, rapa'?" Para o bem de ambos, a solidão de meu amigo prevaleceu ao que seria uma reprise daquilo que já se mostrara inviável e impossível.
          Se bem me lembro, Califórnia passava, à época, por dificuldades financeiras. Quase todos os bares locais exibiam-lhe contas penduradas das mais antigas às mais recentes. Outra explicação para o sumiço de meu amigo seria justamente essa. Como no país não se vai preso por dívidas, na cadeia ele não está; também não está morto, como já bem concluímos. Deve, então, estar homiziado alhures, quiçá bem longe, no Rio de Janeiro, ou bem pertinho de nós a escrever um novo romance que jamais será lido.
          O meu desejo é que por obra da tecnologia moderna ele venha a ler essa piegas manifestação de saudades e me bata o telefone para dois dedos de prosa. 

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